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O impacto da declaração de Cartagena de 1984 no número de deferimentos dos pedidos de refúgio no Brasil

Agenda 21/11/2023 às 10:54

Resumo: para além de enveredar, de forma breve, pela temática dos deslocamentos humanos no decorrer da história, bem como pelas mutações que estas ações, deliberadas ou forçadas, sofreram desde a pré-história até os dias atuais, o presente trabalho busca analisar as etapas anteriores à institucionalização do refúgio, sua proteção internacional e seu tratamento em âmbito regional, especialmente na América Latina. Com a Declaração de Cartagena de 1984, da qual o Brasil é signatário, e, posteriormente, com a publicação da Lei nº. 9.474/1997, ocorre considerável ampliação daquele que pode ser considerado refugiado, suplantando o que fora previsto, inicialmente, na Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e no Protocolo de 1967. A ampliação do conceito acabou por fundamentar grande parte dos pedidos de refúgio deferidos pelo Brasil, especialmente dos nacionais venezuelanos. Assim, em que pese o Brasil não representar, dentro do contexto global, um grande receptor dos pedidos de refúgio, um número vultoso de admissões no país só foi possível em razão das regras acordadas na Colômbia, quando da assinatura da Declaração de Cartagena.

Palavras-chave: Deslocamentos humanos. Refúgio. Instrumentos internacionais de proteção do refugiado. Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). Convenção de 1951. Protocolo de 1967. Declaração de Cartagena de 1984. Lei nº. 9.474/1997. Refugiados no Brasil. Grave e generalizada violação de direitos humanos.

Introdução

Se os deslocamentos dos seres humanos pelas mais diversas regiões do planeta remontam à pré-história, seja por motivos de subsistência ou em razão de adversidades ambientais, tais condutas só ganharam ares de institucionalidade na Idade Moderna, quando a formação dos Estados Nacionais passou a dividir os territórios mediante fronteiras políticas.

Receber estrangeiros, antes uma liberalidade estatal, passou a demandar, com o final das grandes guerras mundiais, maior proteção internacional com o objetivo de regulamentar as situações surgidas, bem como o ingente número de pessoas deslocadas, motivadas por perseguições variadas.

Poucos anos após a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) foi formalmente adotada, em 1951, a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, não obstante referido instrumento possuía muitos limites – especialmente de ordem temporal e geográfica – que acabavam por não absorver a maior parte dos indivíduos deslocados ao redor do planeta.

Somente em 1967, com a assinatura do Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados, caíram parte das citadas limitações, passando a ser considerado refugiado, independentemente da procedência ou período, qualquer pessoa que fosse vítima de perseguição motivada por opiniões políticas, raça, religião, grupo social ou nacionalidade.

A Convenção e o Protocolo, influenciados pelo contexto político e pela centralidade europeia na época, região onde se desenrolou a maior parte dos conflitos derivados das guerras mundiais, só tratou, como fundamento para a concessão do refúgio, da violação dos direitos civis e políticos (primeira dimensão dos direitos humanos), olvidando-se dos direitos econômicos e sociais (segunda dimensão dos direitos humanos).

Foi dentro deste contexto que países latino-americanos, reunidos na Colômbia, firmaram a Convenção de Cartagena de 1984, que incorporou, além do fundamento preexistente na Convenção e no Protocolo, isto é, “perseguição”, a “grave e generaliza violação de direitos humanos” como a mais nova condição apta a reconhecer a condição de refugiado.

Com base no novel fundamento, o Brasil, signatário da Convenção de Cartagena, promoveu modificações nas normas internas e, consequentemente, recebeu a maior parte do número de refugiados admitidos no país desde então.

Dessa maneira, patente o papel determinante da Convenção de Cartagena no volume de refugiados recebidos, oficialmente, pelo Brasil. Pode-se dizer que, sem as diretrizes de Cartagena, o Brasil teria contribuído, com números pífios, para a solução dos problemas provenientes dos deslocamentos forçados.

2. Os deslocamentos humanos e o surgimento dos instrumentos internacionais de proteção do refugiado

O deslocamento territorial de pessoas vem ocorrendo desde muito na história da humanidade. Os povos pré-históricos, por exemplo, tinham, em grande parte, um modelo de vida alicerçado no nomadismo, movendo-se, constantemente, em razão de adversidades climáticas ou em busca de recursos para sobreviver, posto serem povos caçadores-coletores. Essa instabilidade, enquanto regra, só veio a se modificar quando o homem começou a dominar a prática da agricultura, passando a ter o controle dos recursos da terra, dando início ao processo de formação de vilas e comunidades.

