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Referendo e plebiscito: um estudo sobre os institutos de democracia semidireta e o risco de seu desvirtuamento na contemporaneidade.

Estudo comparativo dos casos italiano, venezuelano e outros

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4. Referendo na América Latina: o caso venezuelano.

Há apenas alguns dias o mundo assistiu novamente a interação entre referendo popular e Constituição, desta feita na América Latina. O governo da República Bolivariana da Venezuela, encabeçado pelo presidente Hugo Chávez, avançou proposta de alterações substanciais na recente Constituição venezuelana de 1999, que implicaria na alteração de 69 dos 350 artigos daquela Carta Política. [24]

A Constituição venezuelana de 1999, em vigor, prevê o referendo popular na Sessão Segunda do Capítulo IV, em vários artigos, dentre os quais o de nºs 71, 73 e 74. [25]

Dentre as alterações propostas e aprovadas pela Assembléia Nacional da Venezuela – 161 votos a favor e 6 abstenções –, encontrava-se a possibilidade de reeleições infinitas, cujo objeto era, nitidamente, o de permitir a perpetuação de Chávez, sine die, no poder. [26]

Ainda havia a previsão de extinção dos latifúndios – início do "Socialismo do Século XXI" apregoado por Chávez–, criação do denominado "Poder Popular", um quarto poder ao lado dos demais (Conselhos Comunais), criação de novas formas de propriedade social e coletiva, estas duas últimas propostas recordando institutos análogos do antigo socialismo real da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. [27]

Outras alterações aprovadas pela Assembléia Nacional e submetidas a referendo popular eram o controle das reservas internacionais do país diretamente pelo Chefe do Executivo, com o fim da autonomia do Banco Central. [28]

Tais propostas estavam atreladas à de redução da carga horária de trabalho semanal de 40 para 36 horas, a pretexto da criação de mais empregos, mas cuja finalidade era, evidentemente, cooptar votos em favor da reforma.

Chamavam a atenção, ainda, alterações no âmbito das Forças Armadas, com adaptação da doutrina militar ao bolivarianismo e criação da "Milícia Popular Bolivariana", bem como a proposta de alteração do art. 337 da Carta Política venezuelana, alteração esta que restringia o direito de informação em estado de exceção.

O resultado da consulta popular foi, surpreendentemente, dados os prognósticos até então feitos, a rejeição da proposta chavista por 50% (bloco A das reformas nas cédulas) e 51% (bloco B das reformas nas cédulas), de modo a impossibilitar as pretensões de Cháveze manter a Constituição venezuelana de 1999 inalterada.


5. Podem os instrumentos de democracia direta constituir ameaças à Constituição?

O caso venezuelano não é uma exceção na América Latina contemporânea. Cabe lembrar que o Equador encontra-se com uma Assembléia Constituinte instalada no momento em que este artigo é redigido, de cujos trabalhos deverá resultar uma nova proposta de texto constitucional a ser submetido a referendo popular em futuro próximo.

O mesmo se diga a respeito da Bolívia, cuja Assembléia Constituinte fora instalada em 2006, com a finalidade de promulgar uma nova Carta Magna. O projeto de uma nova Constituição vem causando protestos e o ápice das tensões política no país se deu no mês de novembro deste ano, com conflitos na cidade de Sucre que resultaram em três mortos. O caráter democrático da referida Constituinte ficou arranhado pela aprovação do texto da nova Carta Política, pelo Presidente Evo Morales em um sábado à noite, dentro de um quartel. [29] O texto deverá ser submetido, em breve, a refendo popular.

Viram-se, até aqui, duas hipóteses em que o referendo popular serviu de instrumento de salvaguarda da Constituição, tendo o povo demonstrado notável cultura constitucional, ao rechaçar propostas governamentais discutíveis, haja vista representarem concentração de poderes, colocarem em risco a alternância no poder, representarem perigos para direitos e liberdades fundamentais, como a liberdade de informação, e assim por diante.

Não obstante, todos os prognósticos, especialmente no caso venezuelano, que eram pela aprovação das reformas constitucionais propostas, bem como pela forte propaganda governamental em favor das reformas e vinculando a aprovação a alterações atrativas para a população, como a redução da carga horária laboral.

O governo estava confiante na sua vitória e o rechaço popular surpreendeu o mundo. No entanto, a despeito dos dois felizes episódios, aptos a demonstrar uma crescente consciência constitucional popular tanto na Europa quanto na América Latina, percebe-se que não raro se fala em plebiscito e referendo no intuito de propiciar ataques à Constituição e legitimar-lhe alterações de teor duvidoso.

