Sumário: 1. Introdução. 2. Estrutura jurídica. 2.1. Tipicidade. 2.2. Direito penal: caráter aleatório. 2.3. Dolo de perigo. 2.4. Natureza das coisas. 3. Formas qualificadas. 4. Aumento de pena. 5. Estatuto do idoso. 6. Observações finais.
1.Introdução
Pretendemos neste trabalho realizar uma análise teórico-dogmática do crime de
abandono de incapaz, previsto no art. 133 do Código Penal em vigor. Ele constitui o primeiro dos delitos de perigo individual que comportam, no tipo, uma forma básica ou simples (caput) e duas formas qualificadas, correspondentes à ocorrência de lesão grave (§1º) e morte (§2º). Sobre elas, indistintamente, cabe aumento de pena de um terço, nas hipóteses especificamente delineadas (§3º).
Visível, pois, a importância da matéria, em face da necessidade de se apontar as características e peculiaridades que o distinguem de outros crimes de perigo e, mesmo, de dano: homicídio e lesões corporais, notadamente.
Eis o teor do texto legal:
Art. 133. Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono:
Pena — detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos.
§1º Se do abandono resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena: — reclusão, de 1(um) a 5 (cinco) anos.
§ 2º Se resulta a morte:
Pena: — reclusão de 4 (quatro) a 12(doze) anos.
§ 3º As penas cominadas neste artigo aumentam-se de um terço:
I — se o abandono ocorre em lugar ermo;
II — se o agente é ascendente ou descendente, cônjuge, irmão, tutor ou curador da vítima.
III — se a vítima é maior de 60 (sessenta) anos ( inciso introduzido pela Lei n° 10.161, de 1° de outubro de 2003)
Vejamos, em detalhes, à luz da doutrina, o sentido e alcance das expressões normativas.
Por certo que haverá divergências. Mas elas fazem parte do cenário natural de uma atividade em si mesmo contraditória, por força da própria linguagem da lei e do jogo personalizado de valorações e sensibilidades.
2. Estrutura jurídica
Trata-se de crime próprio, no sentido de infração que exige qualidades especiais do agente. No caso, em razão de seus vínculos com a vítima. Assim, a vítima é pessoa que se encontra sob cuidado, guarda, vigilância ou autoridade do sujeito ativo; daquele que, em tais condições, dela se afasta fisicamente, abandonando-a.
Fala-se em relação jurídica de cuidado quando alguém tem o encargo de zelar, nas circunstâncias, pela saúde e integridade física de outrem; de guarda, quando a obrigação é mais envolvente, diante da incapacidade natural ou relativa da outra parte; de vigilância, quando a obrigação se restringe a um compromisso ocasional de observação e proteção acautelatória; de autoridade, na hipótese de um poder-dever de mando e orientação, vinculado a normas de direito público ou direito privado. Basta qualquer uma dessas relações para que ocorra o delito. O comum, porém, é que elas coexistam, ao menos em parte. O pai, por exemplo, no que tange ao filho menor, com quem sai a passeio, mantém sobre ele deveres de cuidado, vigilância, guarda e autoridade.
Os cônjuges entre si e o médico em face de seu paciente assumem deveres de cuidado. O diretor da penitenciária tem a guarda (custódia) dos sentenciados e sobre eles exerce autoridade, nos termos e limites da lei. O guia turístico de uma expedição arriscada deve conservar sua proteção (vigilância) até o final de seu trabalho.
Quem oferece carona em seu carro a uma pessoa inválida assume compromisso de guarda e vigilância: não pode deixá-la em lugar perigoso, do qual se afaste voluntariamente. O conceito de guarda, por sua "inquestionável flexibilidade no campo penal", inclui igualmente as hipóteses de "qualquer situação fática devidamente demonstrada", como lembra Silva Franco (Tortura: breves anotações sobre a Lei 9.455/97, Revista Brasileira de Ciências Criminais, n° 19, jul./dez. 1997, p. 61, São Paulo: RT).
O denominador comum é a preexistência de um vínculo jurídico — diretamente imposto por lei ou derivado de um contrato e até mesmo de uma conduta unilateral do agente — a caracterizar a defesa dos interesses de quem viria a sofrer os "riscos resultantes do abandono". Quase sempre a vítima é uma criança, de quem se livram os familiares, mas nada impede, como se viu, que adultos inclusive saudáveis se enquadrem nessa condição. Basta que sofram efetivamente a situação de perigo para a vida ou saúde provocado por quem tinha o dever prévio de garantir-lhes a incolumidade pessoal.
