9. Teoria correta.
Qual a teoria correta?
Ora, toda teoria jurídica vale por si mesma, na razão direta de seu egocentrismo, de sua autocontemplação, de sua estéril fecundidade, sempre igual a si própria, repetitiva e cansativa no eco monótono de seu enunciado unilateral. O que conta, no direito, não é a forma nem a idéia, e sim, a forma e a idéia que se fizeram acompanhar de atitudes efetivamente tomadas pelo homem e pela sociedade, na senda e ao longo da história.
A história do direito penal, de sua parte, em sua facticidade normativa, tem dispensado a teoria finalista da ação (e muitas outras) e pode, ainda, continuar sem ela. Os homens que constroem o direito – os homens e os grupos sociais, as sociedades e as nações – necessitam igualmente de espírito crítico para perceber a importância e a preponderância de valores mais elevados, inteiramente libertos, nessa autoconsciência, de um simples "fazer de conta" manipulador de vontades frágeis e inteligências imaturas. Não é com mentiras ou enganos, destruidores, justamente, desse espírito crítico, que se reconstruirá para melhor a correta visão do direito penal, camuflada em nossos dias pela busca de maior "tecnicidade" na conformação estrutural do crime e da pena.
Na lógica do direito o conteúdo prevalece, altaneiro, sobre a forma, ou deveria prevalecer, quando equacionado com retidão. Os apelos da sociedade estão aí, para quem quiser ouvi-los; o homem do povo continua por perto, mostrando pelo avesso os desacertos de legislações arbitrárias e auto-suficientes; fervilham ainda os fermentos da incompreensão, da indiferença e do comodismo.
Por outro lado, a pluralidade do fenômeno jurídico-penal requer um posicionamento realista que nos convide a refletir sobre nossas próprias potencialidades, no que tange à mudança. Também o penalista precisa conscientizar-se da necessidade de um enfoque crítico-sociológico do direito, capaz de redespertá-lo do marasmo do idealismo jusnaturalista e do positivismo legal, hauridos que são em fontes ilusórias. E a constatação empírica e realista de um direito penal essencialmente contraditório está a implicar uma correspondente revisão metodológica em termos de apreensão, estudo e retransmissão acadêmica, inclusive no que concerne à essência do delito e finalidade da pena.
Alguns exemplos? Pois bem, aqui se tratou do sentido e alcance das causas de justificação. Limitemo-nos então às hipóteses de embriaguez e legítima defesa, constantes de Código Penal e sua interpretação judicial, 7ª ed., sob a coordenação de Alberto Silva Franco e Rui Stoco. São Paulo: RT, 2001, p. 413/414:
"O estado de embriaguez, subtraindo do agente a plena integridade de suas faculdades psíquicas, é incompatível com a legítima defesa, que pressupõe a consciência do exercício de um direito" (TJSP – AC – Rel. Antônio Chaves – RT 375/79).
"Não há falar em legítima defesa da honra em relação a ébrio que, ante expressões desabonadoras, desfere pontapé contra ofensor. Na embriaguez não há condições para conscientização do ultraje e seu relacionamento com a honra, a justificar repulsa. O que prevalece é o instinto agressivo liberado pelo álcool" (TACRIM – SP – AC – Rel. Manoel P. Pimentel – JUTACRIM 18/170).
Em sentido contrário:
"O ébrio, como outrem, tem todo o direito de se defender. O fato de ser ébrio ou de encontrar-se alguém alcoolizado não obsta a esse direito, nem (torna) ilegítima sua ação, se exercitada dentro dos limites legais" (TJSP – Rec. – Rel. Silva Leme – RT 599/327 e RJTSP 89/359).
"Não há incompatibilidade entre a legítima defesa e a embriaguez. O fato de achar-se o réu embriagado não o impede de legitimamente defender-se" (TJSP – AC – Rel. Tomaz Carvalhal – RT 396/113).
