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Uberização e realidade pós-pandemia do covid-19:

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A precarização das condições de trabalho dos serviços sob demanda por meio de plataformas digitais no contexto pandêmico tem sido agravada pela falta de regulamentação e de reconhecimento do vínculo empregatício.

SUMÁRIO: 1 Conceituação do neologismo “uberização”. 2 “Uberização” e precarização do trabalho acentuados pela pandemia do Covid-19. 3 Poder público, proteção social e (pós)pandemia. 3.1 As ações civis públicas do MPT e conquistas dos trabalhadores de plataformas digitais durante a pandemia de Covid-19. 3.2 A necessidade de regulamentação dos serviços prestados por meio de plataformas digitais. Considerações Finais. Referências.

RESUMO: O estudo pretende analisar a questão da precarização provocada pelos novos modelos de trabalho via plataformas digitais, “uberização”, que se intensificou com a pandemia do Covid-19, e indicar possíveis formas de regulamentação. Adota-se como metodologia a pesquisa bibliográfica e documental, com objetivo de caráter exploratório, abordagem qualitativa e de natureza teórica. Conclui-se ser imprescindível a criação de legislação para regulamentar a prestação de serviços por meio de aplicativo, evitando a insegurança jurídica que paira sobre a questão, e assim, fomentar esta prestação de serviços no mercado brasileiro.

PALAVRAS-CHAVE: plataformas digitais; pandemia Covid-19; uberização.


INTRODUÇÃO

O desenvolvimento tecnológico e informacional repercute na realidade social e origina novas formas de exploração do trabalho. O mundo está mudando rápido. Estudiosos têm observado um movimento de aceleração social que ocorre no nível tecnológico, nas mudanças sociais e no ritmo de vida. Consequentemente, o mundo do trabalho também passa por transformações, notadamente por novas formas de exploração do trabalho, tais como a denominada uberização.

A tradicional classificação de trabalhadores e autônomos não engloba toda a classe de prestadores de serviços no país, colocando em risco de vulnerabilidade socioeconômica milhares de pessoas que ficam sem qualquer tipo de segurança jurídica.

Diante do avanço tecnológico, surgiram novas relações de trabalho, como a dos prestadores de serviços por meio das plataformas digitais, que não se enquadram na clássica classificação de empregado proposta pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). As novas modalidades de serviços prestados fora das dependências de uma empresa, pelos meios virtuais, se tornaram comum na atualidade, se intensificando com a crise sanitária e econômica causada pela pandemia do Covid-19.

A crise econômica eliminou a possibilidade de novos empregos assalariados, o que forçou muitas pessoas a buscarem trabalhos informais, como os aplicativos de entrega e outras plataformas digitais que oferecem serviço sob demanda, que acentuam a precarização do trabalho diante da falta de regulamentação legislativa.

A transição tecnológica, bastante acelerada neste momento, elimina as barreiras à prestação de serviço por meio dessas plataformas. Essas tecnologias de telecomunicação aproximam os atores econômicos e colocam pessoas em contato com o mercado de trabalho.

A precarização do trabalho encontra-se nas recentes transformações do capitalismo, embora não possa ser considerada um fenômeno novo. Na verdade, constitui-se como elemento estrutural do modo de produção capitalista, uma vez que coaduna elementos econômicos, sociais, políticos e jurídicos que ratificam a exploração do trabalho e equalizam a questão do desemprego estrutural, muitas vezes mistificando-o.

Nesse contexto, faz-se necessário indagar: em que medida as razões de ser do Direito do Trabalho persistem durante as transformações digitais? Como o direito do trabalho poderia combater a uberização e regulamentar essas novas modalidades de serviço? Essas discussões se acentuam diante do momento de grave crise econômica e social agravado pela pandemia.

O estudo tem como objetivo analisar a questão da precarização provocada pelo advento desse novo modelo de trabalho via plataformas digitais, que vem se intensificando com a pandemia do Covid-19, e indicar possíveis formas de regulamentação.

Adota-se como metodologia a pesquisa bibliográfica e documental, com objetivo de caráter exploratório, abordagem qualitativa e de natureza teórica, por meio de busca de artigos publicados na interface de dados do Portal de Periódicos CAPES e no Google Scholar, no período de 2020 aos dias atuais, sendo a pandemia um marco temporal. As estratégias de busca seguiram-se com a seleção das palavras chaves: uberização, precarização do trabalho e pandemia da Covid-19, interligados pelo operador lógico booleano AND para subsidiar uma pesquisa mais ampla.