A materialidade do delito, que é de perigo concreto, reside no ato de afastar-se da vítima, colocando-lhe em risco a vida ou a saúde. "A ação consiste — ensina Custódio da Silveira — em abandonar, quer dizer, afastar-se da vítima, de modo a deixá-la indefesa e em situação perigosa, ainda que por breve instante"(Direito penal: crimes contra a pessoa, 2ª ed. São Paulo: RT, 1973, p. 183).
Exige-se, portanto, haja vista a gravidade da conduta, o distanciamento físico entre réu e ofendido. O sujeito ativo se aparta da pessoa da vítima, que permanece onde de hábito se encontrava (sozinha em sua casa, por exemplo), ou a leva propositadamente para outro local, em que é exposta a perigo por força do conseqüente abandono. É a lição de Nélson Hungria (Comentários ao código penal, v. 5. Rio de Janeiro: Forense, 1942, p. 384), seguida dentre outros por Damásio de Jesus (Direito penal, v. 2, 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 145), Paulo José da Costa Jr. (Comentários ao código penal, v. 2. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 58), Celso Delmanto (Código penal comentado, 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1988, p. 254), Fabbrini Mirabete (Manual de direito penal, v. 2, 9ª ed. São Paulo: Atlas, 1995, p. 130) e José Frederico Marques (Tratado de direito penal, v. 4. São Paulo: Saraiva, 1961, p. 314).
Mas o próprio Custódio da Silveira, mais adiante, parece aumentar o campo de incidência da norma: "Consubstancia-se o abandono em toda e qualquer ação ou omissão contrastante com a obrigação de assistir, cuidar ou custodiar" (p. 184/185). Haveria agora uma interpretação extensiva, desde que se dispensasse o afastamento físico ou material.
Esclarecemos que tal interpretação extensiva não decorre do fato de o art. 133 mencionar apenas o ato de abandonar, diferentemente do que se passa com o art. 134, que fala em expor ou abandonar. Afinal, é compreensível que o abandono, por si só, abranja a exposição, termo que se prende à idéia de colocar em perigo. Todavia, parece-nos duvidoso que o legislador, além da hipótese de exposição, incluída no ato de abandonar, tenha majorado ainda mais em seu "espírito" o significado e abrangência do delito.
Heleno Fragoso, no entanto, adota a mencionada exegese extensiva, em prejuízo do réu. Para justificar essa "conceituação mais ampla ao abandono", compatível com a "omissão de custódia e cuidado", ainda que inexistente a "separação material", ele se socorre da "doutrina moderna": Manzini e Maggiore, na Itália; Paul Logoz, na Suíça; e, na Alemanha, Schönke-Schröder e Maurach (Lições de direito penal: parte especial, v. 1, 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 153/154).
Também Aníbal Bruno: o afastamento da vítima "não é de todo necessário. Basta que (o agente) não lhe dê o socorro ou a assistência, como devia e lhe era possível fazer, criando por esse meio o perigo. É o que realiza o enfermeiro que está presente, mas deliberadamente e com o dolo necessário não presta ao doente grave a seu cargo, os cuidados devidos, configurando-se, porém, o crime não pela falta ao cumprimento do dever, mas por abandono de pessoa, com os riscos que daí decorrem" (Direito penal, v. 4. Rio de Janeiro: Forense, 1966, nota de rodapé n° 4, p. 241/242).
Autores mais recentes abonam a assertiva: Cezar Roberto Bitencourt, Manual de direito penal, v. 2, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 275; Flávio Augusto Monteiro de Barros, Crimes contra a pessoa. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 133/134; Wiliam Wanderley Jorge, Curso de direito penal, v. 2. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 190.
Para Ney Moura Teles existe o crime se o agente, mesmo quando se mantém próximo da vítima, "simplesmente deixa de realizar as ações necessárias à sua proteção" (Direito penal: parte especial, v. 2. São Paulo: Atlas, 2004, p. 234).