Na idade média, com a concentração de pessoas em espaços territoriais delimitados, o fenômeno persistiu por motivos econômicos, comerciais, guerras ou conflitos. O aumento da intolerância religiosa, promovendo fugas das perseguições, também caracterizou o período medieval. Quanto a isso, observam BARICHELLO e ARAUJO (2015, p.108, apud FISCHEL DE ANDRADE, 2001. p. 105) que:

Os séculos X a XIII revelaram uma forte perseguição a diversas minorias, como judeus, hereges e leprosos, segundo a decisão dos príncipes e prelados. O fim do século XIII e os posteriores séculos XIV e XV foram marcados pela dispersão dos judeus rumo ao norte da África, a países europeus, Itália, Turquia, países baixos e a possessões holandesas, espanholas e portuguesas em territórios americanos.

Foi no início da Idade Moderna, marcada pela expansão marítima europeia, que os descolamentos se deram, numerosamente, para a ocupação e colonização dos novos territórios. Além dos imigrantes europeus que, por iniciativa própria, decidiram aventurar-se no continente recém descoberto, o período também foi caracterizado pelo intenso deslocamento forçado de escravizados. Segundo o historiador José Moya (MOYA, 2018, p. 38), estima-se que, aproximadamente, 12 milhões de africanos foram trazidos para as Américas de maneira forçada entre 1492 e meados do século XIX, representando um dos maiores movimentos massivos na história da humanidade.

O transporte forçado de 12 milhões de africanos através do Atlântico, entre 1492 e meados do século XIX, excedeu em quatro vezes o número de chegados da Europa e representa o primeiro movimento transoceânico verdadeiramente massivo na história da humanidade. A América Latina recebeu 58% desse influxo atroz, com 45% direcionado ao Brasil e 13% à América espanhola. (MOYA, 2018, p. 38)

Somente no início da Idade Moderna, no contexto de intolerância contra minorias e ausência de regras para o acolhimento de pessoas, que surge o conceito de asilo, especialmente após a Revolução Francesa, quando o povo francês declarou que daria asilo aos estrangeiros banidos de seus países por estarem sendo injustamente perseguidos. Segundo BARICHELLO e ARAUJO (2015, p.110, apud FRANCE, 2013; SÉGUR, 1998):

Nesse contexto se encontra o embrião do conceito moderno de asilo político que foi, pela primeira vez, proclamado numa constituição europeia, ou seja, na Constituição Republicana Francesa de 24 de Junho de 1793, a qual subscreve, no seu artigo 120º, que o povo francês “dá asilo aos estrangeiros banidos da sua pátria pela causa da liberdade. Recusa-o aos tiranos”

O instituto do refúgio em si, só surge no início do século XX, mais precisamente na década de 20, no âmbito da Liga das Nações, tendo em vista a preocupação com o alto número de pessoas que fugiam da recém-criada União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. (JUBILUT, 2007. P. 73)

Antes disso, a assistência às pessoas em deslocamento forçado era tratada no âmbito do direito internacional humanitário, mais exatamente pela Cruz Vermelha.2

Apesar de dar destaque à questão das minorias, a Cruz Vermelha não trazia – em seu estatuto – a problemática dos refugiados, entretanto diante da situação concreta, estabeleceu, no ano de 1921, o Alto Comissariado para os Refugiados Russos. Ocorre que, este Comissariado tinha competência limitada às pessoas de origem russa, não contemplando o crescente número de indivíduo de outras nacionalidades que buscavam proteção.

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O alargamento da competência do Alto Comissariado só ocorreu em 1924, quando passou a abranger o atendimento e a proteção de refugiados armênios, na época vítimas de genocídio. Na sequência, em 1926, foi assinado um dos primeiros documentos da fase inicial da proteção internacional dos refugiados, isto é, o Acordo para a Expedição de Certificado de Identidade para os Refugiados Russos e Armênios. No ano seguinte, o Comissariado absorveu nova atribuição passando a ter o poder de avaliar solicitações de refugiados assírios, assírios-caldeus, turcos e montenegrinos. Em 1930, a Liga das Nações criou um órgão descentralizado, contudo sob a sua direção, para tratar da questão humanitária dos refugiados, dando nascimento ao Escritório Nansen para os Refugiados. O Escritório teve como maior mérito a elaboração de um instrumento jurídico internacional sobre os refugiados, a Convenção de 1933. (JUBILUT, 2007. P. 75-76)

