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Os Direitos Autorais das Obras Criadas pela Inteligência Artificial

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Agenda 13/12/2023 às 11:06

RESUMO

ANDRADE, Maria Júlia Baptista Moreira de. Os direitos autorais das obras criadas pela inteligência artificial. Rio de Janeiro, 2023. 95 p. Monografia de final de curso. Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio.

O contexto do crescente avanço tecnológico mundial torna cada vez mais presente a Inteligência Artificial (“IA”) no processo de criação de obras artísticas, literárias e científicas. Nesse sentido, diante das diferentes abordagens da IA já existentes atualmente, é inevitável um debate jurídico acerca dos desafios legais, éticos e econômicos dos atos e criações desses robôs. Assim, o presente trabalho busca analisar as controvérsias e preocupações na área de Propriedade Intelectual acerca das obras geradas por IA e destrinchar os questionamentos sobre quem detém os direitos autorais dessas criações. O trabalho demonstra a complexidade desse debate na medida em que existem diferentes tipos de atuação da IA no processo criativo e que, portanto, as evidentes lacunas jurídicas não poderão ser preenchidas com uma resposta única e objetiva. Essa observação é feita em paralelo com a análise do ordenamento jurídico brasileiro, que na Lei dos Direitos Autorais (“LDA”), define autor como pessoa física que exerce domínio intelectual e moral – isto é, essencialmente humano, com capacidade criativa e intelectual. Assim, na busca por essa análise e adequação, é necessário realizar um estudo do cenário internacional e explorar as possíveis respostas.

Palavras-Chave: Direitos autorais; Inteligência Artificial; Titularidade; Obras; Ordenamento jurídico.

ABSTRACT

ANDRADE, Maria Júlia Baptista Moreira de. Os direitos autorais das obras criadas pela inteligência artificial. Rio de Janeiro, 2023. 95 p. Monografia de final de curso. Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio.

The context of the world's growing technological advances is making Artificial Intelligence ("AI") increasingly present in the process of creating artistic, literary and scientific works. In this sense, given the different approaches to AI that already exist today, a legal debate about the legal, ethical and economic challenges of the acts and creations of these robots is inevitable. Thus, this paper seeks to analyze the controversies and concerns in the area of Intellectual Property about works generated by AI and to unravel the questions about who owns the copyright of these creations. The work demonstrates the complexity of this debate insofar as there are different types of AI performance in the creative process, which vary the levels of autonomy and/or participation of the human being in the applications that result in the works created. This observation is made in parallel with the analysis of the Brazilian legal system, which in the Copyright Law ("LDA"), defines an author as a natural person who exercises intellectual and moral dominion - that is, essentially human, with creative and intellectual capacity. Therefore, there is no doubt that the issue of copyright for works created by AI is a very rich and extremely complex debate, as the obvious legal gaps cannot be filled with a single, objective answer. In fact, as machine learning models are analyzed, whether by capturing pre-existing data, recognizing identifiable patterns, or without any human supervision, it becomes even more difficult to find a consensus on the future regulatory advances that Brazil will have to implement in the area of copyright in order to adapt to the new reality. Therefore, in the search for this analysis and adaptation, it is necessary to carry out a study of the international scenario and explore possible responses.

Palavras-Chave: Copyright; Artificial Intelligence; Ownership; Works; Legal system.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

CAPÍTULO 1 - DIREITO AUTORAIS

1.1 Panorama regulatório

1.2 Figura do “autor” no Direito Autoral Brasileiro

1.2.1 Criatividade

1.2.2 Originalidade

1.2.3 Atributos da pessoa humana

1.3 Atribuição de titularidade das obras criadas por IA no cenário internacional

CAPÍTULO 2 - INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

2.1 Conceitos e definições

2.2 Abordagens dos sistemas

2.3 Resultado final das obras criadas por IA

CAPÍTULO 3 - ATRIBUIÇÃO DE DIREITOS AUTORAIS À IA

3.1 Análise da interferência humana, autonomia e grau de previsibilidade do resultado

3.2 Formas de titularidade

3.2.1 Equiparado às obras geradas por programas de computador

3.2.2 Equiparado a obras derivadas

3.2.3 Equiparado a obras feitas sob encomenda

3.2.4 Equiparado a obras coletivas

3.2.5 Co-autoria entre o programador e o usuário da IA

3.2.6 Usuário do programa

3.2.7 Sistema de IA como “autor”

3.3.1 Domínio público

CONCLUSÃO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LISTA DE ABREVIAÇÕES

IA - Inteligência Artificial

EUA - Estados Unidos da América

LDA - Lei de Direitos de Autor

OMPI / WIPO - Organização Mundial da Propriedade Intelectual - World Intellectual Property Organization.

TRIPS - Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio - Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights

CDPA - Copyright, Designs and Patents Act 1988 - Lei de Direitos Autorais, Desenhos e Patentes de 1988 do Reino Unido

CUB - Convenção de Berna de 1886

INPI - Instituto Nacional da Propriedade Industrial

DABUS - Device for the Autonomous Bootstrapping of Unified Sentience – Dispositivo para o Bootstrapping Autônomo da Senciência Unificada

LPI - Lei de Propriedade Intelectual

UE - União Européia

UK - United Kingdom - Reino Unido

CONTU - Relatório Final da Comissão Nacional de Novos Usos Tecnológicos de Obras com Direitos Autorais

CDPA - Copyright, Designs and Patents Act 1988

PLN - Processamento de Linguagem Natural

GANs - Generative Adversarial Networks

INTRODUÇÃO

Não há dúvidas que as criações feitas por Inteligência Artificial (“IA”) estão cada vez mais presentes no nosso dia a dia. Isso porque, diante da impressionante sofisticação das tecnologias que modelam um sistema de IA, hoje, é possível a criação de obras de arte, como pinturas, música e até mesmo escrita. Ou seja, os algoritmos de IA podem gerar imagens, melodias ou até mesmo poemas com base em padrões e estilos previamente aprendidos.

Sem dúvidas, os algoritmos de IA também têm um grande papel no auxílio em atividades criativas realizadas pelos seres humanos, como, por exemplo, o aprimoramento de vídeos e imagens.

Nesse sentido, são incontáveis os exemplos dos produtos que dependem do auxílio direto dos sistemas de IA no processo criativo - quando não criados exclusivamente por estes. Esse papel da IA no processo de criação está cada vez mais presente no cotidiano dos seres humanos, tornando um assunto extremamente relevante na medida em que esses sistemas de grande complexidade evoluem rapidamente, sendo provável que vejamos ainda mais inovações e criações surpreendentes no futuro.

As obras criadas por IA são ativos importantes que possuem muito valor, tanto no mundo real, quanto no virtual. Por isso, é necessário que haja uma regulamentação que dê conta de tamanha complexidade e consiga proteger tais criações da apropriação de terceiros, trazendo o reconhecimento necessário e o recebimento de valores sobre a divulgação da obra ao seu verdadeiro autor e, assim, possibilitar um cenário em que haja um investimento e incentivo para que o Brasil participe do desenvolvimento tecnológico e econômico de um país. Em outras palavras, tais obras precisam ter seu lugar definido frente à Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1988 (“LDA”), conhecida como Lei de Direitos Autorais brasileira.

Trata-se de um passo extremamente desafiador, na medida em que a legislação vigente determina requisitos para a proteção autoral que são objeto de ampla discussão da doutrina. Isso porque não parece estar atualizada ao contexto tecnológico atual, em que há uma capacidade de processamento de grandes volumes de dados impressionante, além de não estabelecer parâmetros mais objetivos para consolidar a possibilidade de a quem atribuir a tutela do direito autoral, em casos de obras desenvolvidas por IA.

O desafio é ainda maior quando analisadas as diversas abordagens técnicas da IA e suas diversas funcionalidades diante dos diferentes graus de autonomia da máquina, o nível de interferência humana e de previsão do resultado final – o que demonstra a insuficiência de uma norma única e engessada para resolver essa lacuna jurídica.

Nesse sentido, existem diversos posicionamentos doutrinários que sugerem diferentes tipos de aferição de autoria para essas obras, tendo, inclusive, a possibilidade de não garantir uma proteção jurídica, isto é, colocá-las em domínio público.

A discussão demanda o enfrentamento de questões que vão, desde o entendimento das palavras “originalidade”, “criatividade” e “autonomia”, até a compreensão das técnicas de aprendizado dos sistemas de IA e análise de quais e como os dados utilizados pelo algoritmo devem ser tratados à luz dos Direitos Autorais.

A questão da originalidade da obra pode ser interpretada como algo novo e que ainda não existe. Por outro lado, quando analisada à luz da atuação do algoritmo que capta diferentes conteúdos pré-existentes e os organiza de forma diferente para criar algo diferente, pode haver uma controvérsia a ser analisada. E mais: em que medida as obras criadas por nós, seres humanos, não possuem a influência de outros conteúdos já consumidos por nós anteriormente?

A criatividade também demanda um debate. Por um lado, as IAs são algoritmos de computador programados por programadores humanos e frequentemente criam trabalhos em conjunto com humanos. Mas, de outro lado, as técnicas de aprendizado dos sistemas de IA evoluíram de forma tão significativa que demonstra uma autonomia da máquina perante os seres humanos.

Ademais, através do machine learning, a IA consegue imitar a configuração das redes cerebrais humanas. Seria isso passível do reconhecimento como um “processo criativo”? Essa seria uma peça-chave para a definição do Direito Autoral. E até que ponto uma IA consegue fazer algo “novo”?

Fato é, que superado o complexo debate sobre os diversos tipos de atuação da IA no processo de criação, as diferentes possibilidades de atribuição de autoria será um outro obstáculo que se torna ainda maior, quando analisadas as consequências para o cenário regulatório atual, para o funcionamento na prática e para o incentivo à criação e desenvolvimento tecnológico no Brasil.

Isso porque o cenário regulatório brasileiro ainda não compreende esse assunto. A LDA foi criada em 1988, quando sequer imaginava-se haver uma presença tão intensa de projetos criados por IA e, muito menos, sistemas tão autônomos e inteligentes. Ademais, a constante evolução dessa tecnologia é algo positivo e que deve ser incentivado nacionalmente, contudo, essa constante inovação poderá demandar atualizações cada vez mais complexas do legislador.

No âmbito prático, ainda que a LDA no artigo 11 defina que autor é uma pessoa física criadora de obra, podendo-se aplicar às pessoas jurídicas, grande parte da doutrina ainda entende que a condição de autor é exclusiva às pessoas físicas. As diversas teorias defendidas por partes da doutrina demonstram diversos caminhos possíveis para a solução das questões propostas. Além das questões de cabimento, o efeito prático de cada uma das possibilidades deve ser amplamente discutido, como, na criação de uma personalidade eletrônica para a própria IA; a titularidade ao programador; a titularidade aos proprietários; a titularidade ao usuário final; não oferecer qualquer proteção a essas obras, entre outros.

Ademais, nessa análise de lacunas jurídicas acerca da possibilidade de atribuir a titularidade das obras criadas pelos sistemas de IA, é imprescindível analisar os diferentes modelos propostos no cenário internacional para realizar um exame crítico e verificar a viabilidade destes no ordenamento jurídico brasileiro.

Portanto, em busca de propostas regulatórias e uma conclusão que seja cabível ao cenário nacional, devemos analisar o cenário internacional e os diferentes entendimentos acerca do assunto.

CAPÍTULO 1 - DIREITO AUTORAIS

1.1 Panorama regulatório

Em primeiro lugar, é necessário discutir sobre o panorama regulatório brasileiro em relação aos direitos autorais, Assim, tendo em vista o objetivo de fornecer uma visão panorâmica das regulamentações e considerações legais vigentes no Brasil, torna-se necessário abordar as leis de Propriedade Intelectual, que possuem um papel essencial no desenvolvimento de um país, tendo em vista que representam um mecanismo fundamental que visa proteger e recompensar os criadores de obras artísticas, literárias e científicas pelo seu esforço criativo e contribuição valiosa para a sociedade. Para tanto, a proteção desses bens imateriais – que são expressões criativas do homem – é realizada através de títulos de propriedade, que permitem o resguardo dos interesses íntimo e da personalidade do criador e, ainda, possibilita que o mesmo aufira lucros com a comercialização de sua criação e, como consequência, possuam o investimento e incentivo para continuar participante do desenvolvimento tecnológico e econômico de um país.

Assim, é necessário ressaltar que, no Brasil, essa proteção das obras é prevista na Constituição Federal nos incisos XXVII e XXVIII do artigo 5º, que prevê que os direitos do criador sobre o seu desenvolvimento são considerados direito de propriedade, bem como o Art. 170, que determina que “propriedade” é princípio da ordem econômica brasileira. Assim, deve ser prioridade para os governantes do país, criar condições que capacitem e estimulem a criação e progresso tecnológico1:

XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;

XXVIII - são assegurados, nos termos da lei:

a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas;

b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas;

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

II - propriedade privada2;

Portanto, a importância do direito do autor é prevista na Carta Magna, que busca reconhecer e proteger esse trabalho intelectual dos criadores, com fundamento no reconhecimento da autoria e na proteção dos direitos morais e patrimoniais, que tem por consequência a valorização econômica da obra e o estímulo à continuidade do processo criativo no país3.

Nesse sentido prevê José Graça Aranha, que atua hoje como Diretor Regional da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) no Rio de Janeiro, Brasil:

A defesa da propriedade intelectual produziu efeitos benéficos para as grandes potências e para as economias emergentes. Com a defesa da propriedade intelectual é uma iniciativa do setor produtivo e/ou de pesquisadores, muito menos do que de governo, há a necessidade de divulgar a importância dessa proteção. Cabe ao novo governo examinar as propostas nacionais e internacionais que existem hoje e colocá-las em debate. A questão da propriedade intelectual para o futuro da economia do país não pode ser relegada a segundo plano4.

Ademais, como o próprio nome diz, o direito do autor é uma proteção jurídica que foca na pessoa do autor e nos direitos que ele tem sobre a sua obra e é protegido pela Convenção de Berna de 1886, que é adotada hoje em mais de 160 países e tem o objetivo de proteger os direitos dos autores e editores de obras no contexto nacional e internacional5. Ou seja, em 1886 surgiram as primeiras diretrizes para a regulação ampla dos direitos autorais, quando os representantes de diversos países se reuniram na cidade de Berna, na Suíça, com o intuito de estabelecer critérios mínimos para salvaguardar os direitos dos autores de obras literárias, artísticas e científicas6.

A Convenção de Berna, portanto, desde sua criação, serviu de base para a elaboração das diversas legislações nacionais sobre a matéria é utilizada até os dias de hoje como o principal instrumento norteador dos Direitos Autorais tendo passado por diversas revisões ao longo do tempo, sendo a última no ano de 1971, em Paris e emendada em 19797.

Dessa forma, assim como a lei nacional brasileira, ressalta, através de uma relação exemplificativa, que as obras suscetíveis de proteção podem ser obras originárias, isto é, primígena, como derivadas - como as traduções, etc. -, realizadas sob autorização (CUB, Arts. 2-3 e 2-4). Ademais, ambas tratam da proteção da forma, não de ideias e abstrações8.