O caso não é novo. Canotilho, referindo-se ao contexto português, explicando o receio, no texto originário da Constituição lusitana de 1976, explicita as razões:

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No plano da história constitucional, pesavam sobretudo as heranças plebiscitárias da República de Weimar e as condutas plebiscitárias gaullistas. No contexto político interno, a recordação da aprovação plebiscitária do texto constitucional de 1933 e as tentativas plebiscitárias revisionistas (continuadas depois da aprovação do próprio texto de 1976) reforçaram as dúvidas quanto à bondade democrática dos esquemas de democracia semidireta. [30]

Ou seja, nem sempre os instrumentos de consulta popular – plebiscito e referendo – foram utilizados para a salvaguarda da Constituição. Muitas vezes na história os mecanismos de colheita direta da vontade popular foram utilizados para impor ou tentar impor ou legitimar alterações no mínimo discutíveis do texto constitucional.

Esta a razão do rechaço tanto da Constituição alemã de 1949 quanto pela Constituição lusitana de 1976 aos instrumentos do referendo e do plebiscito, especialmente em matéria constitucional, conforme vimos.

No Brasil mesmo, vez por outra, às vezes com preocupante freqüência, vê-se fazer avançar discussões definitivamente excluídas pelo Poder Constituinte originário da pauta da política ordinária – leia-se, da pauta da política corriqueira pós-Assembléia Nacional Constituinte, seja por atos normativos infraconstitucionais, seja por propostas de emenda à Constituição.

E, com a mesma freqüência, vê-se, ao serem objetadas as limitações constitucionais ao Poder Legislativo ou ao Poder Constituinte Reformador, cogitar-se a convocação de consultas populares para legitimar propostas absurdas e constitucionalmente vedadas, como pena de morte, castração química e quejandos.

Isto como se os instrumentos de democracia direta ou semidireta tivessem uma natureza, um efeito de Poder Constituinte Originário instantâneo e momentâneo, numa interpretação leviana ou maliciosa do arcabouço político-jurídico-institucional traçado pela vigente Carta Política.

Assim como nas constituições tedesca e lusitana, o que se vê na Constituição brasileira de 1988 é a consagração do regime representativo – com todas as suas mazelas, a serem combatidas pelos meios institucionais e reformas possíveis e apropriadas – com a utilização, residual e supletiva, de mecanismos de consulta popular.

Toda a literatura constitucional é acorde no sentido de que o momento constituinte originário é um momento ímpar e que o exercício de poderes constituídos, ainda que do poder reformador, não possui a mesma natureza, razão mesma da possibilidade das limitações materiais ao poder reformador, consignadas, em nossa Carta Política, no § 4º do art. 60.

Assim, não se deve deixar levar pela ilusão, induzida por alguns, de que tudo é possível, bastando, para tanto, que se convoque um plebiscito ou referendo, violando a rigidez constitucional e o arcabouço de garantias jurídicas e institucionais que encerra.

A criatura não pode e não deve se voltar contra o criador. Os institutos do referendo e do plebiscito não podem, em nenhuma hipótese, ser legitimamente interpretados como meios de fragilização da Constituição ou de burla às suas disposições cogentes. Ademais, o que nem sequer o poder constituinte derivado reformador pode fazer, tampouco o podem os residuais e excepcionais institutos de consulta popular.

Impõe-se uma interpretação sistemática da Carta, devendo a previsão constitucional de ambas as modalidades de consulta popular ser encaradas em suas devidas proporções, vale dizer, sem minoração e tampouco superestimação. Em outras palavras, o disposto no art. 14, I e II da CRFB/88 deve ser lido e interpretado em conformidade com o restante do texto constitucional, especialmente o § 4º do art. 60, ou seja, as limitações materiais ao poder reformador – e a todos os demais poderes, a ele subalternos – comumente denominadas cláusulas pétreas.

A preocupação é válida em face do contexto contemporâneo. O ressurgimento de governos populistas ou de inclinação populista na América Latina contemporânea vem acompanhado, como não poderia deixar de ser, de inúmeras propostas de alterações das Constituições.

Ora, as Constituições sendo, por definição instrumentos de limitação do exercício do poder, são os primeiros alvos para governos que pretendam extrapolar a medida de poder que lhes cabe pelos sistemas jurídico-constitucionais em vigor.

Vêem-se inúmeros projetos de reforma constitucional atualmente na América Latina, ao lado daquele da Venezuela. Avança-se, no momento atual, para novas Cartas Constitucionais para a Bolívia de Evo Morales e para a o Equador de Rafael Correa.

Mesmo no Brasil, com freqüência perturbadora, ouve-se falar, aqui e acolá, de alterações constitucionais para possibilitar uma tre-eleição do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, o que é reconhecido pelo próprio Presidente como um arrematado absurdo. Isto quando não se fala em uma nova Assembléia Constituinte, com vistas a colocar por terra as conquistas obtidas com a promulgação da Carta de 1988.

A Constituição consagra as regras mais caras ao jogo, regras estas que não podem ser modificadas ao bel prazer dos ventos políticos ou para fazê-la adaptar-se às (supostas) necessidades do momento.

É imprescindível o fomento de uma cultura de respeito à Constituição no país, respeito este que implica sujeição incondicional dos poderes e das autoridades constituídos, e que não será obtido enquanto se falar, a todo momento, em alterar a Carta Magna por qualquer razão contingente de somenos importância, ou ainda (e pior), em utilizar institutos como aqueles do plebiscito e referendo, para buscar burlar a Constituição ou promover sua degradação.