REGO DE PAIVA e PAIVA GONÇALVES (2022, p. 4-5) resumem bem esse período:

Durante as duas guerras mundiais no século XX, o termo “refugiado” assume contornos mais precisos, destinado a grupos étnicos que precisaram fugir e receber acolhimento em outro país. Em 1921 foi utilizado para proteção da aristocracia antibolchevique russa, fugida da Revolução de Outubro. Para russos fugidos do comunismo, foi inaugurado em 1922 o documento “Passaporte Nansen” (em homenagem a seu idealizador, o norueguês Fridtjof Nansen, primeiro dirigente do Alto Comissariado para refugiados da Liga das Nações). O benefício do Passaporte Nansen só foi estendido aos armênios, que sofreram genocídio entre 1915 e 1923 pelo Império Otomano, dois anos depois de sua criação. Mais tarde foi concedido a refugiados turcos, gregos e búlgaros. O documento não instituía uma política de acolhimento, mas de deslocamento, também com objetivo de “desafogar” regiões superlotadas.

Nesta época, com a ascensão do nacional-socialismo na Alemanha, uma onda de deslocamentos se acentua. Em 1936 surge o Alto Comissariado para os Refugiados Judeus provenientes da Alemanha.

Buscando dar perenidade à proteção dos refugiados de forma geral, independentemente da nacionalidade, a Liga das Nações cria, em 1938, o Alto Comissariado da Liga das Nações para Refugiados.

A criação desse órgão de proteção aos refugiados inaugurou uma nova fase do Direito Internacional dos Refugiados, isto porque, até então, a qualificação de uma pessoa como refugiada era feita a partir de critérios coletivos, ou seja, em função de sua origem, sua nacionalidade ou sua etnia a pessoa não necessitava demonstrar que sofria perseguição, mas tão somente que pertencia a um dos grupos tidos como de refugiados e, com sua criação, a qualificação passou também a ser fundamentada em aspectos individuais, ou seja, na história e características de cada indivíduo e na perseguição sofrida por ele e não apenas em reconhecimentos coletivos.

Mantiveram-se, contudo, os fundamentos da concessão de refúgio, ou seja, continuavam a ser utilizados os critérios da origem, nacionalidade ou etnia. (JUBILUT, 2007. P. 77)

Com o final da Segunda Guerra, que gerou mais de 40 milhões de refugiados, e a nova configuração geopolítica mundial, ocasionando, dentre outros, a criação da Organização das Nações Unidas, foi estabelecido, de forma provisória, em 1948, a Organização Internacional para os Refugiados, substituída, posteriormente, pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados - ACNUR em 1950.

Nesse ínterim, é importante dizer, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou e proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos (dezembro de 1948), cujo artigo XIV incluiu o asilo como direito fundamental. Assim, o asilo passou a ser um direito individual, concedendo-se ao Estado a supremacia de garantir ou não a concessão.

Artigo 14

1. Todo ser humano, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países. 

2. Esse direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas. (UNICEF, 2023)

Continuando com o intento de estabilizar o problema, surge, em 1951, o marco institucional da proteção moderna do refugiado, a Convenção de 1951. Apesar dos ingentes avanços, a Convenção somente abarcou pessoas perseguidas por motivo de raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas, em situação de refúgio decorrentes de acontecimentos e eventos anteriores ao ano de 1951, o que passou a ser chamado de “reserva temporal”. E não foi só, a Convenção também estabeleceu que os Estados podiam considerar refugiados somente pessoas provenientes da Europa – palco da Segunda Grande Guerra – criando uma limitação geográfica favorável aos europeus (“reserva geográfica”). Para além de ambas as reservas, a Convenção de 1951 foi objeto de críticas por ter classificado como motivo para a concessão do refúgio, somente a violação de direitos civis ou políticos (primeira dimensão dos direitos humanos), deixando de lado os direitos sociais, econômicos e culturais (segunda dimensão dos direitos humanos). Finalmente, a Convenção não estabeleceu um órgão responsável pela interpretação de seus dispositivos, deixando ao alvedrio de cada Estado Nacional solucionar possíveis controvérsias e dúvidas que viessem a surgir.