Esses parâmetros refletiram diretamente na construção da figura do autor no mecanismo de atribuição da titularidade às obras criadas na LDA. Assim, a LDA estabelece critérios objetivos para a efetiva proteção autoral. Nesse sentido, aparece como a previsão dos direitos protetores e garantidores dos vínculos morais e patrimoniais do autor com sua obra, concedendo prerrogativas expressas aos criadores das obras intelectuais sobre as criações do espírito, por quaisquer meios ou fixadas em quaisquer suportes, tangíveis ou intangíveis. Em uma visão objetivamente material é o direito do Autor e seus sucessores explorarem a obra com exclusividade por um período que termina em 70 anos a partir do ano seguinte à morte do autor. Os direitos autorais compreendem os direitos de autor e os que lhe são conexos9.

Além disso, o país se filia ao sistema droit d’auteur, ou sistema francês ou continental, que se diferencia do sistema de copyright, ou sistema anglo-americano. Assim, o Brasil, ao contrário do sistema anglo-americano, que se busca tem como prioridade a proteção da possibilidade de reprodução de cópias, busca proteger, com prioridade, outras questões, como a criatividade da obra a ser copiada e os direitos morais do autor da obra10. Assim, volta seus esforços de proteção na cópia, ou seja, no corpus mechanicum que carrega a obra, demonstrando uma preocupação predominantemente voltada para questões de valor patrimonial e econômico, com uma consideração limitada pela expressão criativa e pela essência do autor11.

A previsão dos direitos morais e patrimoniais encontra-se no Art. 22 da LDA, que dispõe que “pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou”, bem como o Art. 6 da Convenção de Berna que trata do direito moral como o direito de nominação e de integridade da obra, em face de eventuais alterações e do direito patrimonial em relação a autorizar eventuais derivações da criação originária, tais quais: a tradução (Art. 8), a reprodução (Art.9-1), a adaptação (Art. 12), entre outros12. Nesse sentido, Fragoso dispõe que esse sistema:

Não tem relação direta com a democratização das ideias, com a sua livre difusão e o seu livre acesso, estas, sim, de interesse público e universal. Para este interesse existem as limitações autorais e o uso leal (fair use) das criações13.

Os direitos morais resultam da exteriorização da personalidade do autor, que criam através de um processo necessariamente criativo, individual e pessoal, portanto, são intransmissíveis, mesmo causa mortis.

Já os direitos patrimoniais, previstos no Art. 29 da LDA, consistem nas faculdades do autor/titular de uma obra de utilizar, fruir e dispor desta. Assim, como prevê o Art. 28 da LDA, os direitos patrimoniais podem ser transacionados pelas diversas formas previstas no Art. 29 do mesmo diploma legal.

Para esses casos, a Convenção de Berna prevê a possibilidade de limitações ao direito patrimonial através de disposições previstas em lei nacional ou de licenças obrigatórias, mas remuneradas14. Portanto, torna-se possível entender que a propriedade intelectual pode ser interpretada de diversas maneiras: alguns a enxergam como um mero privilégio conferido pelas leis ao criador como recompensa, como afirmado por Albuquerque e Philipon; outros, como Stolfi, a veem como um contrato; há também aqueles que a concebem como um direito pessoal, de acordo com a perspectiva de Kohler. Kant, por sua vez, trata os direitos intelectuais como direitos ligados à personalidade. Além disso, há defensores da ideia de que tais direitos possuem uma natureza híbrida, combinando aspectos pessoais e patrimoniais, como argumentado por Caselli. No entanto, grande parte da doutrina entende que a propriedade intelectual é um tipo de direito de propriedade sui generis, já que em alguns aspectos ela se distancia dos direitos de propriedade sobre bens corpóreos como a imaterialidade, limitação temporal e dissonâncias em relação ao uso e gozo, mas que, por outro lado, se assemelha em suas funções política, econômica e social15.

Para além disso, os direitos protegidos pela propriedade intelectual possuem uma relação intrínseca com o espírito do criador. Segundo Bittar:

Os direitos intelectuais são aqueles referentes às relações entre a pessoa e as coisas imateriais que cria. Esses direitos incidiriam sobre as criações do gênio humano, manifestadas em formas sensíveis, estéticas ou utilitárias, ou seja, voltadas, de um lado, à sensibilização e à transmissão de conhecimentos e, de outro, à satisfação de interesses materiais do homem na vida diária16.

Assim, tendo em vista a complexidade dos direitos autorais, torna-se um desafio compreender a autoria e titularidade de obras criadas por um fenômeno tão novo e surpreendente: a Inteligência Artificial.

Na questão da Inteligência Artificial e o Direito Autoral, as tecnologias utilizadas no algoritmo, nos programas e nas bases de dados das IAs são obras protegidas pelo artigo 2° da Convenção de Berna e pelos artigos 4° e 5° da Convenção da OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual). Da mesma forma, a Lei nº 9609/98 (Lei do Software) prevê a proteção de programa de computador e sua comercialização no país, mas a lei se restringe a equiparar o regime de proteção do programa de computador às obras literárias pela legislação de direitos autorais e conexos vigentes no País, pois a proteção é conferida apenas ao código-fonte do programa, e nada abrangente para as criações de uma IA, ou mesmo de um programa de computador comum.

Nesse sentido, observa-se que o dinamismo e o rápido desenvolvimento das tecnologias de IA não é acompanhado pelo ritmo das transformações legislativas e, portanto, desafiam os elementos fundamentais do direito autoral.

1.2 Figura do “autor” no Direito Autoral Brasileiro

O Art. 11 da LDA prevê que o autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica17 e o Parágrafo Único permite a extensão da proteção autoral a pessoas jurídicas em circunstâncias específicas.

Para Eduardo Vieira Manso18, é “autor de uma obra intelectual aquele que a cria, ou seja, aquele que impregna uma idéia de um determinado conteúdo e lhe dá uma precisa e particular forma de expressão”.

A construção da figura do autor dentro da legislação vigente é objeto de discussões entre doutrinadores como Pamela Samuelson19, que estudou as cinco possibilidades de alocação dos direitos sobre a obra: ao computador, ao usuário, ao autor do software, a ambos em conjunto ou a ninguém, destacando a existência de diferentes percepções acerca da atribuição da titularidade das obras criadas pela IA.

Nesse sentido, vale ressaltar novamente a Convenção de Berna, tendo em vista que é o documento responsável por estabelecer padrões internacionais de proteção dos direitos autorais para obras literárias e artísticas, que em seu item 1 do Art. 6° prevê que o autor “conserva o direito de reivindicar a paternidade da obra e de se opor a toda deformação, mutilação ou a qualquer dano à mesma obra, prejudiciais à sua honra ou à sua reputação”20. Ademais, determina em seu item 1 do Art. 9°21 que “os autores de obras literárias e artísticas protegidas pela presente Convenção gozam do direito exclusivo de autorizar a reprodução destas obras, de qualquer modo ou sob qualquer forma que seja”. Ou seja, ainda que a Convenção de Berna não defina requisitos específicos para ser considerado autor de uma obra, estabelece princípios gerais relacionados aos direitos do autor e à proteção de suas obras, que são colocadas como resultado da sua própria inspiração e criatividade, nos levando a entender que autor é a pessoa que cria a obra.

Logo, considerando que a figura de “criador” envolve o ato de conceber, produzir ou dar origem a algo novo, existe uma “genialidade” por trás desse talento ou habilidade intelectual no campo específico, que se manifesta no processo criativo.

Por outro lado, autores como Litman22 argumentam que a autoria não seria necessariamente um ato de genialidade, mas sim que “todas as obras da autoria, mesmo as mais criativas, incluem alguns elementos adaptados da matéria-prima que o autor encontrou pela primeira vez em obras de outra pessoa”23. Ou seja, entendem que a criação criativa muitas vezes se baseia em elementos encontrados em obras anteriores e que os autores frequentemente adaptam, transformam e reinterpretam esses elementos para criar obras originais. Isso ressalta a natureza interconectada da cultura, da arte e da criatividade, enfatizando que a inovação frequentemente surge da influência e do diálogo com o trabalho de outros.

Nas palavras de Pedro Marcos Nunes Barbosa:

A história artística da humanidade perpassa diversas criações hipnotizantes e, ao mesmo tempo, a prática reiterada da cópia. Essa assertiva pode ser confirmada pelo fato de que os seres humanos aprendem e apreendem reproduzindo os atos e a interlocução alheia, e após suficientes reiterações é que se domina a forma expressiva e se consegue atingir um patamar que seja compatível com a inovação24.

O autor também elucida que:

(...) se pode concluir: (a) que toda criação advém de uma experiência que lhe antecede, (b) que a constatação da originalidade significa uma ruptura com o que já exista e (c) que também o conceito de reprodução/plágio deve levar em conta o grau de distância entre todo o acervo pretérito e o salto qualitativo do contributo mínimo da obra, supostamente copiada. A última assertiva é deveras importante, pois a se levar rigidamente o contexto de tutela a obra anterior, dificilmente alguma criação estaria impune do entendimento sobre reprodução25.

No que se refere a relação da figura de autor com os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, importa ressaltar que, além da Convenção de Berna, o Acordo TRIPs também prevê que a figura do autor é destinada a seres humanos e, da mesma forma, o inciso XXVII do art. 5º da Constituição Federal e o item 2 º do Art. 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, relacionam necessariamente tal condição à figura de uma pessoa e/ou de um ser humano capaz de possuir herdeiros26.

Atualmente, a LDA estabelece, no caput do Art. 7° prevê que “São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como:” (...).

A letra da LDA, combinada com o entendimento majoritário da doutrina prevê que:

A proteção autoral tem como requisitos o esforço criativo investido, ou seja, o processo de criação deve resultar de uma operação psicológico-criativa, com a qual se materializa, a partir do nascimento da obra, verdadeira externalização da personalidade do autor. Portanto, a obra é resultado do que a personalidade do autor pode sintetizar27.

Nesse sentido, Manoel J. Pereira dos Santos28 explica:

O Direito de Autor deve estabelecer o equilíbrio ideal entre o interesse da coletividade pela difusão e pelo progresso do conhecimento, de um lado, e o interesse privado pela proteção do esforço criativo e do investimento realizado pelo autor, de outro lado.

Nesse contexto, Paranaguá e Branco afirmam que “o legislador teve duas grandes preocupações: a) enfatizar a necessidade de a obra ter sido exteriorizada e b) minimizar a importância do meio em que a obra foi expressa29. Isso porque o Art. 11° da LDA determina que “autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica”.

1.2.1 Criatividade

A criação é o ponto de partida para o direito do autor. Por isso, a definição de quem terá sua obra intelectual protegida é estabelecida com base na criação da obra. Doutrinadores como Antônio Chaves explicam que “a relevância do direito do autor está intimamente relacionada com a própria importância da criação intelectual: origem, base, desenvolvimento de tudo quando existe de belo e de construtivo, no mundo”30.

A palavra “criação”, com sua origem etimológica no radical “creare” do latim, que significa “dar existência a, tirar do nada”, está intrinsecamente ligada à ideia de “criatividade”31. A criatividade é a capacidade humana de dar vida a algo novo e original, seja uma obra de arte, uma inovação tecnológica, ou uma solução criativa para um problema. Assim, a criação, como ato de dar forma e existência a algo a partir do nada, é um reflexo direto da criatividade humana, que permite a materialização de ideias inovadoras e únicas no mundo.

Essa parte da doutrina, portanto, entende existir a relevância da criação diante de um atributo essencialmente humano, que é capaz de imaginar, inventar e produzir. Nesse sentido, Chaves elucida:

A matéria-prima do direito do autor é, com efeito, mais preciosa do que o petróleo, o ouro ou os brilhantes: a criatividade, o mais alto atributo que a natureza poderia proporcionar ao homem32.

Ou seja, ainda que o requisito e a definição da criatividade não são expressamente previsto na LDA e tampouco a Convenção de Berna, ela desempenha um papel fundamental na determinação da proteção de uma obra sob o direito autoral. A criatividade é inerente à criação autoral e muito defendido, na avaliação da originalidade e do merecimento de proteção de uma obra, pois segundo David Bohm, a criatividade é uma característica fundamental da mente humana e está intrinsecamente ligada à capacidade de perceber, questionar e explorar as complexidades do mundo, podendo ser aprimorado para gerar resultados que sejam harmoniosos e que garantem uma sensação de beleza33.

Dessa forma, Simone Nunes, em sua obra sobre direito autoral afirma que a criatividade está implícita no texto legal, que “determina serem obras intelectuais protegidas ‘as criações do espírito’”34. Assim descreve a autora o mencionado requisito:

(...) Na lição de Ascensão:

Se a obra é a forma de uma criação do espírito, necessariamente haverá que exigir nesta o caráter criativo. […] [T]em que haver o mínimo de criatividade ou originalidade, que por vezes se torna até essencial para determinar se há violação de direito de autor preexistente. […] [O] direito de autor […] não existe para reprimir a imitação, mas para premiar a criatividade. […] Na exigência de criatividade está implícita a da individualidade, como marca pessoal dum autor. […] A originalidade é indispensável mas não representa característica adicional, pois já está implícita na exigência da individualidade. A originalidade é, em verdade, a tarefa da criação que se mostra sempre pessoal, implicando que o contributo do espírito fique impresso na obra criada, complementa o autor. (...)

Acerca da ideia, depreende-se igualmente do enunciado legal que ainda quando a forma de expressá-la for a única possível, não havendo qualquer criatividade, não se estará diante de uma obra protegida. E o que vem a ser tal criatividade? É justamente a impressão de algo pessoal naquilo que é comum, é a forma pessoal e, portanto, única de expressão de uma pessoa35.

1.2.2 Originalidade

Já a originalidade, é um conceito análogo à criatividade. O requisito e a definição da originalidade também não são expressamente previstos nos diplomas normativos, contudo, é por meio dela que se avalia a importância que uma obra deve ter para justificar sua proteção legal, possibilitando a distinção entre criações originais e simples cópias, e reconhecendo seu valor para a sociedade.

A palavra “original” tem origem no latim “originale”, que se refere a algo que é relativo a uma origem, algo que é autêntico e não derivado de outras fontes. No contexto da criatividade e das obras, ser “original” significa que algo é único, genuíno e não uma cópia ou imitação de algo preexistente. A originalidade é um valor importante na criação artística e intelectual, frequentemente associada à autenticidade e à singularidade da obra.

Portanto, a originalidade é pautada justamente nos fundamentos e funções do direito autoral, pois só é possível estabelecer um vínculo de apropriação da obra pelo seu criador se a obra for original. Por originalidade se compreende o elemento novo da obra, que nada tem a ver com a ideia, com a temática, ou mesmo com a qualidade da obra (ou falta dela).

Logo, a obra deve ter traços e caracteres próprios, que a diferencie intrínseca e extrinsecamente de outras obras anteriores.

Ademais, considerando o fato de que toda criação se inspira de alguma forma e em alguma instância em criações anteriores, conforme já adiantado, a originalidade pode ser considerada uma característica relativa, o que significa que não é necessário atingir uma absoluta novidade para obter proteção. Até mesmo o uso não intencional de elementos da herança cultural existente pode ser considerado criativo e passível de proteção legal.

No que se refere a aplicabilidade desse requisito no cenário de obras criadas por IA, deve ser feita uma análise para a tutela legal de proteção autoral, que pode ser subjetiva, se advinda da personalidade do autor, e objetiva se for um contributo criativo relevante, isto é, que não reproduza algo já existente. Nesse ponto, já existem entendimentos que suportam que a criatividade e a originalidade não são elementos exclusivos ao ser humano, a depender da aplicação dos algoritmos genéticos e técnicas de aprendizagem utilizados para a geração da obra.

