UNIÃO ESTÁVEL DO SEPTUAGENÁRIO
O direito brasileiro adota alguns regimes de bens no casamento, a saber: comunhão parcial de bens, comunhão universal de bens, separação legal de bens (convencional e obrigatório) e a participação final nos aquestos.
Especificamente quanto ao regime da Separação Obrigatória de Bens, o artigo 1.641 do Código Civil impõe que a pessoa maior de setenta anos, os que dependerem de suprimento judicial para casar e as pessoas que contraírem o casamento com inobservância das causas suspensivas da sua celebração, devem adotar esse regime de forma obrigatória. Com isso, em termos práticos, significa que o patrimônio dos cônjuges não se mistura.
Quanto aos maiores de setenta anos, a norma tem por objetivo, embora contestável, a proteção do patrimônio dessas pessoas sob o argumento de que eles são vulneráveis.
A constitucionalidade do artigo 1.641 do Código Civil referente aos maiores de 70 anos foi bastante discutida, tendo, inclusive, posições de Tribunais que declararam este dispositivo inconstitucional por violação à dignidade da pessoa humana.
Sobre a união estável, seu conceito vem descrito no artigo 1.723 do Código Civil Brasileiro. Entretanto, o artigo 1.725 dispõe que: “na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens”.
Portanto, como regra geral, na união estável o regime de bens é o da comunhão parcial. E como fica a questão do septuagenário convivente, já que para o casamento existe norma específica que impõe a obrigatoriedade do regime da separação de bens? Aplica-se por analogia a regra do casamento? É uma exceção?
O tema chegou às Instâncias Superiores e em vários julgados o STJ decidiu que o regime imposto na união estável quando envolve pessoas maiores de 70 anos é o da separação obrigatória de bens, ou seja, a mesma aplicada para o casamento.
Nos precedentes, a Corte Superior indica que a “ratio legis foi a de proteger o idoso e seus herdeiros necessários dos casamentos realizados por interesse estritamente econômico, evitando que este seja o principal fator a mover o consorte para o enlace. (...) A Segunda Seção do STJ, seguindo a linha da Súmula n.º 377 do STF, pacificou o entendimento de que apenas os bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, e desde que comprovado o esforço comum na sua aquisição, devem ser objeto de partilha” (Resp 1689152/SC, julgado em 24/10/2017).
De igual forma, podemos citar os julgados Resp 1403419/MG, Resp 1369860/PR e Resp 1171820/PR, que formaram os precedentes originários para que o Superior Tribunal de Justiça editasse a Súmula 655, pacificando o tema, cujo Enunciado assim dispõe:
“Aplica-se à união estável contraída por septuagenário o regime da separação obrigatória de bens, comunicando-se os adquiridos na constância, quando comprovado o esforço comum”. (Segunda Seção, julgado em 09/11/2022, DJe 16/11/2022).
Em recentes acórdãos posteriores à Súmula, a Corte Superior enfrentou o tema e por unanimidade decidiu pela sua incidência, cujas ementas são as seguintes:
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL POST MORTEM. PERÍODO ANTERIOR AO CASAMENTO. CAUSA SUSPENSIVA DE UNIÃO ESTÁVEL ATÉ O DIVÓRCIO. CASAMENTO PELO REGIME DE SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS. PROTEÇÃO AO IDOSO.
1. Inexiste a alegada violação dos arts. 489 e 1.022 do CPC, visto que o Tribunal de origem efetivamente enfrentou toda a questão levada ao seu conhecimento.
2. Cuida-se, na origem, de ação declaratória de reconhecimento de união estável cumulada com petição de herança, julgada parcialmente procedente pelo Juízo de primeiro grau. O Tribunal de origem, ao dar parcial provimento aos recursos das partes, entendeu pela não comprovação da existência de união estável desde 1990, mas apenas a partir de 1993.
3. Impossibilidade de revisão da premissa de comprovação da união estável apenas a partir de 1993, em razão do óbice da Súmula n. 7/STJ. Evidente a ocorrência de causa suspensiva de união estável até a data do divórcio.
4. A união estável entre a recorrente e o de cujus se iniciou antes do divórcio deste, na vigência de restrição legal prevista no art. 1.523, inciso III, do Código Civil. Apenas a partir do divórcio afastar-se-ia a obrigatoriedade da separação de bens. Contudo, em 2015, o de cujus já contava com 73 anos de idade, razão pela qual, nos termos do art. 1.641, II, do Código Civil, deve ser observado o regime de separação total de bens.
5. De acordo com a redação originária do art. 1.641, II, do Código Civil de 2002, vigente à época do início da união estável reconhecida, impõe-se ao nubente ou companheiro sexagenário o regime de separação obrigatória de bens. Precedentes. Agravo interno improvido. (AgInt no REsp 2060732/SP Agravo Interno no Recurso Especial 2023/0077725-2 - RELATOR Ministro HUMBERTO MARTINS - ÓRGÃO JULGADOR T3 - TERCEIRA TURMA - DATA DO JULGAMENTO 11/09/2023 DATA DA PUBLICAÇÃO/FONTE DJe 13/09/2023)
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE INVENTÁRIO. OMISSÃO SOBRE QUESTÃO CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. OMISSÃO E CONTRADIÇÃO SOBRE A INCIDÊNCIA DA SÚMULA 377/STF. INOCORRÊNCIA. QUESTÃO DECIDIDA DE FORMA EXPRESSA E CLARA. OMISSÃO SOBRE PRECLUSÃO. OCORRÊNCIA. NULIDADE DO JULGADO. DESNECESSIDADE. PRIMAZIA DA RESOLUÇÃO DO MÉRITO. EXISTÊNCIA DE PRECEDENTE CONTRÁRIO À TESE RECURSAL. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA PROFERIDA COM BASE NO ART. 1.790 DO CC/2002. SUPERVENIÊNCIA DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DA REGRA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADEQUAÇÃO À NOVA REALIDADE NORMATIVA. POSSIBILIDADE. MODULAÇÃO DE EFEITOS. APLICABILIDADE DA TESE ÀS AÇÕES DE INVENTÁRIO EM CURSO. REGIME DA SEPARAÇÃO DE BENS ENTRE OS SEPTUAGENÁRIOS. APLICABILIDADE À UNIÃO ESTÁVEL. COMUNICAÇÃO DE BENS ADMITIDA, DESDE QUE COMPROVADO O ESFORÇO COMUM. INOCORRÊNCIA NA HIPÓTESE. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL PREJUDICADO. ACÓRDÃO RECORRIDO CONFORME JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE. SÚMULA 83/STJ.