Diante das limitações acima referidas, e do surgimento de novos grupos de refugiados, o ACNUR recomendou que houvesse maior abrangência na proteção dos indivíduos, visto que o fluxo migratório continuou intenso no decorrer do século XX. Surge daí, em 1967, um Protocolo adicional que aboliu as reservas geográfica e temporal, estabelecendo um mandato universal de proteção aos refugiados. Além disso, o Protocolo previu, no seu artigo 4, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) como órgão competente para solucionar controvérsias decorrentes da interpretação dos seus dispositivos.

De acordo com JUBILUT (2007), apesar dos avanços significativos promovidos pelo Protocolo, a sua adoção não trouxe à tona a discussão sobre a definição de refugiados, mantendo-se a limitação da sua caracterização às violações de direitos civis e políticos (direitos humanos de primeira dimensão). Tal fato se deu, contextualiza a autora, em razão do temor dos Estados desenvolvidos na ampliação do número de refugiados, o que não atenderia aos interesses da época.

Sobre isso, apontam REGO DE PAIVA e PAIVA GONÇALVES (2022, p. 5 apud DI CESARE, 2020):

Di Cesare, porém, situando essa definição no contexto da época, aponta que o vencedor da Guerra Fria foi o bloco ocidental e prevaleceu assim a defesa dos direitos civis, o que não ocorreu com os direitos econômicos. As definições que se seguiram nos marcos de outros documentos das Nações Unidas ampliaram as possibilidades de concessão do refúgio, como o Protocolo de 1967, que considera as liberdades individuais e não abarcando, nesse estatuto, quem foge da fome ou da pobreza. Os processos para selecionar aqueles migrantes merecedores de proteção com o estatuto do refúgio foram se tornando cada vez mais rígidos, acompanhando as crises do capitalismo e os controles de fronteiras.

Assim, a despeito da consolidação das citadas regras internacionais referentes ao refúgio, a efetiva proteção dos indivíduos ainda se mostrava cheia de incertezas, pois, mesmo não havendo perseguição, muitos sujeitos migravam em função da violação aos direitos humanos em seu país de origem ou em busca de trabalho e sobrevivência, situações não contempladas na Convenção de 1951 e no Protocolo de 1967.

Entrementes, a situação dos migrantes que se deslocavam por motivos de trabalho e/ou sobrevivência, por exemplo, foi alvo de preocupação da Organização Internacional do Trabalho - OIT. Já em 1925, através da Convenção nº. 19, a despeito de outras ações, aprovou-se a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros de Suas Famílias pela Resolução 45/158, de 18 de dezembro de 1990, na Assembleia Geral da ONU. Essa segue sendo a Convenção com o mais baixo número de ratificações pelos Estados-membros, o que indica a pouca disposição de ampliação dos direitos humanos aos migrantes pela comunidade internacional. (REGO DE PAIVA e PAIVA GONÇALVES, 2022, p. 6)

Além dos crescentes deslocamentos motivados por trabalho e sobrevivência, a América Latina, na segunda metade do século XX, diante de um cenário político extremamente adverso (estabelecimento de regimes ditatoriais), passou a contar com intensos fluxos migratórios decorrentes da constante e generalizada violação de direitos humanos.

É dentro dessa conjuntura que foi firmada, em âmbito regional (América Latina), a Declaração de Cartagena em 1984, definindo a condição de refugiado para além daquela constante na Convenção de 1951 e no Protocolo de 1967. Esta Declaração teve considerável impacto no número de refugiados admitidos oficialmente pelo Brasil desde então.

3. O impacto da Declaração de Cartagena no número de refugiados admitidos pelo Brasil

Em 1984, na cidade de Cartagena/Colômbia, foi realizado o “Colóquio Sobre a Proteção Internacional dos Refugiados na América Central, México e Panamá: Problemas Jurídicos e Humanitários”. O evento considerou, na época, a situação da América Central, região em que a questão dos refugiados tomava nova dimensão, objetivando dar uma resposta mais firme aos vários conflitos em andamento ao longo da década de 1980. A partir dos diálogos entre os países presentes (dez ao todo), ficou estabelecida a “Declaração de Cartagena”, documento que reforçaria e daria continuidade às políticas e normas humanitárias no tratamento de refugiados no continente americano.