Entende-se, portanto, pelo posicionamento de grande parte da doutrina, que devem ser considerados, rigorosamente, os requisitos da originalidade e criatividade do autor. No entanto, a fim de determinar se sua individualidade foi expressa na obra.

1.2.3 Atributos da pessoa humana

Resolvidos os critérios para a proteção autoral de obras, torna-se necessário debater sobre os requisitos de o autor ser, necessariamente, uma pessoa física, com criatividade e emoções e que tenha intenção de criar, isto é, algum nível de previsibilidade do resultado final. Isso porque, diante deste entendimento, dificilmente uma IA poderia ser reconhecida como autora de uma obra, ainda que criada de forma altamente autônoma, pois a autoria somente pode ser atribuída a seres humanos.

Em primeiro lugar, o grau de previsibilidade e a clareza acerca da existência de originalidade nas obras criadas por IAs de forma autônomas traz à tona o seguinte questionamento: um outro sistema não chegaria ao mesmo resultado exato se fosse alimentado com dados similares?

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Uma vez que a IA opera com base em algoritmos e dados, a questão da originalidade, o grau de previsibilidade e a capacidade real de criatividade autônoma levanta dúvidas, pois embora a a IA possa produzir conteúdo que aparenta originalidade, muitas vezes isso é derivado de informações já contidas em seu banco de dados, levantando desafios na avaliação da autenticidade e originalidade de suas criações. Ao se questionar se um outro sistema com dados semelhantes, ao ser alimentado com informações idênticas ou análogas, chegaria ao mesmo resultado exato, estamos sugerindo que a IA pode produzir obras que são mais o resultado de processamento de dados do que de um ato criativo genuíno. Essa incerteza sobre a autenticidade e originalidade nas criações de IA apresenta desafios significativos na determinação de quem é o verdadeiro autor e como a proteção legal de tais obras devem ser levada em consideração na busca pelo preenchimento das lacunas jurídicas atuais.

A questão torna-se ainda mais complexa na medida em que o processamento de dados e a sofisticação das tecnologias das IAs vem aumentando com o tempo, criando um cenário em que existem diferentes mecanismos de criação, ou seja, que variam no que tange à autonomia das máquinas na produção do resultado final e que podem, inclusive, criar meta-artistas. Esse ponto é extremamente relevante para a discussão sobre eventual necessidade de desconstrução do antropocentrismo e do protagonismo do autor humano que é encontrado na legislação brasileira36. Isso porque, legislação brasileira, com seu enfoque no autor humano como figura central, pode carecer de abordagens adequadas para reconhecer a contribuição da IA e distribuir direitos de maneira justa, indicando a necessidade de adaptação legal para acomodar o cenário em constante evolução das criações tecnológicas, uma vez que a IA é uma ferramenta que opera com base em algoritmos e dados fornecidos por seres humanos.

Outro ponto a ser discutido é a intencionalidade no processo criativo, definido por John Searle, filósofo analítico e grande estudioso da Neurociência, Inteligência Artificial e Ciências Cognitivas, como “propriedade de muitos estados e eventos mentais pela qual estes são dirigidos para, ou acerca de, objetos e estados de coisas no mundo37, sendo, portanto, um atributo específico do ser humano por ser uma propriedade física do nosso cérebro.

Essa perspectiva subjetiva acerca da forma que criamos expressa um posicionamento contrário à atribuição de titularidade das obras a máquinas inteligentes, na medida em que operam em sintaxe e não possuem mentes. Ou seja, na perspectiva de Searle, um computador não tem capacidade de pensar; atua através da manipulação de símbolos sem significados; trata-se de mera simulação. Não se compara com a mente humana e seus atributos biológicos e da natureza, ainda que sua programação tente reproduzir os fenômenos operacionais do cérebro humano38.

Em essência, a visão de Searle destaca a distinção fundamental entre a criatividade humana e a mera simulação realizada por máquinas, ressaltando a complexidade e singularidade do processo criativo humano e, consequentemente, levanta desafios importantes em relação à atribuição de autoria e direitos em criações de IA39.

1.3 Atribuição de titularidade das obras criadas por IA no cenário internacional

O desenvolvimento e ampliação nos campos de atuação da IA no dia a dia ocorre a nível global. Nesse sentido, já existe uma intensa discussão no cenário jurídico internacional acerca da propriedade intelectual das obras criadas por IA.

Para isso, é importante ressaltar, novamente, a Convenção de Berna de 1886, que, conforme Luca Schirru destaca, foi o primeiro tratado internacional sobre os direitos autorais pois é um marco histórico que estabeleceu a necessidade da observação de uma previsão legal existente para resolver as controvérsias desse campo do direito e tecnologia40.

Assim, Schirru destaca os EUA, a União Europeia e a Austrália como países que se assemelham na visão da figura do autor. Isso porque equiparam o autor com um ser humano, reforçando o contexto de sua legislação. Nessa concepção, “[...] os direitos decorrentes de autoria devem ser atribuídos a seres humanos, pois as máquinas não são sujeitas a direitos41.

No caso da União Europeia, houve uma tentativa de construir uma harmonização das leis de cada país na matéria de Propriedade Intelectual, através de oito diretivas42. Como exemplo, no que se refere à proteção por direito autoral dos programas de computador, muitos estados membros da UE apresentam leis que evidenciam e restringem a autoria à pessoa física. Todos os estados seguem essa diretiva e não concebem a IA como um autor43. O Tribunal de Justiça Europeu, portanto, determinou que a proteção é concedida se a obra expressar “a própria criação intelectual do autor” e estendeu a todos os direitos autorais, a definição de originalidade contida nas três diretivas específicas da UE, relativas a programa de computador44, bancos de dados45 e fotografias46, e ressaltou a necessidade de a obra refletir a personalidade e as habilidades criativas do autor.

No entanto, a Diretiva Comunitária 91/250/CEE da UE relativa à proteção jurídica dos programas de computador não versa sobre a proteção e o regime de obras geradas por programas de computador capacitados com algoritmos de IA.

Nas palavras de P. Bernt Hugenholtz e João Pedro Quintais47:

A atual estrutura de direitos autorais da UE é, em sua maior parte, omissa em relação a questões de objeto de direitos autorais e autoria. Apesar da ampla harmonização dos direitos autorais, nenhuma diretiva harmoniza o conceito de obra de autoria em termos gerais.

A jurisprudência europeia se debruça fortemente na ideia de que é a criação intelectual do próprio autor, levando em consideração presença de liberdade criativa para fins de direitos autorais.

Segundo Hugenholtz e Quintais, a jurisprudência do CJEU sobre originalidade, baseia-se completamente na noção de um ser humano envolvido em atos criativos - refletindo a “escolha criativa”. Nesse sentido, citam os casos Painer, em que o Tribunal ''ao fazer essas várias48 escolhas, o autor de um retrato fotográfico pode marcar a obra criada com seu 'toque pessoal'''49 e Cofemel, destacando que ''para que um objeto possa ser considerado original, é necessário e suficiente que o objeto reflita a personalidade de seu autor, como expressão de suas escolhas livres e criativas''50. Ambos também mencionam:

Além disso, de acordo com o CJEU, os direitos exclusivos harmonizados concedidos ao autor na Diretiva InfoSoc estão necessariamente vinculados a um criador humano, não a uma entidade legal, como um produtor ou editor de filmes. Talvez a formulação mais clara desse princípio venha da advogada-geral Trstenjak em seu parecer no caso Painer, onde ela concluiu, com base na redação do Art. 6 da Diretiva de Prazo, que ''somente as criações humanas são, portanto, protegidas, o que também pode incluir aquelas para as quais a pessoa emprega um auxílio técnico, como uma câmera''51. Essa conclusão foi endossada pelo Tribunal52.

Logo, o cenário europeu abrange apenas a inovação e a criatividade humana no que tange os direitos autorais, mantendo as obras criadas por IA desprotegidas.

O EUA é, até o momento, em termos legislativos, silente sobre a matéria de Direitos Autorais e obras produzidas por IA. O American Copyright Act é a única fonte legal de proteção de direitos autorais no país. No que tange às obras criadas por pessoas que usaram software como instrumento, O Relatório Final da Comissão Nacional de Novos Usos Tecnológicos de Obras com Direitos Autorais (CONTU), criado em 1974 para estudar variados temas concernentes a tecnologias e direitos de autor, determina que o usuário do programa pode ter o status de autor.

Ademais, o CONTU destacou a posição dos EUA de que a originalidade é um critério fundamental da proteção do direito de autor.

O Future of AI Act53 - que estabelece um comitê consultivo federal sobre IA – define IA como:

Qualquer sistema artificial que realize tarefas sob circunstâncias variadas e imprevisíveis, sem supervisão humana significativa, ou que possa aprender com sua experiência e melhorar seu desempenho.

No entanto, alguns julgados do sistema Copyright demonstram a tendência em negar totalmente a existência de um autor não humano na criação de uma obra, especialmente nos casos de Inteligência Artificial autônoma e independente dos programadores. Para as autoridades americanas, “o nexo entre a mente humana e a expressão criativa” é um elemento vital dos direitos autorais54.

Em agosto de 2023, houve uma decisão importante do tribunal de Washington, D.C.. O artigo de Blake Brittain noticiou o posicionamento de que “uma obra de arte criada por inteligência artificial sem qualquer intervenção humana não pode ser protegida por direitos autorais de acordo com a legislação dos Estados Unidos”55.

A juíza fundamentou-se56 no sentido de que somente obras com autores humanos podem receber direitos autorais, confirmando a rejeição do Escritório de Direitos Autorais de um pedido apresentado pelo cientista da computação Stephen Thaler em nome de seu sistema DABUS. Menciona também, que Copyright Office, por meio de uma declaração alegou que “acredita que o tribunal chegou ao resultado correto”.

Somente obras com autores humanos podem receber direitos autorais, disse a juíza distrital dos EUA Beryl Howell na sexta-feira, confirmando a rejeição do Escritório de Direitos Autorais de um pedido apresentado pelo cientista da computação Stephen Thaler em nome de seu sistema DABUS.

Ademais, outro caso que delineou a posição do Escritório de Direitos Autorais dos EUA foi o caso da carta ao romancista gráfico Kris Kashtanova, que tentou registrar um trabalho contendo imagens criadas com a ajuda do software ‘Midjourney’ AI57. Embora alguns aspectos da legislação em vigor no Brasil possam se assemelhar ao sistema de Copyright e a situação atual demonstre que a distinção entre eles não é mais tão clara, o sistema brasileiro de droit d'auteur não permite a proteção de produtos cujo conteúdo é principalmente resultado da aleatoriedade ou imprevisibilidade gerada pelo processamento de dados de inteligência artificial58.

Nesse sentido, a Suprema Corte dos EUA, em 1991, definiu os padrões no caso Feist Publications v. Rural Telephone Service Co59, quando decidiu que a proteção dos direitos autorais só deve ser concedida a obras que possuam “pelo menos algum grau mínimo de criatividade” (tradução nossa), mas que “o nível de criatividade exigido é extremamente baixo; até mesmo uma pequena quantidade será suficiente” (tradução nossa)60.

A exigência de um autor humano é evidente na lei de direitos autorais dos EUA. Porém, conforme menciona Jean-Marc Deltorn e Franck Macrez no livro Authorship in Age of Machine Learning and Artificial Intelligence, isso não exclui o obstáculo em “identificar o autor do processo algorítmico que imita ou aumenta alguns dos atributos criativos na participação de artistas humanos na produção de uma obra”61. (tradução nossa).

Já o caso Burrow-Giles Lithographic Co. v Sarony também merece destaque. Trata-se de uma ação judicial em que Sarony, litógrafo e autor da demanda, acusou o réu de violar seus direitos autorais em relação a uma fotografia, cujo título é 'Oscar Wilde’. Ainda que esse caso não trate da exigência do autor ser uma pessoa física, é importante ressaltar que a Corte examinou se era constitucional estender a proteção de direitos autorais a fotografias reproduzidas mecanicamente, sem a necessidade dos critérios de originalidade e criatividade.

Conforme anteriormente exposto, a originalidade e criatividade são requisitos que podem ser considerados como a expressão da criatividade humana. O requisito de originalidade está ligado à ideia de que as obras protegidas por direito autoral devem ser produtos da criatividade e do intelecto humano, isto é a originalidade e criatividade está intrinsecamente relacionada com a pessoa física, uma vez que se espera que a criatividade e a originalidade sejam características inerentes aos seres humanos.

Nesse sentido, Burrow-Giles argumentou que a fotografia de Napoleon Sarony de Oscar Wilde não se enquadrava, portanto, como uma produção original do autor. Após essa decisão, a Suprema Corte reformulou a noção de autoria e direitos autorais, conferindo exclusivamente aos seres humanos o privilégio de proteção exclusiva62, tendo em vista que capacidade de criar algo novo e original é uma característica distintiva da humanidade, e o direito autoral reconhece e protege essa expressão criativa como um direito fundamental.

O mesmo raciocínio ocorreu no caso Bleistein v. Donaldson Lithographing Co., em 1903, também foi um marco importante. A questão central no caso era se os cartazes produzidos pela Donaldson Lithographing Company eram suficientemente originais para se qualificarem para proteção de direitos autorais sob a lei dos EUA. A decisão estabeleceu um precedente fundamental ao afirmar que as obras não precisam ser de alta arte ou extremamente criativas para receber proteção de direitos autorais. Em vez disso, a originalidade era o principal critério, e as obras eram consideradas passíveis de proteção desde que fossem originais e tivessem um nível mínimo de criatividade63.

Outra jurisprudência do TJUE que confirma a natureza essencialmente humana da autoria e sua conexão com os requisitos de proteção é do caso Luksan64, em que o Tribunal estabeleceu uma ligação clara entre o Artigo 17 (2) da Carta dos Direitos Fundamentais da UE (que estabelece que “a propriedade intelectual deve ser protegida”) e a proteção do autor de uma obra protegida por direitos autorais (nesse caso, o diretor principal de uma obra cinematográfica, portanto uma pessoa física). A Corte argumentou que o diretor principal de uma obra cinematográfica tinha, como autor, direito aos direitos de exploração dessa obra65.

Ana Ramalho66 menciona o US Copyright Office practice, que se trata de um manual administrativo do Registro de Direitos de Autor que, embora não tenha força ou efeito de lei, fornece orientações e interpretações técnicas, mencionando a necessidade de que a obra seja criada por um ser humano, uma vez que a lei de direitos autorais apenas protege o produto de uma mente criativa e do trabalho intelectual, ressaltando, então, a Seção 101 do Título 17 do referido documento, que define obras anônimas como aquelas em que nenhuma pessoa física é identificada como autor, o que parece presumir que um autor é necessariamente um ser humano.

Entendimento similar ao americano ocorre na Austrália, onde destacam-se os casos em que foi apontada a ausência de autoria em determinados produtos desenvolvidos por programas de computador67, revelando-se, assim, uma tendência a não se reconhecer proteção autoral a produtos criados por sistemas de IA68.