1 CONCEITUAÇÃO DO NEOLOGISMO “UBERIZAÇÃO”

O século XXI tem sido definido pela “revolução 4.0”, uma intensa reforma tecnológica, caracterizada pela sua velocidade, amplitude, profundidade e impacto sistêmico. A Quarta Revolução Industrial, como também é conhecida, unirá os mundos físico, biológico e digital, o que deve ocorrer em ritmo exponencial, não linear, uma vez que as novas tecnologias impulsionam ainda mais inovações (SCHWAB, 2016). Aceleração social e tecnologia possuem uma relação intrínseca, sendo possível concluir que as Revoluções Industriais intensificaram de forma relevante o ritmo de vida.

Os avanços tecnológicos e as transformações sociais estão interligados de forma que fica complicado pensar em nova ferramenta que não tenha alterado a forma como alguém realizava uma determinada atividade. O tempo é um dos principais motivos, visto que novas tecnologias asseguram que certas atividades serão feitas de maneira mais rápida (DUTRA; COUTINHO, 2020). Contribuindo, portanto, para a aceleração do ritmo de vida.

É natural que as transformações sociais impactem o trabalho, tendo em vista que ele é aspecto fundamental à vida humana. Essa constatação é até óbvia, já que as inovações tecnológicas servem para atender necessidades das pessoas, diminuindo a energia e o tempo necessários para realização de alguma atividade e, portanto, reduzindo o trabalho empregado.

Avanços tecnológicos são característicos da evolução da sociedade, mas também se apresentam como um risco a algumas profissões. A tecnologia tem capacidade para alterar quase todas as ocupações, de forma que, em breve, bilhões de pessoas podem ser economicamente redundantes, uma vez que suas profissões passariam a ser executadas por robôs (HARARI, 2018).

Numa análise crítica dessa projeção, Antunes (2018a) afirma que as tecnologias tendem a informatizar os processos produtivos, eliminando postos clássicos de trabalho, no entanto, simultaneamente, alimentando uma periferia precária.

Assim como os elementos produtivos básicos à própria indústria 4.0 seriam extraídos da periferia (países do sul) em condições gravosamente precárias, o mesmo processo de informatização das relações estaria propiciando o surgimento de postos de trabalho em um setor de serviços composto pelo que se denomina “intermitentes globais”, trabalhadores que, para fugir do desemprego, encontram-se em situação de permanente disponibilidade para “usufruírem” do “privilégio da servidão” (ANTUNES, 2018b). Entre eles, estão os trabalhadores sob demanda por meio de aplicativos.

Na atualidade a quantidade de trabalhos com alta rotatividade ou temporários cresce a cada dia. Há uma tendência a não “ser” uma profissão, mas “estar” numa profissão (ROSA, 2011). Essa concepção trabalhista favorece a Economia de Bicos, ou Gig Economy, expressão utilizada para nomear o mercado de trabalho assinalado por empregos temporárias ou de freelance, marcados por insegurança e ausência de proteção social (DUTRA; COUTINHO, 2020).

Para além de um estímulo à pluralidade de experiências por meio de inovações profissionais, a realidade é que as taxas de desemprego no Brasil estão cada vez maiores e forçado os trabalhadores a buscarem formas de promover o seu sustento na denominada economia de sobrevivência.

A Economia de Bicos já é realidade no mercado de trabalho brasileiro, marcado pela alta rotatividade, a informalidade e os trabalhadores temporários e, a partir daí, se desenvolve outro fenômeno: a explosão de serviços prestados por meio de plataformas digitais (ABÍLIO, 2019).

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Os serviços prestados por meio de aplicativos são resultado das inovações tecnológicas, onde um prestador de serviço se cadastra em uma plataforma digital específica e o algoritmo faz a conexão deste profissional com algum demandante, que também foi previamente cadastrado (DUTRA; COUTINHO, 2020). As plataformas digitais iniciam uma nova fase do mercado de trabalho, a chamada “uberização” - nome dado em razão da mais famosa plataforma digital de serviços, a Uber.