Nota-se que nem sempre os nossos magistrados se alinham às revoluções conceituais ou programações de sistema de caráter universal. Todos e cada um, aliás, se supõe que julguem de acordo com sua própria consciência e maneira pessoal de apreensão do direito. Em outras palavras, constroem esse direito em estilo e conteúdo possivelmente contraditórios. É que a lógica jurídica, especialmente a judiciária, não se apresenta como uma lógica formal – ensina Chaïm Perelman – mas como "uma argumentação que depende do modo como os legisladores e os juízes concebem sua missão e da idéia que têm do direito e de seu funcionamento na sociedade" (Lógica jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 243).
10. Dogmática ético-social
Na lição de Norberto Bobbio, a ciência consiste na descrição avaliatória da realidade. Fora desse esquema, no âmbito jurídico, "não se fará ciência, mas filosofia ou ideologia do direito" (O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 238).
Que ninguém fuja da realidade. O penalista que se preocupa ainda, quase que exclusivamente, com os segredos e mistérios de uma duvidosa estrutura universal do crime, presta um desserviço a seu País na medida em que afasta os mais jovens de importantes questões convergentes de natureza ético-social. Assume ao contrário postura relevante ao advogar a preeminência destas últimas, em que se inclui, se possível, a dogmática do consenso, postulada no entrechoque das idéias e praticada efetivamente no interminável processo de busca e procura de uma verdade inatingível no seu todo.
Sim, teorias despontam por aí, e até com alguma virtude, quando procuram aproximar o direito penal e processual às conquistas culturais de respeito à dignidade e liberdade do homem. Merecem por isso uma certa consideração. O problema é acreditar que se apresentem com eficiente clareza terminológica que iniba ou dispense o desdobramento do tema em novas distinções e questionamentos.
Na prática, o intérprete é que assume o comando; e o fará, como sempre, a partir de si mesmo, de seu modo pessoal e insubstituível de percepção dos fatos e do direito que repute aplicável.
Não há teoria suficientemente translúcida em seus cânones e proposições a ponto de superar a vagueza e ambigüidade inerente a qualquer sistema normativo. Não há teoria capaz de elidir a subjetividade interpretativa de cada operador jurídico. Não há teoria em condições de revogar a dinâmica social das estruturas políticas e econômicas. Não há teoria que possa desfazer as raízes ou categorias históricas de efetiva construção do direito: força, poder, vontade, liberdade.
O crime ultrapassa o penalista. Reconhecer essa evidência somente incomoda a quem se habituou às próprias ilusões e teme enfrentar a dispersão de uma platéia convencida, enfim, da reversão dos papéis, no verdadeiro e único espetáculo da vida.
Referências bibliográficas
:BASTOS, João José Caldeira. Crimes de perigo individual: interpretação do código penal e anotações crítico-metodológicas. Inédito. Florianópolis: 2007.
Curso crítico de direito penal. Florianópolis: Obra Jurídica, 1998.
Le raisonnement du juriste: contribution à l’étude critique de la dogmatique pénale. Bruxelas: ed. do autor, 1982.
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito (trad.). São Paulo: Ícone, 1995.
DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui (coords.). Código Penal e sua interpretação jurisprudencial, 7ª ed. São Paulo: RT, 2001.
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1958.
LYRA FILHO, Roberto; CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Compêndio de direito penal. São Paulo: José Bushatsky, 1973.
MANN, William; GALWAY, James. A música no tempo (trad.). São Paulo: Martins Fontes, 1987.
MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal, v. 2. São Paulo: Saraiva, 1965.
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 1. São Paulo: Saraiva, 1978.
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica (trad.). São Paulo: Martins Fontes, 1999.
VARGAS, José Cirilo de. Instituições de direito penal: parte geral, t. 1. Belo Horizonte: Del Rey, 1997.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. In: Teoria do injusto penal (prefácio), de Juarez Tavares. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.