Ora, além de adotar-se uma exegese que de modo algum deflui do texto legal, descreve-se uma conduta tipicamente omissiva, prevista no art. 136, caput (privação de cuidados indispensáveis), cuja pena é menos grave, de 2 (dois) meses a 1 (um) ano de detenção, ou multa. Data venia, deve-se pois preferir a velha modernidade do nullum crimen sine praevia lege, de nível constitucional (CF, art. 5°, XXXIX), superior à norma de equivalência preconizada por Sebastián Soler, na Argentina, e avalizada por Heleno Fragoso: abandono sem separação no espaço que "equivalha a tal separação" (p. 154). Essa equivalência, por justa que pareça, não provém do sistema normativo. Não cabe, no Brasil, analogia in malam partem. Sobretudo se a hipótese se enquadra, à perfeição, em outro dispositivo legal, menos gravoso.
Note-se que todo e qualquer dolo de perigo em verdade corresponde à culpa de dano (culpa consciente), quando ocorre dano. Em havendo morte, no caso dos arts. 133 e 136, a resposta punitiva é severíssima: reclusão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, equiparada à pena da lesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3°). Assim, ou o enfermeiro quer matar ou assume o risco de matar e, cruzando os braços, assiste ao desenlace (homicídio doloso); ou apenas se omite com dolo de perigo, incidindo nas penas do art. 136, § 2°. Não se cogita aqui de omissão de socorro (art. 135, parágrafo único) em razão do vínculo jurídico prévio do enfermeiro (CP, art. 13, § 2º, b), que o torna diretamente responsável pelo resultado: homicídio doloso, culposo ou preterdoloso, em sentido amplo (neste último caso, desde que tenha havido abandono — art. 133 — ou maus-tratos — art. 136).
O abandono realizado "de corpo presente" lembra, como vimos, raciocínio analógico, inconfundível com exegese extensiva. Esse tipo de "abandono" já tem nome no Código Penal: perigo para a vida ou saúde de outrem (art. 132); omissão de socorro (art. 135); maus-tratos (art. 136). O réu, portanto, não ficaria impune.
O enquadramento típico no art. 133 só se justifica se o enfermeiro, por exemplo, arrisca ir ao cinema, tendo consciência — e nada mais do que isso — de que o paciente, que não está morrendo, pode precisar seriamente de sua assistência. Aí, sim, existe abandono, e não é dos piores, pois está previsto o retorno às atividades. O abandono por excelência se passa com ânimo definitivo, ânimo de afastamento duradouro, e ainda com o significado de uma obrigatória situação de perigo dele decorrente. Quer dizer: em regra, é o afastamento físico, a separação, o abandono, que provoca o resultado de perigo. O texto é explícito: riscos resultantes do abandono. Este é que materializa o evento (o perigo) que a lei desde logo quer evitar, sob ameaça de pena.
Qual delito comete o pai que, em seu lar, sabendo das crises alérgicas do filho pequeno, e notando naquela noite os primeiros sintomas, permite que os companheiros, durante horas e horas, prossigam no enfumaçado jogo de cartas? Pode-se falar no "abandono" do art. 133? Não. Em princípio, ele pratica o delito do art. 136, caput. A privação de cuidados indispensáveis (omissão) se torna ainda mais nítida com a continuidade da conduta perigosa dos demais, que aumenta a necessidade de uma assistência persistentemente negada.
Mais: se o menor se encontra gravemente enfermo e o pai, dolosamente, deixa de socorrê-lo, prevalece uma outra figura delituosa, de abandono material (CP, art. 244, in fine). Esse detalhe constitui outro indício de que o art. 133 tem como característica própria o fato de um afastamento físico precedente de que resulta a situação de perigo preconizada em lei. Já o delito do art. 244 pode ser cometido independentemente de qualquer proximidade ou afastamento corporal entre réu e vítima. É suficiente que o réu tome conhecimento da gravidade da doença e da possibilidade e necessidade de sua intervenção pessoal. Diante desse quadro, deixa de socorrer o menor.
E se a criança morre, no quadro há pouco descrito (art. 244)? Descartado o dolo de homicídio, só se pode cogitar do art. 121, § 3°, por força dos princípios da subsidiariedade implícita e da consunção. Com muito exagero, mas aparentemente sem base jurídico-dogmática: concurso formal de crimes (arts. 121, § 3°, e 244, c/c art. 70). Reconhecida, porém, desde o início, a figura do art. 133 (apesar da regra especial do art. 244), ter-se-ia o absurdo de uma punição bem mais severa, haja vista o disposto nos parágrafos 2° e 3°, inciso II.