Os conflitos da América Central ocorriam, principalmente, na Nicarágua, El Salvador e Guatemala, provocando um fluxo de mais de 2 milhões de indivíduos em fuga. Destes, apenas 150 mil se enquadravam e/ou eram reconhecidos como refugiados pela Convenção de 1951 e Protocolo de 1967. Diante do alto número de refugiados sem proteção, os países signatários perceberam que era necessário um documento que, efetivamente, fosse consentâneo com a realidade local (JUNGS DE ALMEIDA, A., & BITTENCOURT MINCHOLA, L. A., 2017, p. 125). Essa solução veio com a Declaração de Cartagena de 1984, cujo teor passou a definir o refugiado como:

Terceira - Reiterar que, face à experiência adquirida pela afluência em massa de refugiados
na América Central, se toma necessário encarar a extensão do conceito de refugiado tendo
em conta, no que é pertinente, e de acordo com as características da situação existente na
região, o previsto na Convenção da OUA (artigo 1., parágrafo 2) e a doutrina utilizada nos
relatórios da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos. Deste modo, a definição ou o
conceito de refugiado recomendável para sua utilização na região é o que, além de conter os
elementos da Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967, considere também como
refugiados as pessoas que tenham fugido dos seus países porque a sua vida, segurança ou
liberdade tenham sido ameaçadas pela violência generalizada, a agressão estrangeira, os
conflitos internos, a violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que
tenham perturbado gravemente a ordem pública. (ACNUR, 2023)

Nessa perspectiva, a Declaração de Cartagena foi elaborada com o fim de construir uma região hospitaleira e aberta, focando na proteção e nos desafios humanitários enfrentados por refugiados na América Central. Por isso, aos Estados da América Latina e ao Caribe a Declaração mostra-se cada vez mais relevante, em especial quando dá importância a violações dos direitos humanos na sua própria região, enfrentando problemas referentes aos refugiados conforme as particularidades observadas no local. (JUNGS DE ALMEIDA, A., & BITTENCOURT MINCHOLA, L. A., 2017, p. 127-128)

Em que pese a relevância da modificação promovida pela Declaração de Cartagena no conceito de refugiado, é importante dizer que ela não vincula Estados que não tenham inserido seus preceitos nas respectivas leis internas, dado que é apenas uma declaração sem caráter impositivo pelo direito internacional (norma soft law).

Especificamente no Brasil, é possível afirmar que a Lei nº. 9.474, de 22 de julho de 1997 – que define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e dá outras providências –, acabou por absorver, não só os preceitos da Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967 (incisos I e II do artigo 1º), mas também os da Convenção de Cartagena de 1984 (inciso III do artigo 1º).

Nessa orientação, o artigo 1º da Lei reza que:

Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:

I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;

II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior;

III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país. (BRASIL, 2023)

É exatamente no inciso III do artigo 1º da Lei que se encontra o fundamento utilizado para deferir a imensa maioria dos pedidos de refúgio formalizados perante o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) brasileiro, levando em consideração a série história que vai de janeiro de 1985 até dezembro de 2022 (ACNUR, 2023)

Analisando as informações consolidadas pelo CONARE, organizadas nos gráficos da ACNUR, constata-se que o Brasil, entre janeiro de 1985 e dezembro de 2022 teve o total de 65.811 pessoas reconhecidas, oficialmente, como refugiadas, sendo que destas, 49.630, ou seja, mais de 75%, foram acolhidas com o fundamento indicado no artigo 1º, III da Lei nº. 9.474/1997 (“grave e generalizada violação de direitos humanos”). (ACNUR, 2023)

Dito de outra forma, mais de 2/3 do número de refugiados admitidos pelo Brasil, desde janeiro de 1985, foram motivados pela situação de “grave e generalizada violação de direitos humanos”. Na sequência, e muito abaixo, são 7.735 indivíduos (mais ou menos 11%) admitidos sem que constar o motivo determinante do reconhecimento. O restante, pouco mais de 10%, foram assim motivados/fundamentados: 1.150 indivíduos reconhecidos refugiados por perseguição decorrente de opiniões políticas; 500 por perseguição decorrente de grupo social; 171 por perseguição decorrente de religião; 95 por perseguição decorrente de raça; e 43 por perseguição decorrente de nacionalidade. (ACNUR, 2023)

Dentre os 49.630 refugiados admitidos no Brasil por grave e generalizada violação de direitos humanos, os venezuelanos correspondem a quase totalidade, ou seja, 96,24% (47.766), seguidos de nacionais da Síria (1.361, ou seja, 2,74%), Afeganistão (140), Burkina Faso (121), Mali (100), Iraque (81), Palestina (49), Arábia Saudita (1), Bangladesh (1), Colômbia (1), Egito (1), Gana (1), Haiti (1), Jordânia (1), Líbano (1), Nigéria (1), Paquistão (1), Congo (1) e Ucrânia (1).