A autora também menciona as decisões nos casos69:

Ice TV,61 Phone Directories (tanto em primeira instância quanto em apelação)70 e Acohs71 enfatizam que a autoria é um elemento fundamental para avaliar se uma obra é protegida por direitos autorais, e todas se recusam a conceder direitos autorais a produtos gerados por computador e que não tenham (completamente ou em grande parte) contribuição humana72. Decisões anteriores a essas chegam ao ponto de afirmar que ‘a palavra ‘original’ conota a ‘autoria’’, enfatizando a dependência da proteção de direitos autorais em relação à autoria (humana)73. A originalidade, portanto, exige que um autor tenha colocado pessoalmente algum esforço mental/intelectual na obra, e que esse esforço mental, mesmo que seja baixo, seja direcionado à forma particular de expressão dessa obra74.

Ademais, segundo ela75:

Conclusão provisória Todas as jurisdições examinadas - UE, EUA, Austrália - têm duas coisas em comum. Primeiro, elas ainda equiparam o autor a um ser humano76. Isso faz sentido porque os direitos precisam ter um sujeito - os direitos decorrentes da autoria precisam ser atribuídos a seres humanos, pois as máquinas não são sujeitos de direitos. Em segundo lugar, eles entrelaçam a autoria com os requisitos de proteção de uma forma que a primeira parece estar embutida na segunda77. (tradução nossa).

Já, segundo Ramalho, as jurisdições de direito da Nova Zelândia, Reino Unido78, Irlanda79, Hong Kong, África do Sul e Índia demonstram que, para as criações geradas por meio de computador, deve-se identificar o responsável por criar o trabalho que será operacionalizado pelo computador, sendo que a este será considerado da criação. Nesse sentido, esses países consideram que o direito das obras criadas por IAs pertencem à pessoa que programou o sistema de IA para que esta pudesse desenvolver a obra, e não às máquinas, dando mais ênfase à intenção criativa do programador no momento que criou o software capaz de produzir obras intelectuais, ou à empresa que encomendou a obra, que teve uma intenção criativa80.

A Copyright, Designs and Patents Act 1988 (UK) (CDPA) do Reino Unido prevê, de fato, que “o autor deve ser considerado como a pessoa por quem as providências necessárias para a criação da obra são tomadas”81. Entende-se, portanto, que o autor não é necessariamente o criador.

Ademais, o CDPA possui uma menção que regulamenta as obras geradas por computador, restringindo estas a àquelas em que não há autor humano no trabalho.

No entanto, a ideia de algo ‘’gerado por computador’’ é diferente do que é “gerado por IA”, principalmente no que tange a autonomia da máquina, pois em relação às obras geradas por computador, será considerado autor da obra a pessoa por quem são criados os arranjos necessários.

O caso clássico do Reino Unido é o Walter v Lane (1900), que dizia respeito aos repórteres do Times Newspaper que transcreveram e corrigiram um discurso do Conde Lord Rosebery e, assim, buscou a titularidade dos direitos autorais do texto, em sua versão. O entrevistado John Lane publicou um livro chamado “Appreciations and Addresses, Delivered by Lord Rosebery”, supostamente incluindo trechos do Times Report. A Câmara dos Lordes concluiu que, de acordo com a Lei de Direitos Autorais de 1842, os repórteres poderiam ser legitimamente considerados os autores do trabalho. Os esforços, o tempo e as habilidades que investiram na criação do artigo foram reconhecidos como tendo um caráter original.

Embora seja importante destacar que o termo “originalidade” não estava expressamente mencionado na Lei de Direitos Autorais de 1842 (a palavra “original” só foi introduzida na Lei de Direitos Autorais de 1911), a decisão no caso Walter v. Lane posteriormente se tornou um importante precedente para o conceito de “originalidade” na legislação de direitos autorais do Reino Unido82.

Por outro lado, casos mais recentes no Reino Unido destacam o padrão de originalidade de outra forma. Isso porque um caso relevante, que trata de direitos autorais de jogos de computador no campo de softwares, entre a Nova Productions Ltd. e a Mazooma Games Ltd., teve como decisão do Tribunal de Recurso a retificação da conclusão do juiz de primeira instância de que o que foi tomado foram apenas “ideias que pouco têm a ver com a habilidade e esforço despendidos pelo programador e não constituem a forma de expressão das obras literárias em que se baseia”. A decisão do Tribunal de Recurso confirma a posição de que a lei dos direitos de autor protegerá o software de computador, considerando uma violação aos direitos do autor, apenas nos casos em que o código fonte desse software for substancialmente copiado83.

Em outros países como na Ucrânia e o Canadá, a legislação resume-se a exigir que o autor de uma obra seja um cidadão. Da mesma forma, no Brasil e em diversos outros países, incluindo a Espanha e a Alemanha, há o entendimento doutrinário majoritário no sentido de que não há proteção para as obras realizadas por IA, devido aos requisitos presentes na legislação.

Já na China, houve uma recente decisão que chamou atenção dos estudiosos, pois demonstrou uma nova possibilidade para esse cenário.

A referida decisão refere-se a ação ajuizada em 2020 pela empresa Tencent, que alegou ter havido violação de direitos autorais em artigos feitos por uma IA denominada: “Dreamwriter”, que, através de uma tecnologia de IA, escreve artigos com base em dados e algoritmos.

O tribunal chinês reconheceu os direitos autorais desses artigos escritos pela “Dreamwriter” e decidiu a favor da Tencent, porém, não aduziu de forma específica se as obras protegidas por direitos autorais podem ser criadas apenas por humanos. Por outro lado, foi um precedente internacional importante, pois, levou em consideração que os artigos em questão foram criados sob o controle e supervisão da Tencent, por sua principal equipe criativa, equipe editorial, equipe de produto e equipe de desenvolvimento técnico, e que o requisito de criatividade/originalidade estaria preenchido84.

Importante também, analisar a Índia que, na definição da titularidade das criações geradas por IA, considera a hipótese da existência ou não de intervenção ou supervisão humana nas criações. Os tribunais apoiam-se na jurisprudência, determinando o respeito à criatividade, independentemente de onde ela surgiu. Nesse sentido, na Índia, a IA também poderá ter sua autoria reconhecida85.

A Alemanha, em grau recursal no Judiciário, concedeu ao requerente do pedido, Dr. Stephen Thaler, a responsabilidade pelo comando (input) para que a DABUS fosse a criadora das invenções. Ou seja, o Dr. Thaler seria o nomeado como inventor responsável por acionar a máquina, demonstrando a necessidade da atuação humana para que a IA atue.

Já na Austrália, o Vice-Comissário de Patentes havia rejeitado o pedido por entender que significado normal de “inventor”, ainda que não esteja definido na Lei de Patentes86, era “inerentemente humano” e que a designação da IA como inventor era incompatível com o Art. 15 da Lei de Patentes e que uma IA não poderia ter nenhum interesse benéfico em propriedade.

O Dr. Thaler requereu a revisão judicial da decisão do Comissário. A Austrália, em revisão judicial, entendeu não haver “nenhuma disposição específica [na Lei de Patentes] que expressamente exclua a possibilidade de que um sistema de inteligência artificial possa ser um inventor”. Ou seja, ainda que a decisão do Tribunal Federal Australiano não seja definitiva por estar pendente de análise do recurso apresentado pelo Comissário Australiano de Patentes, a perspectiva atual do poder judiciário local permitiu a indicação da máquina como titular dos direitos autorais de suas criações.

A decisão do Juiz Beach reconheceu o papel significativo da IA na contribuição inventiva e técnica, que indicou que não deveria ser adotada uma conceituação tão rígida da figura do “inventor”, pois, em sua perspectiva, a máquina executa a mesma função do humano. Portanto, entende não haver fundamento legal para impedir que a IA possa ser um “inventor” no sentido dado pela Lei de Patentes. No que tange os argumentos do Comissário relativos ao Art. 15 da Lei, que descreve a quem pode ser concedida uma patente, o Juiz Beach disse que o pedido só estava na fase das formalidades, o que apenas exigia que o “inventor” fosse nomeado, e não estava nem perto da fase de concessão. Concluiu, assim, a possibilidade de Dr. Thaler possuir os direitos da patente em relação a invenção feita por IA.

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Ademais, artigo 15(1)(c), que fora citado pelo Comissário como um dos fundamentos de seu recurso, dispõe que pode ser concedida a patente a quem obtenha a titularidade da invenção do inventor ou de uma pessoa mencionada na alínea b) [alguém que teria, com a concessão de uma patente para a invenção, direito a que a patente fosse atribuída à pessoa].

O Juiz Beach refutou essa argumentação ao afirmar que, nesta instância, o Dr. Stephen Thaler fundamentou o título com relação à criação do DABUS. Embora o DABUS não possua personalidade jurídica, o que impediria a atribuição legal da invenção, o título ainda poderia ser derivado do DABUS devido à sua posse, à titularidade dos direitos autorais do código-fonte do DABUS, bem como à propriedade e posse do computador no qual o mesmo está instalado.

No âmbito brasileiro, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) enfrentou essa questão dos direitos autorais de obras criadas por IA na análise do pedido de patente por meio do Parecer n° 00024/202287, no qual entendeu pela impossibilidade de indicação ou de nomeação de IA como inventora. Trata-se de sistema de IA, conhecido como “DABUS” (ou Device for the Autonomous Bootstrapping of Unified Sentience – Dispositivo para o Bootstrapping Autônomo da Senciência Unificada). Foi citado o Art. 6º da Lei de Propriedade Intelectual brasileira (“LPI”), fundamentando que para ser sujeito de direitos, é necessário capacidade conforme Art. 1° do Código Civil.

No referido parecer, também foi mencionada a Convenção de Paris de 1883, que em seu Art. 4º dispõe que “o inventor tem o direito de ser mencionado como tal na patente”, insinuando que o autor ou o inventor é, necessariamente, uma pessoa física. Ademais, cita o Art. 5º do Código de Propriedade Industrial, lei antecessora à LPI, que previa o direito do autor em “obter a patente que lhe garanta a propriedade” – redação extremamente similar a da atual lei, LPI.

O INPI, inclusive, fundamentou sua análise com o exemplo do caso do fotógrafo David Slater, que ocorreu em 2011 em San Fransciso, que deixou uma câmera à disposição de macacos e que, um deles, conhecido como Naruto, tirou selfies. Esse caso gerou uma emblemática disputa judicial pelos direitos autorais da obra entre o fotógrafo e uma entidade de proteção animal, que buscava os lucros para projetos de proteção da espécie. Em 2016, o juiz determinou que a Lei de Direitos Autorais (Copyright Act) não abrange os animais. A entidade recorreu, mas o resultado final foi um acordo para cessar o conflito88.

Citou também outro caso emblemático que ocorrera em 2017, quando um grupo de pesquisadores holandeses programou o algoritmo de uma máquina para, de forma autônoma, criar uma obra semelhante a autor Rembrandt, chamada “The Next Rembrandt”. Nesse caso, a IA também possuía um sistema autônomo baseado em padrões geométricos composto pela digitalização das obras realizada pelos pesquisadores, mas que, no entanto, era imprevisível e muito complexo, sendo, portanto, capaz de desenvolver uma obra, como um comportamento humano89.

CAPÍTULO 2 - INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

2.1 Conceitos e definições

De acordo com Armand Vallin Feigenbaum, a IA é a parte da ciência da computação voltada para o desenvolvimento de sistemas de computadores inteligentes, ou seja, sistemas que exibem características, as quais se relacionam com a inteligência no comportamento do homem – compreender a linguagem, aprender, raciocinar, resolver problemas, e assim por diante90.

Tendo em vista o amadurecimento surpreendente dessa ciência com o passar dos anos, podendo-se considerar que hoje está presente nas mais diversas áreas do cotidiano91.

A IA só é capaz de realizar tarefas que os seres humanos fazem porque desenvolvem o aprendizado motor e a habilidade cognitiva (através de instruções ou prática), a organização do novo conhecimento (representações efetivas) e as descobertas de novos fatos e teorias através da observação e experimentação92.

Fato é, que esses modelos de aprendizado por experiência são diversos, o que demonstra apenas a ponta do iceberg no que tange a complexidade do entendimento e regulação das obras criadas pela IA.

As redes neuronais, denominadas de deep learning, são um exemplo de aprendizado que se assemelham com o funcionamento do cérebro humano. Segundo93 Tanya Tiwari, Tanuj Tiwari e Sanjay Tiwari:

A aprendizagem profunda, como o termo “deep”, especificamente, é inspirada no cérebro humano e consiste em redes neurais artificiais artificiais (ANN) que são modeladas em uma arquitetura semelhante presente no cérebro humano. Na aprendizagem profunda, o aprendizado é realizado por meio de uma rede profunda e multicamadas de neurônios interconectados. (Tradução nossa).

Ou seja, a IA é o nome dado a algoritmos que realizam ações cognitivas análogas às dos seres humanos e, por isso, conseguem produzir produtos intelectuais. Esse mecanismo irá majorar a resolução e qualidade das obras para o estudo de seus detalhes e a alimentação da base de dados necessária para o objetivo perseguido94. Quanto maior o número de camadas de processamento deste sistema, mais sofisticado e intrincado ele vai ser.

Dentre essas capacidades tecnológicas está o machine learning, que nada mais é do que um método de avaliação de dados que automatiza o desenvolvimento de padrões analíticos. Ou seja, o sistema descobre padrões e, ao longo do tempo, se torna capaz de se aperfeiçoar nas tomadas de decisões sem a interferência humana95. Resumidamente, o machine learning é a técnica pela qual os algoritmos aprendem ao se comunicarem com as informações inseridas e, portanto, na medida em que esses algoritmos alimentam o sistema com mais informações para seu treinamento, mais aprimorado e dotado de precisão o modelo será96.

Esse aprendizado pode ser dividido em: supervisionado e não-supervisionado97. Ainda que este não seja o ponto central da pesquisa, é importante ressaltar que a principal diferença entre o supervisionado e o não-supervisionado é que o primeiro utiliza conjuntos de dados com rótulos para treinar algoritmos de classificação ou previsão e demandam o envolvimento do usuário durante o processamento de dados para garantir que a rotulagem seja feita adequadamente. Ou seja, no aprendizado supervisionado, o computador recebe exemplos de entradas que são rotuladas com as saídas desejadas. O objetivo desse método é que o algoritmo seja capaz de “aprender” comparando sua saída real com as saídas “ensinadas” para encontrar erros e modificar o modelo de acordo com eles. Portanto, o aprendizado supervisionado usa padrões para prever valores de rótulos em dados adicionais não rotulados98.

Já os não supervisionados, sempre operam sem a intervenção humana. Eles detectam e atingem uma estrutura composta por dados não rotulados. Portanto, a única colaboração do usuário é a validação das variáveis de saída, podendo criar algo totalmente inesperado e não intencional pelo programador99.

Como os dados não rotulados são mais abundantes do que os rotulados, os métodos de aprendizado de máquina que facilitam o aprendizado não supervisionado são particularmente valiosos100.

Sem receber uma resposta “correta”, os métodos de aprendizado não supervisionado podem analisar dados complexos que são mais amplos e aparentemente não relacionados para organizá-los de forma potencialmente significativa.

Por conseguinte, o que torna essa máquina apta a entender a linguagem dos seres humanos, é o Processamento de Linguagem Natural (“PLN”), que permite que haja a compreensão de informações de textos e a associação em contexto específico e, consequentemente, se aproxime ao diálogo humano, de forma surpreendente.