Veja-se também o delito subseqüente (art. 134). Trata-se de um tipo privilegiado do art. 133. O fim de "ocultar desonra própria" não deixa a menor dúvida sobre o único sentido de "expor ou abandonar": o voluntário afastamento físico do recém-nascido, detalhe que se torna ainda mais nítido quando se toma conhecimento da forma qualificada concernente ao lugar ermo (art. 133, § 3°, I).
Há, pois, uma outra maneira de interpretação do tipo legal. Vários penalistas já foram expressamente mencionados, no início. Mas é bom e útil perceber, na atualidade, autores que endossam a tese há pouco defendida. Para Edilson Mougenot Bonfim, por exemplo, "o abandono deve ser real, i. é, traduz-se pela separação física, distanciamento entre o protetor e o protegido" (Direito Penal 2, São Paulo: RT, 2005, p. 53). Dentre outros, de modo semelhante: Rogério Greco (Curso de direito penal: parte especial. Niterói: Ímpetus, 2005, p. 389); Rogério Sanches Cunha (Direito penal: parte especial. São Paulo: RT, v. 2, 2006, p. 108).
Qual a lição que se pode colher dessa divergência? Afinal de contas, ela existe desde a vigência do Código, em 1942; atravessa o século 20; e alcança os nossos dias, em 2007.
2.2. Direito penal: caráter aleatório
A divergência em questão, ao lado de milhares de tantas outras, acaba ilustrando o caráter aleatório do direito penal. De um direito penal a depender, em última instância, em todos os seus tópicos, do grau de perspicácia, vontade e liberdade do intérprete com poder decisório, e não do efetivo cumprimento das instruções do legislador.
Daí a importância de uma visão crítico-metodológica do direito penal. Conforme assinala, corretamente, Christiano José de Andrade, a hermenêutica jurídica crítica "torna o intérprete um criador de sentidos, uma instância ideológica de atribuição de significados heterônimos, um revelador de pressupostos ideológicos das expressões normativas; enfim, o intérprete torna-se, na prática, a única e autêntica fonte do direito" (Hermenêutica jurídica no Brasil. São Paulo: RT, 1991, p. 258).
Entretanto, não se dá muita atenção ao tema, no âmbito do direito penal, no Brasil.
2.3. Dolo de perigo
Não há dúvida de que se está diante de crime de perigo no que tange à intenção do agente, que se limita ao abandono. O agente quer o abandono ou assume o risco de produzi-lo.
E se o sujeito ativo, através do abandono, pretende ofender a integridade corporal da vítima, que permanece ilesa? Curiosamente, Aníbal Bruno desloca o assunto para uma solução altamente benéfica para o acusado: tentativa de lesão corporal (ob. cit., p. 245). Ou seja, em princípio, detenção de 3 meses a 1 ano (art. 129, caput) diminuída de um a dois terços (art. 18, II). Segue-se que, consumada a lesão corporal, esta é que prevaleceria, em suas várias modalidades.
Sem muita clareza ou precisão, Nélson Hungria afirma que "o dolo distintivo do crime em exame é a vontade consciente de expor a perigo, com o abandono contrário ao especial dever de assistência, a vida ou saúde do sujeito passivo. É irrelevante o fim do agente; mas, se constitui o dolo específico de outro crime, este é que deve ser reconhecido, quando não seja o caso de um concurso de crimes" (ob. cit., p. 388).
É irrelevante o fim de ferir, de ofender a saúde da vitima? Qual é o crime que, por seu dolo específico, deve ser reconhecido com exclusividade? Quando é que ocorre concurso de crimes?
Por mais que se busque no baú das técnicas hermenêuticas a fórmula única e preponderante (especialidade, subsidiariedade, consunção, bis in idem, lógica do razoável, relação crime-fim/crime-meio, fato posterior impunível etc.), a verdade é que o legislador, neste caso, não oferece pista segura para o deslinde do problema. Ou então, com seu silêncio, que é aparente, estaria a dizer que as regras gerais permanecem de pé. Sendo assim, Aníbal Bruno parece ter razão, pois segue as instruções do sistema. E talvez tenha sido esta a posição de Nélson Hungria.