A empresa americana Uber tem abusado do marketing como ferramenta para atribuir às suas atividades um modelo de relação de trabalho diferente do convencional. Suas publicidades transmitem um aspecto de liberdade e autonomia à exploração do trabalho (TEODORO; SILVA; ANTONIETA, 2017). As propagandas já abordaram jargões como “Trabalhe com a Uber quando quiser”, “Seja seu chefe, dirija seu carro” e “Na Uber, é você quem manda”, contando sempre com a presença de atores de várias etnias, orientações sexuais, idosos, crianças e pessoas com deficiência. Reproduzir uma imagem de empresa preocupada com questões ambientais e sociais é importante para se colocar no mercado como um novo modelo de negócio, sugerindo relação de parceria. Porém, apesar de tentar demonstrar toda essa liberdade ao trabalhador, um ambiente onde supostamente não haveria subordinação, esconde uma realidade: o controle da força de trabalho e da extração de seu valor por vias oblíquas (GERON, 2021).

2 “UBERIZAÇÃO” E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO ACENTUADOS PELA PANDEMIA DO COVID-19

Um dos principais impactos da pandemia foi no mundo do trabalho e está relacionado às questões de emprego, pois as medidas para conter a disseminação da Covid-19 incluíram (e incluem) o fechamento de muitos serviços e a adoção de medidas de distanciamento social. O desemprego, que já era um problema expressivo no Brasil, tem se intensificado pela dinâmica da crise sanitária e social (SOUZA, 2020).

Em alguns setores implementou-se o teletrabalho, principalmente da casa do trabalhador, o chamado home office. No entanto, diversas dificuldades se revelaram com essa nova modalidade de trabalho, em meio a um contexto atípico e sem que os trabalhadores em geral tivessem a estrutura adequada para trabalhar em casa.

Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplica (Ipea), no Brasil apenas 22,7% dos trabalhadores têm condições de realizar o home office, especialmente os seguintes grupos: 65% dos cientistas e intelectuais; 61% dos administradores e gerentes; 41% dos técnicos de apoio administrativo; e 30% dos técnicos e profissionais de nível médio. A pesquisa também demonstra que existe uma conexão positiva entre o percentual de teletrabalho e a renda per capita dos estados brasileiros (GÓES; MARTINS; NASCIMENTO, 2020).

É visível que a maior parte dos trabalhadores brasileiros não têm condições de realizar o teletrabalho de suas casas. Mesmo aqueles que tem possibilidade de realizar o home office, a maneira repentina em que foi adotado tem resultado em sobreposição do trabalho com outras atividades diárias, principalmente de caráter doméstico (SOUZA, 2020).

Se para quem tem que trabalhar de casa é complicado, para aqueles que precisam manter as atividades laborais nas ruas o descaso ao qual estão submetidos é preocupante. As atividades mais requisitadas desde o início da pandemia foram os serviços sob demanda das plataformas digitais, principalmente a de entrega de alimentos e outros produtos.

Esse tipo de trabalho tem sido desenvolvido de maneira subordinada aos grupos tecnológicos e suas plataformas digitais, incluindo novos elementos no conjunto de precarização das relações trabalhistas (ABÍLIO, 2019). A relação dos trabalhos por aplicativo parece se organizar entre partes iguais e independentes, unindo interesses empreendedores, no entanto, é uma estratégia das empresas que se utilizam de tecnologia, mascarando a responsabilidade trabalhista e iludindo o trabalhador com a sensação de que ele autogere seu trabalho, quando na verdade se eleva a exploração, agravada pela ausência de garantias trabalhistas (SOUZA, 2020).

As condições precárias de trabalho de plataformas digitais, trabalhadores imersos no processo de “uberização”, chama a atenção desde antes da pandemia. As denúncias ganharam foco nos últimos tempos devido a exposição dos trabalhadores ao vírus e pelo fato de muitos desempregados terem aderido a essa forma de trabalho como alternativa ao desemprego e dificuldades financeiras (ANTUNES, 2018a). A precariedade das relações trabalhistas por meio de plataformas digitais simula uma flexibilização inexistente.

A precarização se apresenta como fenômeno cada vez mais comum na contemporaneidade, portanto deve ser importante objeto na agenda das lutas dos trabalhadores, seja na pandemia, seja depois dela.

3 PODER PÚBLICO, PROTEÇÃO SOCIAL E (PÓS)PANDEMIA

No contexto de crise que o Brasil tem vivenciado com a pandemia do novo coronavírus, é essencial continuar correndo pela luta dos direitos sociais. Direitos não são imutáveis, sendo imprescindível disputá-los constantemente (DELGADO; MIRAGLIA, 2021).