6. Conclusões.

Vislumbrou-se a interação entre Constituição e democracia. Viu-se, nos itens introdutórios do presente Estudo, que há uma tensão entre a democracia e o Constitucionalismo, na medida em que este, como técnica de controle do exercício do poder por definição, restringe a liberdade de conformação dos atores políticos representativos (presuntivos) da vontade popular.

Não obstante, de se observar que as Constituições contemporâneas consagram e salvaguardam de alterações discutíveis exatamente a democracia, assegurando o sufrágio universal, o voto secreto, direto e de igual valor, dentre outros direitos políticos, e afastando a possibilidade de deliberações anti-democráticas por parte dos poderes constituídos, como faz a Constituição brasileira, em seu art. 60, § 4º, II.

Assim, a Constituição, com sua supremacia e sua rigidez, revela-se a melhor garantia dos regimes democráticos.

6.2. Os instrumentos de democracia direta ou semidireta podem, em determinadas circunstâncias, salvaguardar a Constituição

Analisou-se a interação entre Constituição e consultas populares referendarias. Viu-se que disposições como as adotadas pela Constituição italiana em seu art. 138, podem representar um mecanismo de salvaguarda da higidez constitucional, através da abertura de possibilidade do rechaço popular a propostas de alteração constitucional de índole discutível.

Os dois casos analisados – o italiano e o venezuelano – nos dão provas evidentes disso. [31]

6.3. O desvirtuamento do uso dos instrumentos de democracia direta ou semidireta pode, no entanto, representar uma ameaça à Constituição

Não obstante, como demonstra a história ao explicitar as razões da resistência lusitana e germânica aos institutos de consulta popular, o uso desvirtuado dos institutos do plebiscito e do referendo pode constituir uma ameaça à Constituição.

No caso brasileiro, por exemplo, as renitentes propostas de realização de consultas populares para deliberar sobre o indeliberável – pena de morte, castração química e o mais – deixa claro tal risco.

Para combatê-lo, resta evidenciada a imprescindibilidade de uma formulação teórica geral acerca da interação entre plebiscito, referendo e Constituição no marco da Carta Política de 1988.

6.4. Conclusão final por uma formulação geral da interação entre referendo ou plebiscito e Constituição

A conclusão singela deste estudo é pela impossibilidade de utilização do referendo e do plebiscito para violar a Carta Política. Conceituados os instrumentos de coleta da vontade popular como residuais em nosso sistema representativo – razão mesma pela qual a Carta Política estabelece a exclusividade do Congresso Nacional para a autorização de referendo e a convocação de plebiscito (art. 49, XV da CRFB/88) – resta evidente que não se prestam a fazer mais do que é permitido ao próprio Poder Constituinte Derivado ou Reformador.

A tese é de evidente simplicidade: afigura-se absolutamente inviável qualquer pretensão de se valer dos institutos de democracia direta (ou semidireta) instituídos pela Constituição para violar a Constituição mesma. É impossível, legitimamente, desbordar os limites materiais ao Poder Constituinte Reformador em se valendo, astuciosamente, dos mecanismos de consulta da vontade popular, como se Poder Constituinte Originário fossem.

Assim, o âmbito de possibilidade de deliberação legítima dos mecanismos em mesa é o núcleo rijo que a própria Constituição colocou a salvo, em interpretação sistemática e teleologicamente homologa para com a Carta.

As conclusões aqui esboçadas restringem-se à utilização de consultas populares para reformar a Constituição, não abrangendo, é verdade, momentos constituintes verdadeiramente originários, sobre os quais, fatalmente, qualquer teoria enfrenta dificuldades de monte incomensuravelmente maior.

Buscaram-se aqui, portanto, dentro do marco institucional da CRFB/88, critérios para a utilização legítima e constitucional dos instrumentos de democracia direta, lançando-se mão do estudo da casuística internacional. No que se refere ao poder constituinte originário, outro estudo diverso é requerido, o que se pretende fazer em breve. [32]

Sobre os autores
Geziela Jensen

Mestre em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Membro da Société de Législation Comparée (SLC), em Paris (França) e da Associazione Italiana di Diritto Comparato (AIDC), em Florença (Itália), seção italiana da Association Internationale des Sciences Juridiques (AISJ), em Paris (França). Especialista em Direito Constitucional. Professora de Graduação e Pós-graduação em Direito.

Luis Fernando Sgarbossa

Doutor e Mestre em Direito pela UFPR. Professor do Mestrado em Direito da UFMS. Professor da Graduação em Direito da UFMS/CPTL.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JENSEN, Geziela; SGARBOSSA, Luis Fernando. Referendo e plebiscito: um estudo sobre os institutos de democracia semidireta e o risco de seu desvirtuamento na contemporaneidade.: Estudo comparativo dos casos italiano, venezuelano e outros. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1625, 13 dez. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10757. Acesso em: 22 nov. 2024.

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