Enfrenta-se dificuldade similar com relação ao delito do art. 132. Este exige dolo de perigo, nada mais do que dolo de perigo. Por isso, quem tenta ofender a saúde de outrem, e não atinge o corpo da vítima, também se vê beneficiado, já que a tentativa de lesão corporal indica pena bem mais suave do que o delito consumado de perigo (art. 132).
Quanto a essa hipótese, e concordando, eis a observação de Heleno Fragoso: "Se a vontade do agente transcende à simples periclitação, ou seja, se o propósito do agente é causar dano, deverá reconhecer-se uma tentativa (de homicídio ou de lesões corporais, conforme o caso)" (ob. cit., p. 151).
Semelhantemente, se o dolo é de lesão corporal, não há como enquadrar o fato, de início, no art. 133. O crime de lesão corporal tem autonomia. Caso ocorram lesões graves ou morte, persiste o comando do art. 129 (parágrafos 1°, 2° e 3°), mesmo que eventualmente beneficie o acusado, no cotejo com outros dispositivos legais. Sabe-se até que a lesão corporal leve consumada tem penas menores do que as do art. 133, caput. Pouco importa. Não se corrige a lei através de sua substituição por aquilo que se considera mais sensato ou razoável. A menos, é claro, que não se queira respeitar o princípio constitucional da legalidade dos crimes e das penas.
É evidente que se poderia dizer, em tese, que o dolo de lesão corporal e com mais razão o de homicídio envolve o perigo do resultado. Quem quer a lesão ou a morte quer o perigo correspondente.
Só que, a partir do instante em que se aceita o argumento, fica totalmente subvertido o jogo básico da hermenêutica jurídica, ou seja, o de respeito à vontade objetiva do sistema. Também não se pode matar sem provocar lesão corporal. Quem quer matar, quer necessariamente ferir. Quando se admite em figuras delituosas como as dos arts. 132 e 133, dentre outras, tanto o dolo de dano como o dolo de perigo, então se está complicando e embaralhando ainda mais as confusas regras preceptivas de um Código reputado moderno e que repele, na Exposição de Motivos, o animus necandi ou o animus laedendi (item 46).
Lesão corporal grave preterdolosa, associada a dolo de lesão corporal leve, já existe no art. 129, §§ 1° e 2°. Homicídio preterdoloso, associado a dolo de lesão corporal, leve ou grave, já existe no art. 129, § 3°. As formas qualificadas do art. 133 pressupõem ausência de dolo de dano. Fala-se genericamente em homicídio e lesão corporal grave preterdolosos, na hipótese do art. 133, porque os resultados são culposos, em termos de lesão corporal ou morte, e porque preexiste a figura de um abandono doloso (dolo de perigo). Há um só e único delito, embora de caráter híbrido (dolo de perigo; culpa de dano).
2.4. Natureza das coisas.
Em suma, nem sempre a "natureza das coisas" informa o arcabouço estrutural de um sistema normativo que encontra em si mesmo as razões e princípios dogmáticos, mais ou menos arbitrários, de sua formulação histórica. O dogma é a lei, não a "natureza das coisas".
Obra humana, superlativamente humana em termos de linguagem, técnica e conteúdo, um código penal está longe de alcançar coerência ideológica e uniformidade sistemática. O legislador, não raro, por descuido ou imprevisão, deixa lacunas que destoam do bom senso, ou sinaliza para soluções que não correspondem ao que se poderia chamar de "justo objetivo".
Além disso, Artemio Zanon, ao tratar da interpretação da lei, refere-se com realismo crítico a uma "ciência viva" que se encarrega de continuamente recriar a norma penal. Trata-se de tarefa de todo e qualquer jurista, e sobretudo do julgador. Nesse mister, procede-se "até mesmo, vezes e vezes, sob o domínio de uma ideologia, senão de uma paixão" (Introdução à ciência do direito penal. Florianópolis: Obra Jurídica, 1997, p. 64).
Daí a pergunta: pode a lei ser corrigida, ou reinterpretada, aqui e ali, pelo operador jurídico, em nome de princípios outros, de ordem racional? Uma resposta mais ou menos precisa e minuciosa extrapola os limites deste artigo. Registramos apenas, de passagem, que são muitos os que assim atuam na prática doutrinária e judicial. E se isso ocorre efetivamente, que se perceba então, mais uma vez, a relevância do operador jurídico como fonte histórica do direito penal, mesmo que essa fonte signifique eventual prejuízo para quem senta no banco dos réus.