Uma das medidas mais importantes de proteção social é a garantia de trabalho e emprego com as devidas condições e direitos garantidos e que vem sendo o oposto do cenário que a pandemia trouxe.

A instabilidade causada pela pandemia juntamente com a insegurança política brasileira, tem provocado efeitos desastrosos resultando em perdas de vidas por falta de planejamento sanitário e se inclina a retardar a retomada do crescimento econômico e da necessária geração de emprego e renda da população (MORAES, 2021).

De acordo com dados da PNAD, no Brasil, em 2020, com a pandemia, 7 milhões de mulheres saíram do mercado de trabalho logo nos primeiros meses do ano de 2020 (DIEESE, 2021). Estima-se que a crise sanitária gere um retrocesso de mais de uma década em avanços na participação feminina no mercado de trabalho na América Latina e Caribe, por exemplo (CEPAL, 2021).

A retomada de crescimento na oferta de empregos está ligada à volta das atividades econômicas empresariais que podem ser estimuladas tanto pelo aumento da demanda das famílias quanto por políticas públicas indutivas.

No entanto, as contínuas mudanças nas legislações no Brasil que envolvem direitos trabalhistas, com uma tendência de “involução”, não permitem vislumbrar um futuro promissor para o combate do cenário desfavorável pós-pandemia. A associação e coletivização dos trabalhadores pode diminuir a precarização do trabalho, visto que possuem posição mais favorável para pressionar as empresas ou o Estado para reivindicar melhores condições de trabalho, inclusive, em tempos de pandemia, porém uma das consequências dessa “involução” de direitos é o enfraquecimento da representação coletiva dos trabalhadores (MORAES, 2021).

As garantias e proteções do trabalho, formal e informal, deveriam ser repensadas para além do trabalho, englobando as condições de vida mesmas da população.

É importante refletir sobre maneiras de proteção da vida, por meio da saúde, educação, alimentação e meio ambiente, garantidas pelo Estado, além das proteções trabalhistas, considerando que as transformações tecnológicas, que servem mais para acumulação de capital do que melhoria da qualidade de vida, transformam o mundo do trabalho em um lugar mais instável e inseguro (MORAES, 2021).

O que tem gerado certa incerteza é se as políticas públicas para conter os efeitos nocivos da pandemia, mesmo que insuficientes, serão mantidas no pós-pandemia ou se ocorrerá um retorno à ideia de austeridade para recuperar os dispêndios do período.

3.1 AS AÇÕES CIVIS PÚBLICAS DO MPT E CONQUISTAS DOS TRABALHADORES DE PLATAFORMAS DIGITAIS DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19

A precarização das condições de trabalho dos serviços sob demanda por meio de plataformas digitais no contexto pandêmico tem sido agravada pela falta de regulamentação e de reconhecimento do vínculo empregatício.

Os trabalhadores de plataformas digitais por “assumirem” os riscos do negócio, não tiveram entregas de equipamentos de proteção individual (EPIs) pelas respectivas plataformas desde o início da pandemia, prejudicando, principalmente, o direito fundamental à saúde, previsto no art. 6º, caput, da CRFB/88 (JESUS; COELHO; CARMO, 2020).

A pesquisa intitulada “Condições de Trabalho em Empresas de Plataforma Digital: os entregadores por aplicativo durante a Covid-19” demonstra que esses cuidados ficaram por conta dos trabalhadores ao evidenciar que eles “vêm tomando, por conta própria, uma série de medidas que envolve também custos adicionais ao seu trabalho” (REMIR, 2020).

O Ministério Público do Trabalho, diante de toda essa preocupação com a precarização do trabalho por meio de aplicativos, expediu recomendações para diversas plataformas, como iFood, Rappi e Uber Eats, respectivamente: a Recomendação nº 92.113, de 23 de março de 2020; a Recomendação nº 90.475, de 20 de março de 2020; e a Recomendação nº 91.625, de 23 de março de 2020. As recomendações buscam, dentre outras ações: a distribuição de produtos e equipamentos necessários à proteção e desinfecção, conforme orientação técnica dos órgãos competentes; o fornecimento gratuito de álcool-gel 70% ou mais; a disponibilização de espaços para a higienização de veículos, bem como o credenciamento de serviços de higienização; a expedição para os estabelecimentos cadastrados na plataforma digital como tomadores dos serviços de entrega de orientações que contenham medidas compulsórias de proteção aos entregadores quando realizarem a retirada de mercadorias em suas dependências; assistência financeira para os trabalhadores que integrem grupo de alto risco – como maiores de 60 anos, portadores de doenças crônicas, imunocomprometidos e gestantes e para os trabalhadores no transporte de passageiros e no transporte de mercadorias, por plataformas digitais, que necessitem interromper o trabalho, na hipótese de determinação oficial, por parte dos órgãos públicos competentes, de restrição de circulação pública de pessoas.