Essas técnicas empregadas são relevantes na medida em que, a depender de sua aplicação, é possível identificar o nível de previsibilidade do resultado final, bem como da autonomia do sistema, da interferência humana e outras particulares em cada caso do processo de criação da obra101.

2.2 Abordagens dos sistemas

É importante que sejam apresentadas de forma mais aprofundada algumas das principais tecnologias empregadas no campo da ciência da computação que lida com a simulação de comportamento inteligente em computadores, tendo em vista que trata-se de um fator importante para a construção dos produtos intelectuais e na identificação dos respectivos níveis de previsibilidade de um resultado final102.

Jean-Marc Deltorn e Franck Macrez, em seu livro “Authorship in Age of Machine Learning and Artificial Intelligence”, demonstram como o papel da IA possui grande avanço no campo musical, exemplificando com o álbum que fez muito sucesso no Youtube, intitulado de “I AM AI”, totalmente produzido e composto por IA. Os autores demonstram como as novas técnicas de aprendizagem profunda não se limitam a imitar os estilos de compositores já existentes, mas também combinar várias fontes e estilos, criando composições inéditas e, inclusive, novas modalidades de produção musical103.

O machine learning, conforme já explicitado, está intimamente associado à análise e colaboração prévia do programador, pois empregam métodos de aprendizado de máquina para analisar dados existentes e, no fim, gerar a probabilidade de resultados incertos.

O aprendizado supervisionado e os exemplos fornecidos sobre os quais o algoritmo está sendo treinado para reconhecer padrões são conhecidos como “conjunto de treinamento”. Ou seja, existe uma adaptação de programação prévia que gera frutos inteiramente novos e inesperados pelo programador104.

A intervenção do humano, portanto, é fundamental para o processo de aprendizagem, uma vez que, nas palavras de Lucas Schirru105, é ele que vai “rotular” os dados de treinamento de determinada rede neural, o que irá viabilizar um resultado mais preciso. Por outro lado, o aprendizado não-supervisionado não demanda que os dados sejam “rotulados” de primeira e, por consequência, há menor intervenção humana em um momento inicial, ainda que haja uma participação humana no que concerne ao processo geral de criação, tendo em vista que no final, se faz necessária a análise e interpretação do output – tarefa exclusiva do ser humano106.

Existe também o aprendizado por reforço, que ao contrário das duas modalidades anteriores de aprendizado, “não depende de conjuntos de dados pré-existentes, mas reúne dados de simulações ou jogos. O algoritmo determina as regras com base no feedback contínuo das ações executadas durante o treinamento”107. Ou seja, diferentemente dos seres humanos, a única coisa que o modelo terá, em termos de supervisão, será um sinal, que é a recompensa que ele obteve do sistema. Seu objetivo, então, é maximizar a recompensa. Logo, para atingir tal objetivo, ele pode ter a liberdade de fazer o que quiser pois agirá conforme o feedback das recompensas e a única coisa que ele sabe é que tem que minimizá-las108.

Em geral, os algoritmos de aprendizado de máquina são capazes de construir automaticamente essa heurística, inferindo informações por meio da detecção de padrões nos dados. Segundo Harry Surden109, essas heurísticas estiverem corretas, elas permitirão que o algoritmo fazer previsões ou tomar decisões automatizadas envolvendo dados futuros110.

Assim, as máquinas, cada vez mais, ganham autonomia, tendo a capacidade de criar obras e trabalhos com quase nenhum controle humano, valendo-se, apenas, das aprendizagens de máquinas adquiridas.

Logo, tal desenvoltura tecnológica ganha corpo diante do contexto do aprendizado de máquina, que Harry Surden111 descreve como a:

Capacidade de melhorar o desempenho na detecção de padrões novos ou melhores a partir de dados adicionais. Um algoritmo de aprendizado de máquina pode se tornar mais preciso em uma tarefa (como classificar um e-mail como spam) ao longo do tempo porque seu design permite que ele refinar continuamente seu modelo interno, analisando mais exemplos e inferindo novos padrões úteis a partir de dados adicionais, padrões úteis a partir de dados adicionais. Essa capacidade de melhorar o desempenho ao longo do tempo por meio da analisando continuamente os dados para detectar padrões úteis adicionais é o principal atributo que caracteriza os algoritmos de aprendizado de máquina112.

Drexl explica que as redes neurais “são compostas de camadas de neurônios conectadas por pesos”113 em conexões que podem ser relacionadas com as sinapses. Logo, as redes neurais são a base sobre a qual o deep learning se constrói, permitindo a criação de modelos sofisticados capazes de realizar tarefas de alto nível de complexidade com base em dados brutos.

Assim, a partir de Schmidhuber: “o Deep Learning trata da precisa atribuição de créditos”114 em casos onde a solução de um determinado problema demande múltiplas etapas de operações computacionais. Possui, entre outras finalidades, o “reconhecimento de fala”, “identificação de linguagem” e “síntese de texto para fala”.

O Generative Adversarial Networks (GANs) é explicado por Hilty Drexl, e nas palavras de Schirru:

Consiste em uma dinâmica de caracterizar dois modelos/algoritmos como adversários: um modelo discriminativo e um modelo generativo. ‘Enquanto o modelo generativo é treinado para criar output capazes de imitar aqueles advindos de um conjunto de dados real’115.

Já “o modelo discriminativo é treinado para detectar se um dado é parte de um conjunto de dados real ou se foi gerado por um algoritmo”116. Essa interação de algoritmos é responsável pela criação de imagens117.

Schirru também explica que a técnica do Processamento de Linguagem Natural permite que a IA entenda o significado literal de cada palavra que está sendo dita, bem como o contexto e os significados sintáticos e semânticos, entre outras interpretações e diálogos que possibilitam a interação e sua capacidade de resposta de uma forma que se assemelhe a um ser humano, que tem a capacidade de interpretar e reagir conforme suas emoções118.

Os Algoritmos Genéticos visam emular o funcionamento do cérebro humano e, nessa técnica, “os projetistas humanos não programam diretamente uma solução; em vez disso, deixamos que ela emerja através de um processo iterativo de competição e melhoria simuladas”119. (traduzido por Marcello Borges). Ou seja, não demanda a interferência direta de um ser humano no que concerne àquela solução ideal “além da especificação inicial da função de aptidão”120, Bostrom121. Nesse sentido, Kurzweil122 afirma que o papel do ser humano ultrapassa aquele momento inicial, sendo também um “requisito importante para o sucesso de um AG é um método válido de avaliação de cada solução possível”123.

Por fim, existem os sistemas especialistas que, como o próprio nome diz, se valem de conhecimentos de especialistas humanos de uma determinada área de atuação. Assim, é inegável que esses sistemas possuem uma interferência fundamental de um ser humano e que, a intensidade dessa interferência é resultado da necessidade de um certo nível de perícia e conhecimento detido por um ser humano para a resolução de problemas, uma vez que trata de matérias complexas que ultrapassam o mero conhecimento teórico124.

Logo, a partir dessa análise, é possível entender que o estudo das tecnologias de IA permite uma melhor identificação do papel do ser humano e do montante de interferência desse agente no produto da aplicação de determinados sistemas.

2.3 Resultado final das obras criadas por IA

Ainda que o sujeito/agente diretamente responsável no processo de criação e que o resultado final não seja, de fato, expressão do espírito humano, conforme requer o Art. 7º da LDA, não há como negar que, nessa reprodução do funcionamento do cérebro humano, a IA cria obras passíveis de proteção pelo direito autoral, uma vez que se enquadram na natureza – se artístico, literário, científico do artigo supramencionado125.

Nesse sentido, Luca Schirru126 em sua obra Direito Autoral e Inteligência Artificial, Autoria e titularidade nos produtos da IA seleciona alguns produtos artísticos, literários e científicos que serão destacados aqui.

Dentre os produtos musicais, o exemplo destacado por Schirru é o caso de David Cope, professor de musicologia da Universidade da Califórnia, que criou o programa EMI (Experiments in Musical Intelligence) que consegue compor músicas. Ou seja, a máquina detecta e segue as regras de composição ou os algoritmos de compositores. Philippe Willemart127 destaca sobre o programa EMI:

A máquina é, portanto, capaz de despertar a emoção, mas imita o estilo do compositor. (...) O computador aprende com dados, por isso é baseado em trabalhos existentes. Mesmo que aprenda, é inspirado a uma reação. Ele é capaz de filmar conteúdo preditivo de forma inteligível, ele consegue gerenciar conteúdos em ambientes enormes e que excedem três dimensões, onde o ser humano se perde. Mas ele não inventa nada128.

Ainda, Schirru elucida o funcionamento do EMI como “um sistema informático que ‘buscava emular no sistema informático o estilo de composição de um autor humano, permitindo que o sistema passe a compor por si só129.

Assim, Cope estruturou seu sistema de IA sobre três etapas:

(i) a desconstrução de obras musicais mediante e análise de sua estrutura; (ii) identificação dos traços comuns entre as músicas, de maneira a permitir a construção do ‘estilo’ de um determinado compositor, ou até mesmo o nicho onde estaria inserida aquela obra e, por fim, iii) a recombinação de elementos para o fim de criar novas composições130. (apud)

Para esta tese, é interessante notar que, não obstante considerar EMI como uma ferramenta que lhe auxilia na composição das obras, o que, a priori, seria um argumento a favor da concessão de direitos autorais sobre as obras criadas para Cope131.

Na música, também vale destacar a Watson Beat132, Jukedeck133 e WaveNet134, que são exemplos de sistemas de IA capazes de criar música sem qualquer intervenção humana135.

O Watson Beat, por exemplo:

Emprega dois métodos de aprendizado de máquina para montar suas composições; aprendizado de reforço que usa os princípios da teoria musical ocidental moderna para criar funções de recompensa e uma Deep Belief Network (DBN) treinada em uma melodia de entrada simples para criar uma camada de melodia rica e complexa136.

Em outras palavras, é capaz de compor uma música “ouvindo” pelo menos 20 segundos de outra137.

Um exemplo de criação pelo código da Watson Beat é a música Not Easy138, criada pelo produtor Alex da Kid em colaboração com Watson Beat, que analisou a composição de mais de 26.000 canções da Billboard para encontrar padrões úteis entre várias tonalidades e, depois, Alex dava comandos ao Watson Beat para direcionar para exatamente ao resultado que buscava139.

Já no que tange os produtos audiovisuais, um outro exemplo do protagonismo de um sistema de IA no desenvolvimento de produtos de natureza intelectual é Benjamin, um sistema de IA baseado em tecnologias de redes neurais. O sistema foi “alimentado” com algumas dezenas de roteiros de programas e filmes Sci-Fi, e teve como resultado um roteiro diferente dos demais140. Além disso, Benjamin também foi capaz de criar a letra da trilha sonora utilizada no curta-metragem, após estudar uma biblioteca com trinta mil músicas pop, e que posteriormente foi interpretada por Andrew and Tiger141.

É importante ressaltar, nesse sentido, que as obras criadas por Benjamin possuíam certos padrões de materiais pré-existentes, pois os roteiros eram criados em obras de terceiros142.

Assim, o exemplo demonstra novamente o sistema de IA é capaz de “criar” obras artísticas, mas que, no entanto, mesmos nos casos em que não há uma interferência humana direta, existem outros agentes envolvidos que também devem ter seu papel regulado, tais como aqueles da indústria de entretenimento e na produção de obras artísticas, os pesquisadores, programadores e todos aqueles que, no processo de criação, atribuem à IA uma posição meramente acessória, longe do protagonismo do criador. Ou seja, existe a necessidade de uma interferência humana no processo criativo.

Já no âmbito dos produtos de artes plástica, há o exemplo do experimento “Genetic Images” de Karl Sims, que data de 1993, se utilizava de tecnologias de IA baseadas em algoritmos genéticos que, através de imagens disponibilizadas, os visitantes podem “evoluir” interativamente imagens estáticas abstratas e a IA gera e exibe 16 imagens em um arco de telas. Nesse sentido, “os visitantes se posicionam em sensores em frente às imagens esteticamente mais agradáveis para selecionar quais sobreviverão e se reproduzirão para formar a próxima geração143.

Nesse sentido, entende-se que o sistema da IA funcionaria, com uma certa autonomia, na medida em que realiza sozinha esse processo de evolução de imagens. Assim, Luca Schiru sugestiona a comparação com um artista que “tenta aprimorar um estilo existente ou procurar novas ideias, experimentando aleatoriamente, inspecionando os resultados e descartando tudo, exceto um pequeno subconjunto”. Logo, esse caso demonstra um caráter colaborativo na criação do produto final, tendo em vista a contribuição de diversos outros seres humanos àquele processo144.

No campo das imagens, o DeepDream145 é um exemplo de IA que cria imagens originais sem direção humana, que resultam em paródias de imagens já existentes, bem como em novas imagens. Já no campo dos escritos, destaca-se a Automated Insights146 permite aos clientes criar narrativas automatizadas147.

Tais exemplos demonstram casos em que o sistema da IA foi “alimentado” com centenas de obras anteriores. O resultado, nesse sentido, pode ser considerado como algo dotado de originalidade, pois têm a sua aura preservada pelo fato de serem únicas e de não se repetirem, no entanto, no que concerne à expressão da personalidade e criação do espírito, não é passível de se atribuir de maneira absoluta ao sistema de IA148.

No que tange a autonomia, esses sistemas tomam decisões a partir do que já conhece, por um padrão que cria objetos a partir de regras lógicas. Por isso, por um lado, podemos considerar autônomo esse tipo de sistema de IA, pois pode fazer as suas próprias escolhas a partir do seu conhecimento básico, ainda que programado por um humano149.

Nos produtos literários, científicos e artísticos, há um algoritmo desenvolvido com o objetivo de processar dados de centenas de outras fontes sobre o tema mediante a organização de diversas outras obras pré-existentes. Aqui, a “originalidade” seria pautada em uma habilidade de escolher e arranjar um conjunto de obras já existentes pode potencialmente receber proteção de direitos autorais, desde que as condições estabelecidas pela lei atual sejam cumpridas, e sejam observados quaisquer direitos de terceiros sobre as obras escolhidas, organizadas ou disponibilizadas no produto final. É importante destacar que o conteúdo científico do produto analisado não estaria sujeito à proteção de direitos autorais em nenhuma circunstância, mesmo que tenha sido criado por um ser humano150.

Nesse caso, portanto, a reprodução de obras anteriores e protegidas pelo direito autoral para fins de mineração de dados demanda outro debate acerca da limitação dessa atividade e uma regulamentação desse processo. No entanto, também fica nítido que não cabe uma busca por uma solução normativa única e engessada, tendo em vista essas diversas possibilidades de criação de obras151.

CAPÍTULO 3 - ATRIBUIÇÃO DE DIREITOS AUTORAIS À IA

3.1 Análise da interferência humana, autonomia e grau de previsibilidade do resultado

O estudo das técnicas e da modelagem dos processos de aprendizagem dos sistemas de IA e suas múltiplas manifestações possibilita a análise da interferência humana, autonomia e grau de previsibilidade do resultado – requisitos para a atribuição de autoria à obra152.

Não há dúvidas que o nível de interferência humana no processo de criação da obra está diretamente relacionado ao nível de autonomia e ao grau de previsibilidade do resultado final. Sendo esse nível de autonomia relevante para entender a quem poderia ser atribuída a tutela de direitos autorais, deve-se analisar os diversos cenários possíveis.