1- Ação de inventário proposta em 12/09/2007. Recurso especial interposto em 08/09/2020 e atribuído à Relatora em 10/02/2022.
2- Os propósitos recursais consistem em definir: (i) se há omissões e contradição relevantes no acórdão recorrido; (ii) se o direito de meação da recorrente teria sido objeto de decisão anterior acobertada pela preclusão; (iii) se o art. 1.641, II, do CC/2002, que impõe o regime da separação de bens ao casamento do septuagenário, aplica-se à união estável; (iv) se, na hipótese, incide a Súmula 377/STF, de modo a ser cabível a partilha dos bens adquiridos a título oneroso durante a união estável; (v) se o direito à meação seria fato incontroverso e dispensaria a produção de prova; e (vi) se houve dissídio jurisprudencial.
3- Cabe ao Supremo Tribunal Federal, e não ao Superior Tribunal de Justiça, examinar a suposta ocorrência de omissão sobre a alegada inconstitucionalidade do art. 1.641, II, do CC/2002, uma vez que compete exclusivamente àquela Corte examinar a pertinência e a relevância da questão constitucional suscitada pela parte para o desfecho da controvérsia.
4- Não há omissão e contradição no acórdão recorrido que examina, de forma expressa e clara, a matéria relativa à incidência da Súmula 377/STF suscitada pela parte.
5- Conquanto existente a omissão sobre a alegada ocorrência de preclusão, supostamente ocorrida em virtude de anterior decisão interlocutória, proferida antes do julgamento do tema 809/STF, em que teria sido reconhecido o direito à meação pleiteado pela parte, a jurisprudência desta Corte se consolidou no sentido de que, em homenagem ao princípio da primazia da resolução de mérito, não se deve decretar a nulidade do julgado e determinar o retorno do processo à Corte estadual para que supra omissão sobre uma questão que já foi objeto de posicionamento desta Corte em oportunidade anterior. Precedente.
6- Em ação de inventário, o juiz que proferiu decisão interlocutória fundada no art. 1.790 do CC/2002 estará autorizado a proferir uma nova decisão a respeito da matéria anteriormente decidida, de modo a ajustar a questão sucessória ao superveniente julgamento da tese firmada no tema 809/STF e à disciplina do art. 1.829 do CC/2002, uma vez que o Supremo Tribunal Federal modulou temporalmente a aplicação da tese de modo a atingir os processos judiciais em que ainda não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha. Precedente.
7- A regra do art. 1.641, II, do CC/2002, que estabelece o regime da separação de bens para os septuagenários, embora expressamente prevista apenas para a hipótese de casamento, aplica-se também às uniões estáveis. Precedentes.
8- No regime da separação legal, comunicam-se os bens adquiridos na constância do casamento ou da união estável, desde que comprovado o esforço comum para sua aquisição. Precedentes.
9- Na hipótese, o acórdão recorrido, soberano no exame da matéria fático-probatória, concluiu que não houve prova, sequer indiciária, de que a recorrente tenha contribuído para a aquisição dos bens que pretende sejam partilhados e que pudesse revelar a existência de esforço comum, a despeito de à parte ter sido oportunizada a produção das referidas provas, ainda que em âmbito de cognição mais restritivo típico das ações de inventário.
10- Prejudicado o exame do alegado dissídio jurisprudencial, na medida em que a orientação do acórdão recorrido está em plena sintonia com a jurisprudência firmada nesta Corte. Aplicabilidade da Súmula 83/STJ.
11- Recurso especial conhecido e não-provido. (REsp 2017064/SP RECURSO ESPECIAL 2021/0336326-8 RELATORA Ministra NANCY ANDRIGHI - ÓRGÃO JULGADOR T3 - TERCEIRA TURMA - DATA DO JULGAMENTO 11/04/2023 - DATA DA PUBLICAÇÃO/FONTE DJe 14/04/2023)
Por fim, a Súmula 655 está vigente e determina o regime da separação de bens entre os septuagenários que mantém união estável, apenas admitindo-se a comunicação dos bens quando comprovado o esforço comum. O tema foi sumulado pela Corte Superior visando a proteção do idoso e os seus herdeiros contra as uniões estritamente por interesses patrimoniais.
Entretanto, a sociedade evolui a passos largos e o que outrora era visto como vulnerável, hoje em dia já não o poderá ser. Doenças são tratadas, medicações aparecem a todo o instante e a qualidade de vida tende a melhorar com o passar do tempo.
Portanto, considerar uma pessoa vulnerável apenas porque possui mais de 70 anos de idade, impondo-lhe obrigações legais como no caso do regime de bens, é tirar a capacidade de discernimento de um idoso que muitas vezes possui melhor compreensão de vida do que um recém maior de idade. As demandas que chegam ao Judiciário envolvendo os septuagenários deveriam ser apreciadas caso a caso, não tendo o fator idade como pressuposto de imposição de regime de bens e sim o discernimento da pessoa idosa.