Considerando que as providências adotadas, de forma superficial, pelas referidas plataformas e sua competência preceituada nos arts. 127 e 129, III, da CFRB/88 c/c o art. 83, I e III, da Lei Complementar nº 75/93, o Ministério Público do Trabalho ingressou com três diferentes Ações Civis Públicas, no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região: Ação Civil Pública 1000396-28.2020.5.02.0082, em face do iFood; Ação Civil Pública 1000405-68.2020.5.02.0056 em face do Rappi; Ação Civil Pública 1000436-37.2020.5.02.0073 em face do Uber Eats. Todas com pedido de tutela de urgência antecipada, com os mesmos requerimentos das recomendações (BRASIL, 2020a, 2020b, 2020c).

Nas Ações Civis Públicas em face do iFood e do Rappi, a liminar foi parcialmente deferida, considerando, principalmente, que os trabalhadores possuem o direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (CRFB/88, art. 7º, XXII) e o direito à saúde como fundamental, estabelecendo, entre outras medidas, a disseminação de informações e orientações para o controle do coronavírus pela plataforma; o fornecimento de insumos e a assistência financeira ao grupo de alto risco (JESUS; COELHO; CARMO, 2020).

Após essas decisões, as plataformas iFood e Rappi impetraram mandados de segurança e conseguiram derrubar a liminar em 7 de abril de 2020. No caso do iFood, a desembargadora entendeu pela inexistência de vínculo empregatício entre o trabalhador e a plataforma. Para ela, em tese, não se está diante do empregador definido pelo art. 2º da CLT (JESUS; COELHO; CARMO, 2020).

A desembargadora alegou que se tratava de um caso fortuito ou força maior, previsto no art. 319 do Código Civil (BRASIL, 2002), entendendo que o iFood não causou e nem exerce qualquer atividade que se ligue ao fato gerador da pandemia.

Em relação a plataforma Rappi, a medida liminar foi cassada com a fundamentação de que o aplicativo demonstra que “está envolvida com os cuidados e procedimentos que se mostram necessários na prevenção da pandemia”, o que mostra, segundo o desembargador, uma superficialidade da reclamação do MPT. Posteriormente, foi realizada conciliação parcial, onde a empresa Rappi responsabilizou-se pela comprovação de plano de contingência com aval e assinado por profissional habilitado, com os aspectos incluídos pelo Ministério Público do Trabalho, até o dia 23 de setembro de 2020, “sob pena de multa no valor de R$ 12.000,00, acrescida de R$ 3.000,00 por dia de atraso”. O MPT, por sua vez, ficou encarregado das considerações técnicas no que diz respeito aos pontos do plano de contingência indicado pela Rappi (BRASIL, 2020c).

A Ação Civil Pública em face do Uber Eats teve seu pedido liminar parcialmente deferido em 14 de abril de 2020, para que a plataforma tomasse algumas medidas, dentre elas: que em 48 horas fornecesse aos entregadores informações e orientações claras a respeito das medidas de controle, bem como condições sanitárias, protetivas, sociais e trabalhistas, para reduzir a contaminação do vírus; em três dias corridos realizasse a distribuição de produtos e equipamentos necessários à proteção e desinfecção, bem como de álcool em gel 70%; assistência financeira aos grupos de alto risco e para os que possuam encargos familiares que demandem o distanciamento social em razão da pandemia do coronavírus em cinco dias corridos, sob pena de multa diária de mil reais (BRASIL, 2020b).