Em primeiro lugar, existe um cenário no qual a interferência humana ocorre apenas no momento da concepção de um determinado sistema. Nessa hipótese, a interferência humana está restrita a estruturação, sem previsão dos resultados153.

Por outro lado, a interferência humana pode se dar na elaboração de um roteiro para determinar o funcionamento das redes neurais. Esse roteiro pode ser algo novo; que ainda não existe; fruto de uma criação humana. Nessa hipótese, as técnicas empregadas pela IA para a persecução de um resultado pode ter maior interferência humana no ensino e pré-determinação de roteiros, mas pode não estar em um grau suficiente para se enquadrar no requisito154. São situações complicadas na medida em que não é tão claro o nível de participação e interferência de um ser humano, e a autonomia de um sistema IA que, certamente, não teria uma solução única155.

Nesse ponto, há a discussão se é possível comparar que a “liberdade criativa” dada ao sistema de IA no processo criativo ao processo de criação inerentemente humano, considerando, inclusive, em alguns casos, uma autonomia extrínseca, uma vez que a sua aplicação não teve um direcionamento tão preciso156.

Outro cenário é a seleção das técnicas de IA para finalidades bastante específicas e a na busca por um resultado que, ainda que não totalmente, é previamente definido. Nesse cenário, seria possível entender que a apropriação do resultado é do humano157.

Luca Schirru também menciona os cenários em que o controle usuário final sobre a ferramenta e o conteúdo gerado é relevante, e que entende-se que não existiria uma situação nova o bastante para acarretar uma alteração no que se refere às regras de apropriação vigentes, conforme assevera Vieira:

A utilização do computador como instrumento ou ferramenta da criação humana não coloca nenhum problema novo ao direito de autor. As obras criadas com o auxílio de um programa de computador são obras protegidas pelo direito de autor debaixo dos mesmos exatos pressupostos de qualquer outra obra [...]158.

Complementado nas palavras de Schirru:

Contudo, no que concerne aos sistemas de IA aplicados em caráter instrumental, a situação ganha contornos mais complexos a partir do momento em que a aplicação desses sistemas pode vir a gerar resultados não totalmente previstos pelo seu usuário, o que passa a, inclusive, integrar o escopo da terceira categoria de aplicação no que concerne ao impacto no conteúdo do produto final: a aplicação de sistemas de IA de caráter ‘determinante’ para o conteúdo de produto159.

A partir dessa análise da existência de múltiplas e complexas combinações entre os diferentes graus de autonomia do sistema e de interferência do ser humano no processo de desenvolvimento de um produto, o preenchimento de lacunas jurídicas acerca da autoria das obras torna-se algo extremamente complexo, na medida em que não é possível criar um ou dois critérios objetivos que positivem como deve ser conduzida a tutela desses direitos. Neste sentido, a previsibilidade do resultado final pode representar fator relevante para a aferição da tutela do direito autoral.

3.2 Formas de titularidade

Analisar essas formas de criação por IA perante a legislação de Direitos Autorais brasileira demanda a análise dos requisitos impostos por esta. Conforme já citado, o Art. 7º da LDA determina que “são obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro (...)”. Nesse sentido, parte da doutrina, como Ascensão160 considera indiscutível o critério da previsibilidade/determinação do resultado para fins de aferição da titularidade, e até mesmo da tutela pelo direito autoral, sobre uma determinada criação. Ou seja, consideram necessário compreender a previsibilidade atrelada à intenção, o que não seria possível verificar nos sistemas de IA, uma vez que não são dotados de vontades, consciência ou personalidade161.

Por outro lado, os trabalhos de cunho intelectual produzidos por IA’s poderiam merecer tutela jurisdicional enquanto obra, bem como as invenções feitas por um autor humano com auxílio de um software enquanto ferramenta, tendo em vista que são cumprem o requisito de serem expressas em algum meio tangível, não sendo meramente alguma ideia ou conceito.

Assim, quando um trabalho produzido por uma IA possui um caráter inteiramente original, os requisitos que se discute acerca do mérito da guarida da proteção intelectual são: se essas obras criadas por IA são produtos de uma expressão de algum espírito de criação e se estão criando, de fato, algo inteiramente novo, tendo em vista que o mecanismo de criação depende de dados preexistentes e o que ela faz é simplesmente rearranjar os dados e elementos de trabalhos antecedentes que estão em seu banco de dados.

Dessa forma, uma das dificuldades basilares dos mais diversos ordenamentos jurídicos é estabelecer sobre qual figura terá o controle acerca da exploração econômica dessas obras, uma vez que, ainda que os direitos patrimoniais não necessariamente se vinculam a figura do autor, os direitos morais se ligam de essencialmente a figura humana. Esse cenário demanda a análise das diversas perspectivas de concessão desses direitos supracitados consequentes dos trabalhos produzidos por IA’s162.

Ainda que haja opiniões acerca da impossibilidade de classificar uma obra gerada por uma inteligência artificial como uma obra protegida sob a ciência jus autoral atualmente concebida, é necessária a discussão de cada possível alocação levantada ao redor do mundo. Assim, é essencial frisar que as hipóteses se relacionam com inteligências artificiais com graus elevados de autonomia, onde a máquina atua de forma bastante superior ao conceito de mero instrumento.

Ao analisar esse cenário, torna-se evidente que quanto menos interferência humana houver no processo de geração da obra, maior a chance de a obra ser considerada genuinamente original e que quanto menos intervenção humana ocorre no processo de treinamento e geração da obra, menos influência de preconceitos e escolhas pessoais terá sobre o resultado. Isso aumenta a probabilidade de que a obra seja verdadeiramente original, na medida em que é gerada de forma imparcial e autônoma pela IA.

A intervenção humana, seja ajustando algoritmos, selecionando parâmetros ou direcionando o resultado final pode dificultar a aplicação dos direitos autorais e a atribuição de titularidade. Por isso, é razoável estabelecer um enquadramento legal que reflita a natureza das obras geradas por IA e assegure a proteção adequada de seus criadores, sejam eles humanos, entidades corporativas ou instituições de pesquisa, estabelecendo, também, um marco jurídico claro, garantindo a proteção dessas criações e determinando a titularidade dos direitos autorais de forma equitativa, proporcionando segurança jurídica e incentivando a inovação contínua no campo da inteligência artificial.

3.2.1 Equiparado às obras geradas por programas de computador

A primeira hipótese a ser considerada é o tratamento equiparável às obras geradas por programas de computador. A legislação britânica (Copyright, Designs and Patents Act do Reino Unido e Digital Economy Act) considera que nos casos de obras criadas sem interferência humana, a autoria deve ser dada à pessoa que instituiu os arranjos de programação necessários para tal criação163. Ou seja, nesse caso, entende-se que o desenvolvedor de um sistema de IA é o criador pois é capaz de promover a geração da obra através do programa de computador. Esse sistema possui fragilidades na medida em que, cada vez mais, existem níveis de interferência humana na manipulação de sistemas de IA para fins de desenvolvimento de determinados produtos e os diferentes papéis de agentes envolvidos com tal sistema164.

Isabela de Sena Passau Alves165 menciona que:

O que nos leva a ponderar que observar o desempenho autônomo de uma inteligência artificial não é criar. Sob esta hipótese, a necessidade de atribuição de direitos acaba por deslocar a investigação pela originalidade do ato criativo para um momento anterior à realização do trabalho, ou seja, no momento da programação da máquina atribuída à inteligência artificial.

Por outro lado, Alves menciona que há quem defenda a atribuição do direito de autor ao programador:

Pautada na ideia de esforço prévio do programador, no sentido de se tratar de um trabalho de consequência e gênio atribuíveis ao intelecto do programador, que seria, portanto, o legítimo proprietário dos direitos autorais sobre o trabalho166.

Assim, a proteção seria concedida ao autor da base de dados, que seleciona e organizada para constituir uma criação intelectual, sem prejuízo da necessária observância de eventuais direitos que incidam sobre os materiais que compõem a base de dados em referência. Entende-se que o criador de um programa de computador, independentemente do nível em que atue, a menos que seja contratado especificamente para fazê-lo, é o responsável por conceber todas as funcionalidades que o software virá a ter. Ao conceber e implementar essas funcionalidades através do código de programação e comandos, ele mantém total autoria sobre o que poderíamos chamar de “frutos regulares” desse processo de programação, uma vez que planejou e trabalhou para alcançar esses resultados. A previsibilidade do que ocorrerá, dá ao programador toda a matriz de autoria que não se modifica ou afeta pelo simples fato de um programa de computador gerar produtos os quais esse foi anteriormente programado para fazer. Assim, anterior a qualquer sentido técnico-informático, programar significa planejar; fazer planos; no sentido de prever uma ocasião167.

Porém, nem sempre esses “frutos regulares” serão tão objetivos. Nas palavras de Luca Schirru168:

Seria impreciso estabelecer uma relação necessária entre a autoria de uma base de dados dotada de originalidade e a autoria do produto resultado do emprego de um sistema de IA, uma vez que os diferentes graus de autonomia do sistema, interferência humana e o consequente grau de imprevisibilidade do resultado poderiam representar importantes obstáculos a tal relação.

Nesse caso, tende-se a atribuir ao programador a titularidade pelo fato de ter investido tempo e esforço na criação da IA que gerou a obra final, afinal, trata-se da pessoa humana que compreende o algoritmo e que teve algum esforço criativo no processo de funcionamento do mecanismo da máquina. Mas, por outro lado, por exemplo, um programa de computador é capaz de gerar tabelas diferentes a cada novo acionamento e, nesses casos, os diferentes resultados finais não seriam produtos que poderiam ser atribuídos ao comando do utilizador, senão puramente ao próprio programa. Ou seja, mesmo que um desenvolvedor tenha a capacidade de prever algumas das habilidades da IA que criou, ele não poderá prever com precisão todas as ações ou comportamentos que um sistema autônomo pode realizar169.

Trata-se de um modelo antropocêntrico pois a titularidade é direcionada ao criador; o mesmo tratamento concedido aos “computers generated works”. A primeira questão a ser discutida é o fato de que uma atribuição exclusiva da autoria a um ser humano em um ambiente tecnologicamente avançado e que conta com algoritmos complexos, pode ser extremamente problemática na medida em que muitos já contribuíram para o desenvolvimento do software e do algoritmo subjacente. Por outro lado, voltamos à perspectiva de que qualquer criação advinda do intelecto humano é fruto de toda vivência e experiência que alimentam o nosso processo criativo170.

A questão que, novamente, se impõe é: o resultado final da obra seria fruto da seleção e processamento dos diversas outras já existentes? Devemos nos atentar ao grau de imprevisibilidade no que concerne a certos elementos do produto final. Faltaria intenção em criar aquele resultado, decorrente da ausência de previsibilidade sobre um sistema autônomo.

Ademais, essa abordagem deve-se atentar à natureza colaborativa de muitas empresas que investem nesse setor e observar que essa solução pode não ter espaço na LDA devido aos requisitos tradicionais de autoria e originalidade.

Em resumo, a equiparação das obras geradas por IA às obras de programas de computador deve levar em consideração a colaboração e o contexto em que essas obras são produzidas, mas a sua aplicação na legislação brasileira pode ser desafiadora e deve ser criteriosamente avaliada, especialmente quando a IA opera de forma mais autônoma.

3.2.2 Equiparado a obras derivadas

Há também a possibilidade de atribuir um tratamento equiparável às obras derivadas, tendo em vista que seriam originadas a partir do funcionamento de uma obra pré-existente. Nesse ponto, vale ressaltar que a LDA, na alínea g) do inciso VIII de seu Art. 5º prevê que a obra derivada seria aquela que “constituindo criação intelectual nova, resulta da transformação de obra originária”. Porém, sob o atual estágio de desenvolvimento tecnológico e, considerando o disposto na legislação vigente, parece ser impreciso afirmar que os produtos da IA seriam sempre considerados obras derivadas171.

Samuelson172 menciona que:

Em uma primeira impressão, pode parecer que se o produto fosse uma obra derivada, a questão da alocação da propriedade seria simples: a produção, como um derivado, seria ‘propriedade’ do programador ou do proprietário do banco de dados.

A questão, entretanto, não é tão simples. A propriedade de um direito autoral sobre o programa gerador claramente dá ao programador o direito de controlar a criação de obras derivadas. Um trabalho derivado não autorizado infringiria os direitos autorais. Essa infração forneceria ao programador uma base para bloquear uma reivindicação de direitos no trabalho derivado pelo infrator. (...) Se a saída do computador fosse automaticamente considerada uma obra derivada, então a produção poderia ser sempre e automaticamente controlada pelo programador173.

O autor explica, em sua obra, que a determinação de se uma obra gerada por computador é considerada uma “obra derivada” no contexto das leis de direitos autorais pode ser complexa e depende da presença de elementos reconhecíveis do programa subjacente. Embora, à primeira vista, pareça que as obras geradas por computador são derivadas do programa gerador, é importante observar que, em geral, essas obras não incorporam blocos de expressão reconhecíveis desse programa174.

Assim, para que uma obra gerada por computador seja considerada uma “obra derivada” e, portanto, potencialmente sujeita a direitos autorais, é necessário que ela incorpore elementos reconhecíveis do programa subjacente de uma maneira que não possa ser considerada um “uso justo” desse programa. Além disso, o tipo de obra resultante também desempenha um papel crucial na determinação da proteção de direitos autorais. Se a obra gerada por computador for um “artigo útil” ou outro tipo de obra não protegida por direitos autorais, mesmo que incorpore elementos reconhecíveis do programa subjacente, ela não pode ser considerada uma obra derivada sob as leis de direitos autorais175.

Portanto, ressalta que a simples geração de uma obra por meio de um programa de computador não a torna automaticamente uma obra derivada sujeita a direitos autorais, especialmente se a obra resultante for de um tipo não protegido por direitos autorais. Portanto, a determinação de violação de direitos autorais depende de uma avaliação detalhada das circunstâncias individuais de cada caso.

Ademais, essa abordagem não soluciona o óbice legal que reside no fato de que a LDA é baseada na premissa de que os direitos autorais são concedidos a criadores humanos, e a lei estabelece que apenas obras criadas por pessoas físicas podem receber proteção autoral.

3.2.3 Equiparado a obras feitas sob encomenda

Os modelos citados acima representam um afastamento do antropocentrismo inerente ao direito autoral na legislação brasileira. Nesse sentido, também existe o tratamento equiparável às obras feitas sob encomenda (works made for hire), desenvolvidas no escopo das atividades laborais. Nesses casos, parece ser cabível conceder os direitos autorais de um trabalho preparado por um funcionário dentro do escopo de seu emprego e, em casos enumerados, de trabalhos encomendados, ao empregador/parte contratante176. Nas palavras de Bikbaeva;

A doutrina é uma ficção jurídica que, para fins de praticabilidade econômica, contorna a regra padrão de que os direitos autorais pertencem inicialmente ao autor factual imediato. Apesar de seu amplo alcance sob a doutrina WMFH, o empregador não pode, no entanto, exercer os direitos “morais” já limitados pela lei para proteger as obras contra distorção, destruição ou atribuição indevida. (tradução nossa).