É importante asseverar que a questão venezuelana é recente e decorre da instabilidade político-econômica pela qual o país passa. Em 2015 foram somente 25 concessões de refúgio para cidadãos venezuelanos, ficando na décima primeira colocação geral. Nos anos seguintes (2016-2018), o número manteve-se mais ou menos estável, havendo um gigantesco crescimento em 2019, quando foram deferidos 20.698 pedidos de refúgio. Em 2020 foram outros 25.694 venezuelanos, em 2021 mais 2.503 e, por fim, em 2022, mais 4.520.

Com respeito a isso, a ACNUR publicou reportagem, em julho de 2019, com o seguinte destaque: “ACNUR parabeniza Brasil por reconhecer condição de refugiado de venezuelanos com base na Declaração de Cartagena” (ACNUR, 2019). Abaixo seguem trechos da matéria:

O Brasil aplicou pela primeira vez a definição ampliada de refugiado estabelecida pela Declaração de Cartagena para analisar solicitações de reconhecimento da condição de refugiado de cidadãos venezuelanos e reconheceu, na última quarta-feira (24 de junho), 174 casos com base neste critério. Para a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), tal decisão representa um grande avanço para a proteção de venezuelanas e venezuelanos que têm sido forçados a deixar seu país.

“A magnitude dos atuais fluxos de venezuelanos cria desafios complexos para todos os países que acolhem essas pessoas, e a maioria delas possui necessidade de proteção internacional conforme os critérios da definição de refugiado da Declaração de Cartagena. O ACNUR tem pedido aos países na região que apliquem esta definição ampliada para reconhecer os pedidos dessa população, e esta decisão do Brasil deve ser aplaudida e reconhecida por toda a comunidade internacional”, afirma o Representante do ACNUR no Brasil, Jose Egas.

A aprovação dos casos foi possível após o reconhecimento formal feito pelo Comitê Nacional para Refugiados (CONARE), no último dia 14 de junho, de que existe uma situação objetiva de grave e generalizada violação dos direitos humanos na Venezuela. Este critério é inspirado na Declaração de Cartagena e foi incorporado pela lei brasileira de proteção para os refugiados (lei 9.474, de 1997), no inciso III do seu artigo 1º. A Declaração foi adotada em 1984 pelo Brasil e outros 14 países da América Latina e Caribe, sendo internalizada na legislação nacional em 1997 (por meio da lei 9.474).

A decisão possibilita, a partir de agora, a adoção de procedimento simplificado no processo de determinação da condição de refugiado para nacionais venezuelanos, e permitirá agilizar a análise dos pedidos. Atualmente, há cerca de 100 mil pedidos ativos feitos por Venezuelanos e aguardando uma decisão do CONARE, o maior número de solicitações por nacionalidade no Brasil.

Os casos aprovados na última quarta-feira são o resultado concreto do trabalho das equipes de entrevistadores do CONARE mobilizadas em várias partes do Brasil e apoiadas pelo ACNUR, já adotando o modelo simplificado de entrevistas. Novas entrevistas acontecerão nos próximos meses, permitindo que os casos sejam encaminhados para a análise do Comitê – que funciona sob a presidência do Ministério da Justiça e com a participação dos ministérios de Relações Exteriores, Economia, Saúde, Educação, da Polícia Federal e de um representante da sociedade civil. O ACNUR participa do CONARE com direito a voz, mas sem direito à voto.

Entre as razões alegadas pelos solicitantes para deixar a Venezuela e solicitar proteção no Brasil estão a falta de segurança e o aumento da criminalidade, violência ou ameaça de forças estatais ou grupos armados não estatais, cerceamento da liberdade de expressão e desrespeito aos direitos humanos – além de falta de alimentos, emprego e medicamentos. A maioria dos pedidos reconhecidos foi feita por mulheres e crianças.