No Brasil, a adoção da doutrina dos “works made for hire” encontraria obstáculos para sua implementação, tendo em vista que a LDA não mais dispõe sobre obras por encomenda e/ou obras desenvolvidas sob contrato de trabalho. Além disso, considerando o requisito de criação de espírito da legislação, não seria possível atribuir a condição de autor a obras criadas por IA, restando apenas a viabilidade da transferência de titularidade dos direitos patrimoniais. Vale ressaltar que, mesmo a transferência dos direitos, seria inviável juridicamente se a obra decorrer especificamente de IA, uma vez que a legislação atual não contempla essa possibilidade. Esses pontos demonstram que, sob a legislação atual, as obras de IA não se encaixam nas preposições de criação e titularidade de direitos autorais estabelecidas pela LDA.

Neste caso não há um direito do operado sobre o resultado produzido. Esta hipótese abarca uma abordagem mais pragmática, tendo em vista que se norteia na ideia de que é esse proprietário quem toma as decisões, em primeiro lugar, de a máquina poder operar. Nesse contexto, a visão de José Oliveira Ascensão é que:

A criação intelectual é a criação individualizada; é a expressão de uma ideia, que tem necessariamente de se antever com um conteúdo específico. Não é equivalente ao ato de pôr em funcionamento uma máquina que derivam produtos indiscriminados. Portanto, justamente pelo afastamento da figura do autor, não se pode falar em pedidos de autorização para a utilização do material, já que ela é realizada por dispositivos eletrônicos de captação automática de imagens; não havendo operabilidade humana dos equipamentos, não há Direitos Autorais177.

A uma solução viável pode ser encontrada na doutrina “made for hire” da Lei de Direitos Autorais dos EUA que:

(Se) uma obra for feita por encomenda, o empregador é considerado o autor, mesmo que um funcionário tenha de fato criado o trabalho. O empregador pode ser uma empresa, uma organização ou um indivíduo”178. (tradução nossa).

No entanto, essa relação empregado-empregador parece não resolver o problema, na medida em que o requisito da pessoa física não é respeitado179.

Nesse caso, a atribuição de direitos não é direcionada ao seu real criador, mas sim àquele que promoveu os investimentos vinculados à produção daquela obra.

Ademais, deve ser objeto de análise a perspectiva defendida por parte da doutrina, como Samuelson180, que defende haver uma recompensa excessiva aos desenvolvedores de software:

Conceder todos os direitos ao programador significaria que ele programador seria automaticamente proprietário de tudo o que o programa fosse capaz de gerar. Essa solução recompensa excessivamente o programador, particularmente à luz do fato de que o programador não é mais capaz de antecipar o resultado do que qualquer outra pessoa. Além disso, a alocação dos direitos de propriedade exclusivamente para o programador causaria alguns problemas sérios de aplicabilidade. Primeiro, o resultado estará nas mãos ou sob o controle do usuário e este teria um grande interesse em não informar ao programador que foi criada uma nova propriedade sobre a qual o programador tem direitos. Segundo, muitas vezes será difícil, se não impossível discernir se um determinado trabalho foi gerado por um programa. (tradução nossa).

Samuelson181 entende que o programador cria a potencialidade para a criação do resultado, mas não sua realidade e que, além disso, a designação do programador como autor de todos os resultados de seu programa está ligado ao problema da imprevisibilidade do resultado.

Ademais, Denicola182, destaca que não seria possível equiparar o sistema de IA a um empregado. Afirma o autor:

No que diz respeito a obras de autoria Al, tratar o programador como um empregador - como o autor de uma obra feita por outro - evitaria o problema de conferir direitos a uma máquina e atribuir a uma máquina a capacidade de responder aos incentivos dos direitos de autor. No entanto, se os computadores carecem de ‘personalidade’ para efeitos de propriedade dos direitos de autor, parece errado caracterizá-los como ‘empregados’ para efeitos da doutrina do trabalho feito por encomenda. Há também razões práticas para resistir à solução do programador como autor e proprietário dos direitos de autor. Localizar a propriedade no programador não se alinha muito bem com a lógica de incentivo dos direitos de autor. O mercado já incentiva os programadores a criarem software sob a forma de potenciais receitas de vendas ou royalties de licenças de potenciais utilizadores. A propriedade do programador também não incentiva os utilizadores a utilizarem efetivamente o programa para criar novas obras para o público. Se a propriedade dos direitos de autor das obras produzidas pelo software for importante para o programador, este pode, evidentemente, manter o controlo sobre o programa e reclamar a propriedade dessas obras como utilizador do software. Em alternativa, pode negociar com os compradores ou licenciados do software uma parte da propriedade ou royalties atribuíveis às obras geradas pelo software.

Ainda, essa concessão de direitos a esses tipos de empresas pode ser defendida pelo fato de que poderia compensar os custos iniciais envolvidos no desenvolvimento de talento artístico e na produção trabalhosa de uma obra.

Por outro lado, ainda estamos tratando de um cenário em que ocorre apenas a concessão da titularidade dos direitos patrimoniais referentes à obra, e não a condição de autor, uma vez que este tem pouco controle e contribuição prática no produto final, além de que será sempre o ser humano a quem se deve aquela determinada criação do espírito.

Logo, o direito concedido a essas empresas seria relacionados aos direitos autorais, mas que não são diretamente relacionados ao autor da obra criativa em si, como, por exemplo, a empresa, ou o indivíduo, responsável pelo desenvolvimento de um sistema de IA ou aquele que possui interesse na sua apropriação e distribuição do produto. Essa definição descreve os direitos conexos, que são aplicáveis a outras partes envolvidas na disseminação, interpretação e execução de obras protegidas por direitos autorais.

Em outras palavras, estaríamos tratando das hipóteses de conferir a proteção sob os direitos conexos das obras criadas por IA, pois essa solução dispensa o elemento criatividade de forma mediata por parte dos titulares dos direitos, como na mencionada Lei de Softwares183, que em seu Art. 4º184, atribui ao empregador o direito de exploração dos softwares elaborados pelos seus desenvolvedores, ainda que o proprietário não tenha exercido nenhuma atividade criativa.

No entanto, como já adiantado, além dos obstáculos legais de aplicabilidade da equiparação das obras às feitas sob encomenda, os direitos conexos não abrangeriam o direito moral de autor, tendo em vista a ausência da manifestação da personalidade do autor e a presença do investimento no valor socioeconômico da proteção legal.

3.2.4 Equiparado a obras coletivas

Há também possibilidade de atribuir um tratamento equiparável às obras coletivas, que possui relação com a junção de todas as partes responsáveis pelo processo de desenvolvimento de um produto da IA, como os programadores, artistas, profissionais responsáveis pela seleção das bases de dados, investidores, coordenadores de projeto, dentre outros. A LDA determina que a obra coletiva é aquela:

Criada por iniciativa, organização e responsabilidade de uma pessoa física ou jurídica, que a publica sob seu nome ou marca e que é constituída pela participação de diferentes autores, cujas contribuições se fundem numa criação autônoma185.

Uma consequência desse sistema, é que um autor de uma obra coletiva é, ao mesmo tempo, coautor de direitos jusautorais do todo, o que inclui aquelas partes do trabalho em que esse não contribuiu efetivamente para o processo criativo. Nesse caso, haveria uma divisão equitativa dos direitos patrimoniais da obra entre todos esses atores que contribuíram para o resultado final. Esse ponto seria compatível com o ordenamento jurídico brasileiro. Por outro lado, abre margem para uma significativa insegurança jurídica, como iremos expor em breve.

Ademais, a LDA define os participantes que contribuíram para aquela obra coletiva como “autores”, o que é reiterado no texto do Art. 17 § 1º do mesmo diploma legal ao estabelecer que “qualquer dos participantes, no exercício de seus direitos morais, poderá proibir que se indique ou anuncie seu nome na obra coletiva, sem prejuízo do direito de haver a remuneração contratada”. Isso se torna uma questão a ser enfrentada na medida em que inexistem direitos morais sobre alguns participantes, que participaram no processo de criação e que sequer conseguem identificar a sua contribuição no produto final.

Nesse sentido, Luca Schirru dispõe:

O próprio produto da IA não poderia ser considerado como obra intelectual protegida nos modelos do art. 7º da LDA por não representar uma criação do espírito, por não ser dotado de originalidade subjetiva. Portanto, e conforme se tem observado nos casos aqui sob análise, ainda que a existência daquele produto da IA se deva à atuação de diversos agentes exercendo papéis distintos e complementares, o produto da IA em si ainda é o resultado direto do processamento lógico e da solução de operações matemáticas de uma máquina impedindo que uma obra criada por IA se enquadre como tal, inclusive por não estar dentro dos requisitos de obra intelectual do art. 7º da LDA por não representar uma criação do espírito e não ser dotado de originalidade subjetiva186.

3.2.5 Co-autoria entre o programador e o usuário da IA

Também discute-se a possibilidade de reconhecimento de co-autoria entre o programador e o usuário da IA.

A LDA define a obra em co-autoria em seu Art. 5º como uma obra criada em comum, por dois ou mais autores. A obra será divisível se for composta de partes que podem ser utilizadas separadamente pelos seus autores, de modo que cada uma dessas partes será protegida como se obra individual fosse (Art. 15, § 2º, da LDA), e será indivisível quando as partes não puderem ser utilizadas separadamente187.

Nessa hipótese, podemos considerar uma IA cedida ou licenciada a terceiros, no cenário em que o novo proprietário ou licenciado desenvolve sem apoio de outrem um resultado. Assim, a autoria recairia sobre ele próprio e a pessoa física do programador que desenvolveu em primeiro lugar na cadeia, com a devida indicação de origem da autoria do programador. Nesta proposta, o objetivo é preservar a identidade da autoria em obras humanas, com reconhecimento na participação, mesmo quando não seja facilmente identificável na paternidade da obra.

Porém, insta ressaltar que a lei determina que o mero auxílio ao autor na produção da obra, revendo-a, atualizando-a ou fiscalizando sua edição ou apresentação não é considerado coautor (Art. 15, § 1º, da LDA), o que indica que, para ser considerado coautor, é necessário que o indivíduo tenha ativamente participado da atividade criativa da obra.

Novamente, voltamos a outro ponto balizados da legislação brasileira: Finalmente, a autoria conjunta, seja em jurisdições de common law ou de civil law, geralmente requer que as contribuições dos autores sejam discerníveis, o que, nos casos de técnicas computacionais complexas, tornaria essa distinção quase impossível. A impossibilidade de identificar a contribuição individual no resultado final, torna essa hipótese inviável.

Ademais, essa solução não responde à questão de que a máquina tenha ou não agido como criadores intelectuais da obra, previsto no Art. 11 da LDA, inclusive porque os entraves relativos a intencionalidade e relevância para o resultado final permanecem. Logo, não necessariamente ambos agiram como autores.

3.2.6 Usuário do programa

A possibilidade de reconhecimento do usuário do programa como autor da obra também é discutida. A Comissão sobre Novos Usos Tecnológicos de Obras Protegidas por Direitos Autorais (Commission on New Technological Uses of Copyrighted Works – CONTU) dos Estados Unidos, em um relatório publicado em 1978 propôs tal solução para os programas de computador que precisavam da contribuição do usuário para gerar a obra e que, essa contribuição seria determinante para o resultado.

Em verdade, tal solução parece utópica, na medida em que o usuário também não preenche os requisitos impostos pela LDA. Na verdade, essa perspectiva reforça o papel da IA na compilação de diversas obras pré-existentes para gerar o conteúdo demandado pelo usuário que a contrata. Nas palavras de Pedro Paranaguá e Sérgio Branco: “O ser humano cria a partir de obras alheias, de histórias conhecidas, de imagens recorrentes. Sempre foi assim e sempre será. [...]”188.

Por um lado, a expressão da criação é intrinsecamente moldada pelas nossas vivências e experiências acumuladas do lado da vida. Na expressão da criação, usamos essas peças acumuladas para compor algo novo e único. Um artista pinta um quadro com base em todo acervo de pinturas que possui em sua memória. Inconscientemente, o cérebro compila as imagens e conteúdos já experienciados de forma a criar algo novo e original. Essa perspectiva provoca ainda mais dúvidas. Inclusive porque, quando entendemos que a máquina está sendo “contratada” por alguém para executar suas funções, de modo que “estaríamos diante do problema de oferecer direitos contratuais a uma máquina189.

De outro lado, Andres Guadamuz, entende que é necessário identificar a pessoa que originou a produção de uma nova obra de arte:

Se o agente artificial for iniciado diretamente pelo programador e criar uma obra de arte, então o programador é claramente o autor, de acordo com o art. 9 (3) da CDPA. No entanto, se um usuário adquire um programa capaz de produzir obras geradas por computador e o utiliza para gerar uma nova obra, então a propriedade seria do usuário. (tradução nossa)190.

Entende, portanto, que a pessoa que utiliza o processo gerador que passa a ter direito à autoria, independentemente de qualquer outra consideração criativa. Nesse sentido, a instanciação de uma obra de arte é uma condição suficiente para a atribuição de autoria.

Pamela Samuelson também segue essa linha:

Há várias razões pelas quais faria sentido designar o usuário de um programa gerador como o 'autor' de sua produção, mesmo quando a contribuição do usuário é mínima. Por um lado, o usuário geralmente já pagou o dízimo ao proprietário do programa pelos direitos de uso, seja por compra, aluguel ou licença. Isso proporciona ao programador alguma recompensa pelo valor do que ele criou (ou seja, o programa). Não é injusto, nessas circunstâncias, conceder alguns direitos a uma pessoa que usa a obra para o propósito pretendido de criar obras adicionais191. (tradução nossa).

Porém, como indagam Jean-Marc Deltorn e Franck Macrez acerca dessa visão, será que o argumento da justiça relativa (para o programador, por meio de acordo contratual, ou para o usuário como o criador da obra) é motivo suficiente para alocar a autoria na produção de novas obras de arte, mesmo quando a única contribuição consiste em “apertar um botão”? Esse modelo parece se encaixar no modelo britânico, porém não cumpre o requisito da originalidade estabelecido na Diretiva da UE e na jurisprudência dos EUA.

De fato, poderíamos considerar que essa abordagem recompensaria os utilizadores, programadores e empresas de IA e, assim, incentivá-los-ia a revelar qualquer contribuição da inteligência artificial no processo criativo. No entanto, há de se questionar acerca de uma recompensa excessiva e se isso não iria de forma oposta ao objetivo da LDA, que é recompensar as concepções intelectuais, criativas e originais do autor. Nesse sentido, Victor M. Palace em “What if Artificial Intelligence Wrote This? Artificial Intelligence and Copyright Law”192 compara a contribuição do utilizador, do programador e da empresa no processo criativo das obras, com a contribuição dos pais: “ajudam na conceção da entidade que cria a obra, em vez de criarem eles próprios a obra”. Assim, seriam recompensados apesar de não contribuírem para a concepção intelectual da obra, contrariando o objetivo da lei dos direitos de autor. Além disso, poderiam:

‘Possuir tudo o que o programa era capaz de gerar’ ao simplesmente permitir que o computador funcionasse indefinidamente. Assim, seriam excessivamente recompensados com um número ilimitado de obras produzidas a um ritmo sem precedentes. Finalmente, seriam totalmente recompensados mesmo que não lhes fosse concedido um direito de autor: o utilizador poderia livremente utilizar ou desenvolver a obra criada pela inteligência artificial autónoma; o programador melhoraria a sua reputação e profissional; e a empresa de inteligência artificial se beneficiaria das receitas de vendas, licenças e publicidade. (...). Por conseguinte, seduzido pela oportunidade altamente lucrativa de obter direitos de autor a um ritmo sem precedentes, as empresas de inteligência artificial podem decidir acumular o acesso à inteligência artificial autónoma, de modo a permanecerem sempre os “empregadores” e, portanto, os proprietários dos direitos de autor. Isto significaria que apenas um punhado de gigantes do software, num pequeno número de países, teriam acesso a esta tecnologia. Os comentadores alertam fortemente para este tipo de desigualdade de acesso. (...) Em suma, esta abordagem recompensaria excessivamente os utilizadores, os programadores e as programadores e empresas, e poderia levar a um acesso desigual à inteligência artificial193.