Da análise dos números disponibilizados pelo CONARE, extraídos do painel interativo de decisões sobre refúgio da ACNUR, é plausível concluir que o Brasil, apesar de ter admitido um número pequeno de refugiados quando comparado a outros países, especialmente àqueles denominados desenvolvidos, tem justificado as decisões de deferimento, quase que totalmente, com o fundamento de “grave e generalizada violação de direitos humanos”. De mais a mais, a imensa maioria dos indivíduos considerados refugiados no Brasil por este motivo são nacionais da Venezuela, demonstrando o papel determinante da Declaração de Cartagena, instrumento regional que precedeu a publicação da Lei nº. 9.474, de 22 de julho de 1997, no montante de pessoas refugiadas no Brasil contemporâneo.

Diante do que foi exposto, é notável que a ampliação conceitual instituída pela Declaração de Cartagena concretiza o esforço regional que atende ao princípio da responsabilidade compartilhada, compreendida como a distribuição justa entre Estados dos custos e benefícios de acolher refugiados em seu território. Além do mais, atende à solidariedade internacional, visto que busca soluções inovadoras e duradouras para os deslocamentos forçados que atravessam territórios, indo além das soluções previstas pelo ACNUR na segunda metade do século XX. (SILVA, 2021, p. 153)

Considerações finais

O “espírito de Cartagena”, como ficou conhecido o sentimento que viabilizou a assinatura da Convenção, foi crucial para a ampliação do conceito de refugiado no continente americano, suprindo, de certa forma, as limitações incrustadas na Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e no Protocolo de 1967.

Em que pese a Convenção de Cartagena não ser norma impositiva global, sua implementação na América Latina foi relevantíssima quando se leva em consideração o período autoritário que caracterizou grande parte dos países no continente.

O Brasil não representa, em números absolutos, um grande receptor de refugiados, por motivos que não cabem ser analisados no presente trabalho, entretanto se não fosse a ampliação conceitual promovida pela Convenção de Cartagena, este número seria ainda menor, infinitamente menor. A propósito, como foi dito, entre janeiro de 1985 e dezembro de 2022 o Brasil deferiu 65.811 pedidos de refúgio, sendo que destes, 49.630 (mais de 75%) foram acolhidos com fundamento no artigo 1º, III, da Lei nº. 9.474/1997, que diz respeito à “grave e generalizada violação de direitos humanos”.

Dessa forma, conclui-se reafirmando a relevante missão da Declaração de Cartagena ao inserir o Brasil no cenário dos países promotores do acolhimento e proteção de cidadãos deslocados, forçosamente, de seus territórios de origem, seja por perseguição decorrente dos mais variados motivos, seja em resposta à grave e generalizada violação de direitos humanos.

REFERÊNCIAS

ACNUR. ACNUR parabeniza Brasil por reconhecer condição de refugiado de venezuelanos com base na Declaração de Cartagena, 2019 Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/2019/07/29/acnur-parabeniza-brasil-por-reconhecer-condicao-de-refugiado-de-venezuelanos-com-base-na-declaracao-de-cartagena/. Acesso em: 8 jun. 2023.

_______. Convenção de 1951 Relativa ao Estatuto dos Refugiados. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf. Acesso em: 3 jun.2023.

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_______. Declaração de Cartagena. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BD_Legal/Instrumentos_Internacionais/Declaracao_de_Cartagena.pdf. Acesso em: 4 jun. 2023.

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  1. ....

  2. A Cruz Vermelha foi fruto do idealismo de Henri Donan, que tinha no internacionalismo (Europa sem fronteiras) o seu único objetivo. Em função desse objetivo ele viajou o mundo e, durante a Guerra da Criméia (1850-1859), solicitou permissão para assistir à Batalha de Solferino, tendo ficado impressionado com o sofrimento dos enfermos, além de constatar os problemas enfrentados pelos profissionais de assistência médica. Diante disso, pleiteou e obteve uma licença para ajudá-los. Convencido da necessidade de se estabelecer uma organização específica para o tratamento das vítimas de guerra e empenhado em instituir uma ação internacional nesse sentido, Henri Dunn trabalhou na divulgação de seu projeto e passou a atuar com Gustavo Monsieur, presidente da Sociedade de Utilidade Pública de Genebra. Desse trabalho surgiu a base institucional da Cruz Vermelha. Em 1882, com a adesão dos Estados Unidos, a Cruz Vermelha tornou-se uma organização internacional, passando a ser denominada Cruz Vermelha Internacional. (JUBILUT, 2007. P. 73-74)

Sobre o autor
Dicson A Oliveira

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Especialista em Direito Administrativo, em Direito Ambiental e em Direito Penal. Membro da Advocacia-Geral da União.︎

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