O autor Kalin Hristov no livro Artificial Intelligence and the Copyright Dilemma194, por outro lado, enfatiza a perspectiva de que, na verdade, atribuir a autoria aos usuários finais, em vez de desenvolvedores de IA, pode ser prejudicial para o crescimento do setor de IA. Ao perder as reivindicações de direitos autorais para os usuários finais, os proprietários e programadores podem restringir o uso da IA por terceiros. Essas medidas de proteção permitiriam que os desenvolvedores mantenham os direitos autorais sobre os trabalhos gerados pela IA, mas também limitariam as aplicações da IA e as inúmeras possibilidades de uso.

3.2.7 Sistema de IA como “autor”

Já nos modelos tecnocêntricos, o primeiro cenário seria considerar um sistema de IA como “autor”, caracterizando-a como criadora de um produto “original” que se equipara a criações humanas. Na legislação brasileira, isso seria um enorme desafio na medida em que é clara a relação necessária entre a figura do autor e um ser humano. Logo, esse cenário demandaria uma alteração não apenas na legislação interna, mas também no texto da Convenção de Berna, por exemplo.

Ademais, a adoção de um sistema de IA como titular dependeria também do estabelecimento de parâmetros centrais para a verificação do nível de sofisticação tecnológica do robô e, consequentemente, seu grau de autonomia e sua capacidade de aprendizado e de sua interação com o meio195.

Um sistema dotado de maior autonomia e capacidade de gerar produtos de natureza artística com pouca intervenção humana poderia requerer, inclusive, uma personalidade jurídica; uma personalidade eletrônica. Em outras palavras, essa hipótese de autoria geraria direitos de propriedade, que são geralmente executados a critério exclusivo de seu portador. Portanto, a máquina precisa ser capaz de decidir de forma autônoma quando e como exercer seus direitos para que isso seja aplicável. “Traduzido em termos legais, um algoritmo precisa de personalidade aos olhos da lei para ser legalmente considerado ‘autor’”196.

Nesse contexto, haveria também a possibilidade da proposta de um registro de robôs e sistemas de IA, e até mesmo viabilizar a celebração de licenças de uso do conteúdo produzido pela IA através do mapeamento dos sistemas existentes197.

Ademais, não se deve esquecer que os sistemas da IA ainda dependem de uma série de decisões humanas, desde a escolha do conjunto de treinamento até o protocolo de treinamento, desde a arquitetura interna na qual o modelo de inferência é expresso até a função objetiva que decidirá seu destino. A suposta “autonomia” e “criatividade” devem, pelo menos com base nisso, ser colocadas em perspectiva. Outro ponto a ser considerado é que as máquinas de IA, ao contrário dos desenvolvedores humanos, não precisam de incentivos financeiros. O autor Kalin Hristov ressalta em sua obra Artificial Intelligence and the Copyright Dilemma como seu desempenho não depende de recompensas tangíveis, mas sim do investimento de tempo e habilidades dos programadores de IA e do apoio financeiro das empresas para as quais eles trabalham.

Por outro lado, nos termos do U.S. Copyright Act dos EUA, as obras de arte geradas por programas algorítmicos, entretanto, não são passíveis de direitos autorais se não forem diretamente influenciadas por autores humanos. Um exemplo dado pelo autor Kalin Hristov no livro Artificial Intelligence and the Copyright Dilemma198 é a ilustração da autoria pelo U.S. Copyright como um:

Processo de tecelagem que produz aleatoriamente formas irregulares no tecido sem qualquer padrão discernível (...) Como o acaso, e não o programador dessa ‘máquina de tecelagem’, é diretamente responsável por seu trabalho, os padrões resultantes não seriam protegidos por direitos autorais nos EUA. A aleatoriedade, assim como comportamento aprendido de forma autônoma, é algo que não pode ser não pode ser atribuída ao programador humano de uma máquina de IA. Dessa forma, os trabalhos autônomos resultantes não se qualificam para proteção de direitos autorais e caem diretamente no domínio público. (tradução nossa)199.

Trazendo essa análise ao contexto brasileiro, Ramos explica brilhantemente a inviabilidade de conferir a titularidade dos direitos autorais à própria IA:

A questão aqui, entretanto - e esse é o requisito para aquisição de proteção por direito de autor - é que, seja uma pessoa jurídica chamada de ‘autora’ ou ‘titular originária’, somente pode criar uma obra, somente pode ser o criador intelectual de uma obra, uma pessoa humana. Até mesmo se a titularidade originária ou autoria de uma obra for conferida a uma pessoa jurídica, ainda assim, os criadores intelectuais serão sempre pessoas humanas que agiram como longa manu dessa pessoa jurídica. O criador intelectual não poderá ser nunca um animal ou uma máquina com ou sem inteligência artificial200.

Ascensão, nesse sentido, destaca que:

Um processo não é uma obra, e as obras não são uma categoria de gênero. Neste caso, é de sustentar que sobre as obras assim produzidas não recai direito de autor. Este pressupõe necessariamente a criação humana, e por isso se prolonga através de um direito moral ou pessoal de autor201.

Ramos acrescenta ainda que:

(...) para receber o direito de exclusividade sobre o uso da criaçãoe para que, ao mesmo tempo, seja justificado o óbice da sociedade ao acesso e uso livre da obra durante o período de vigência da proteção, necessária a presença desse ‘algo a mais’, isto é, do contributo mínimo. (...) o direito de autor não nasceu para proteger o fruto do trabalho, mas sim para fomentar a cultura. Inclusive, sob a perspectiva da análise econômica, o direito de autor possui essa função: o direito de exclusivo concedido ao autor e a consequente limitação do acesso da sociedade à obra justifica-se pelo incentivo à criação de novas obras; de modo que atingir o balanceamento entre o acesso e o incentivo é uma questão central do direito de autor. E o contributo mínimo está no cerne deste balanceamento juntamente com o tempo de proteção e as ditas limitações202.

Essa hipótese, portanto, também contraria um dos propósitos gerais da Propriedade Intelectual, que é fornecer incentivos para que os autores continuem criando e alimentando o arcabouço artístico, científico e tecnológico do Brasil. Máquinas, por outro lado, não precisam de incentivos para criar.

Ademais, se considerarmos que sempre haveria um “representante legal” humano por trás do robô, como o programador, por exemplo, a questão, permaneceria no mesmo ponto inicial de incerteza. Isso porque entraríamos novamente no ciclo de debate sobre se o programador ou o usuário deveriam ser considerados autores ou merecedores de qualquer benefício obtido com base na exploração de uma obra.

3.3.1 Domínio público

Conforme prevê o Art. 14 da LDA203, uma obra em domínio público faz com que não recaiam mais sobre esta os direitos patrimoniais e, portanto, o titular fica impedido de se opor a eventuais mudanças e cópias. Sérgio Branco204 descreve que:

Uma vez expirados os direitos autorais patrimoniais objetos da exclusividade, pode qualquer pessoa se aproveitar da obra economicamente. Imaginemos, por exemplo, uma fotografia divulgada em 1930. Atualmente, ela se encontra em domínio público. Pode ser usada em livros ou outras obras artísticas (vídeos, encarte de CD), pode ser editada, pode ser inclusive vendida individualmente ou em conjunto com outras obras fotográficas. E tudo isso sem necessidade de se pedir autorização.

A posição atual do U.S. Copyright Office dos EUA mencionada, embora aberta para a interpretação dentro da lei de direitos autorais dos EUA, demonstra uma tendência à defesa de que as obras geradas por IA não seriam passíveis de direitos autorais e cairiam no domínio público após sua criação. Entende-se que, na medida que os programas de IA se tornam mais sofisticados, menos intervenção humana será necessária, resultando em um processo criativo cada vez mais processo criativo cada vez mais autônomo e um número crescente de obras sem qualquer forma de proteção de direitos autorais205.

O Art. 45 da LDA, prevê que há três requisitos distintos e não cumulativos para uma obra ingressar em domínio público: (i) o decurso de tempo; (ii) o falecimento de autor sem deixar herdeiros e (iii) ser a obra de autoria desconhecida. Quanto ao decurso de tempo, o prazo-padrão da lei é de 70 (setenta) anos contados de primeiro de janeiro do ano subsequente ao da morte do autor (LDA, Art. 41)206.

Nessa hipótese, um produto criado pela IA não faria jus à proteção autoral e estaria em domínio público não porque “para que qualquer criador possa ser qualificado como autor para fins de obtenção de direito de autor, ele deve preencher todos os requisitos (...) essenciais à aquisição de direitos”207.

Portanto, a LDA prevê que:

Uma das principais consequências de uma obra ingressar em domínio público é a sua livre manipulação por parte da sociedade, independentemente de qualquer autorização. Por isso, podem as obras em domínio público ser modificadas. Não podem os sucessores se opor a modificações em obras que já estejam em domínio público208.

Um ponto relevante nesse sentido é que a atribuição dessas obras criadas por IA ao regime de domínio público tem impacto no incentivo ao ambiente produtivo e contínua inovação, que também deve ser discutido.

Afinal, a ausência de um período estabelecido de proteção gera também a ausência de incentivo tangível para que os desenvolvedores de máquinas de IA continuem criando, usando e aprimorando seus recursos.

Ou seja, os programadores e as empresas para as quais trabalham não possuem qualquer justificativa para continuar investindo tempo e dinheiro na criação de máquinas de IA, pois não poderiam usufruir da proteção de direitos autorais ou dos benefícios financeiros associados a ela.

Além do declínio da criação da IA, também geraria um declínio da inovação em vários setores relacionados.

Por outro lado, Luca Schirru entende que o domínio público não seria a desproteção de uma obra ou uma representação inversa aos interesses do mercado. Assim, afirma que o domínio público versa sobre uma situação regular das obras, que existe desde antes da criação da proteção aos direitos de autor, e nem por isso, com a instalação do sistema autoral, deixou-se de criar, tampouco foi visto como um desincentivo à arte209.

Nessa perspectiva, entende-se que o domínio público contribui para a cultura de uma sociedade e, consequentemente, para o interesse público, uma vez que privilegia o acesso ao patrimônio cultural, informação e conhecimento210. Isso porque não são fontes esgotáveis e, portanto, a situação de domínio público, incentiva a busca por mais cultura e conhecimento.

No que tange o entendimento de que domínio público vai contra o incentivo ao desenvolvimento tecnológico, essa os apoiadores da hipótese de domínio público entendem que deve ser feita sob ponderação no sentido de que este tem a capacidade de inverter padrões e alterar o patrimônio cultural de uma nação como o conhecemos até hoje, o que poderia causar um prejuízo drasticamente maior do que o não imediato apoio a um novo ramo tecnológico sobre um campo do direito, afeto, por natureza, às artes humanas211.

CONCLUSÃO

A aproximação do sistema de Inteligência Artificial com a criação de obras artísticas, literárias e científicas já é uma realidade há anos no cenário nacional e internacional. Esse avanço tecnológico ocorre simultaneamente às transformações na produção da cultura do entretenimento, seja em livros, filmes, jogos, como também na produção de materiais acadêmicos e científicos, que são disseminados pela sociedade.

Essas mudanças tem sido objeto de crítica de alguns autores, uma vez que, cada vez mais, é encontrada a necessidade de dilatação, ou de uma releitura abrangente do direito do autor atual para abarcar também estas obras feitas por IA’s de maneira total ou parcialmente autônoma, incluindo os casos onde este limite não se faz claro. Neste sentido, o cenário jurídico mundial se deparou com a realidade fática que impõe uma discussão sobre as figuras que seriam os possíveis autores de obras, tendo em vista que a descrição de pessoa física, natural criativa e cuja obra é uma extensão de sua personalidade e espírito, como requisito de titularidade de direitos autorais deixa muitos criadores à deriva.

Logo, essa crescente evolução e atuação dessas tecnologias no cotidiano demanda o preenchimento das diversas lacunas jurídicas existentes no panorama regulatório brasileiro.

No que tange os direitos autorais dessas obras, ficou clara a necessidade de estabelecer a autoria e titularidade das dessas criadas por IA, para que estes possam ser devidamente recompensados pelo seu esforço criativo e contribuição cultural e intelectual para a sociedade. Isso porque estabelecer parâmetros de autoria tornará possível a regulação dos títulos de propriedade previstos como um direito fundamental na Constituição Federal e que, assim, os detentores dos direitos possar auferir lucros com a comercialização de sua criação e, como consequência, possuam o investimento e incentivo para continuar participante do desenvolvimento tecnológico e econômico de um país. Portanto, resta claro o impacto dessa regulamentação na economia brasileira.

Essa evolução do Direito é, claramente, um grande desafio. Isso fica evidente na medida em que tratamos, principalmente, de uma lei de 1988 (“Lei de Direitos Autorais” ou “Lei n. 9.610/98”), criada em período incipiente, no país, ao desenvolvimento de inúmeras tecnologias. Assim, é inegável a necessidade de atualização do normativo brasileiro acerca dos direitos autorais sob a perspectiva das novas tecnologias.

A complexidade do assunto se torna ainda maior na medida em que analisamos a impossibilidade de uma criação regulamentação engessada tendo em vista a existência de diversos sistemas e mecanismos de atuação da IA que foram apresentados e que impactam diretamente no nível de autonomia e grau de previsibilidade do produto final. Da mesma forma, entra o requisito da legislação da atribuição de autoria a pessoas físicas, que deixa explícita a necessidade de debates sobre o assunto e os impactos que eventuais mudanças trarão ao cenário jurídico brasileiro (por exemplo, eventual atribuição de personalidade eletrônica, que traria impactos, inclusive, em outras áreas do direito civil).

Foram explicitadas, portanto, os diversos entendimentos da doutrina, inclusive, a possibilidade de sequer a possibilidade de se atribuir direitos autorais sobre produtos imprevisíveis e resultantes de sistemas de IA, o que, com uma gestão estratégica de direitos exclusivos poderia estar em perfeita consonância com os interesses privados dos titulares de direito, além de trazer diversas vantagens ao interesse público.

Ainda que na legislação brasileira esse assunto ainda não esteja maduro, é válido analisar a regulamentação do cenário internacional para buscar diretrizes como inspiração para uma adequação aos modelos apresentados, como do domínio público, modelos antropocêntricos, modelos centrados no titular ou o modelo tecnocêntrico.

Fato é, que ainda que os sistemas de IA não possuam emoções como os seres humanos, eles podem criar obras originais – se analisadas por um critério objetivo - e criativas. Porém, essa questão de autoria das obras deve ser analisada com muita cautela para enfrentar a complexidade da discussão sem olvidar dos tantos interesses envolvidos.

A conclusão do presente trabalho é que a sofisticação de tais tecnologias e sua crescente “humanização” não é uma tarefa simples, mas é se torna cada vez mais necessária, não apenas na área da propriedade intelectual, conforme abordado aqui.

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