A plataforma Uber Eats impetrou mandado de segurança, conseguindo que a liminar fosse derrubada em 17 de abril de 2020. O desembargador argumentou, principalmente, sobre a possibilidade de irreversibilidade do provimento antecipado. Na ação principal, foi proferida sentença em 19 de agosto de 2020, com a rejeição das preliminares apresentadas pela parte ré, também afastada a alegação de prejudicialidade da decisão proferida no Mandado de Segurança e a Tutela Provisória concedida em 1º grau. No mérito, os pedidos foram julgados parcialmente procedentes, reconhecendo que, alguns pedidos requeridos pelo autor, já estavam sendo implementadas pelo aplicativo (BRASIL, 2020b). Outras providências de urgência anteriormente concedidas foram revistas em tutela definitiva, como a comunicação ao MPT dos trabalhadores infectados, por respeito ao direito à intimidade dos entregadores (JESUS; COELHO; CARMO, 2020).

Contrariamente ao que plataformas digitais têm divulgado, durante o período de pandemia foi observada, além de outros fatores, a não distribuição de equipamentos de proteção. Percebe-se que esses trabalhadores têm tido sua dignidade (art. 1º, IV, da CRFB/88), o direito à saúde (art. 6º, caput, da CRFB/88), o direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho (art. 7º, XXII, da CRFB/88) e a um meio ambiente equilibrado (art. 225 da CRFB/88) constantemente violados (BRASIL, 1988).

Todavia, pode-se destacar algumas conquistas desses trabalhadores na busca por proteção durante a pandemia. O governo do Estado de São Paulo, por exemplo, publicou, em seu Diário Oficial, a Portaria nº 13 do Centro de Vigilância Sanitária estabelecendo ações de proteção aos trabalhadores de entrega, providenciando, dentre outras medidas, o fornecimento gratuito pelas empresas, nos parágrafos de seu art. 3º, de equipamentos de proteção (JESUS; COELHO; CARMO, 2020).

3.2 A NECESSIDADE DE REGULAMENTAÇÃO DOS SERVIÇOS PRESTADOS POR MEIO DE PLATAFORMAS DIGITAIS

A partir da situação de precarização apresentada, o evidente descontentamento dos trabalhadores de plataformas digitais deu ensejo a protestos no mundo todo, incluindo o Brasil, onde essa insatisfação aumenta a cada dia, sendo comum a veiculação de notícias pela mídia sobre manifestações e notas de repúdio às atitudes das empresas frente aos trabalhadores cadastrados (GERON, 2021).

No ano de 2018 fora publicada a Lei n° 13.640, o primeiro diploma legal brasileiro em relação a plataformas digitais, tratando sobre o transporte remunerado privado individual de passageiros, serviço oferecido pela Uber. Porém, lei apenas reconhece e autoriza a atividade desenvolvida pela plataforma, não aprofundando na temático trabalhista, deixando um vácuo normativo e aumentando a insegurança jurídica (BRASIL, 2018).

A insegurança jurídica é um grave problema para o mercado, que acaba precificando o risco e para o trabalhador, que se encontra desprovido de qualquer proteção social. Diante da problemática do vínculo entre os trabalhadores e as empresas de aplicativos, entende-se ser urgente uma regulamentação legislativa desses serviços sob demanda.

O conceito de relação trabalhista está disposto no art. 3º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que afirma ser “empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador sob a dependência deste e mediante salário” (BRASIL, 1943). A doutrina trabalhista aponta pelo menos quatro requisitos necessários para se caracterizar a relação de trabalho: pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e subordinação jurídica (GERON, 2021).

A pessoalidade deve ser observada a partir da necessidade de o trabalho ser executado por uma pessoa física e na necessidade de o trabalho ser prestado de forma pessoal pelo empregado. A não eventualidade seria a necessidade de o trabalho ser prestado de maneira não esporádica. A onerosidade é o pagamento pelo tomador do serviço de parcelas economicamente mensuráveis ao trabalhador. Por fim, tem-se a subordinação jurídica, caracterizada como a dependência criada pelo direito do empregador de comandar, nascendo a obrigação correspondente para o empregado de se submeter a essas ordens (GASPAR, 2016). Não existindo subordinação, mesmo que presentes os demais requisitos, não se pode falar em relação de emprego.

Ocorre que o conceito de subordinação não se enquadra, até o momento, para o chamado trabalho “uberizado”. Para que o vínculo empregatício possa ser reconhecido para essa nova modalidade é preciso traçar de novos contornos para o entendimento de subordinação, seja mediante perspectiva estrutural, objetivo ou potencial (GERON, 2021).

Os trabalhadores têm buscado pela regulamentação dos serviços ofertados pelas plataformas digitais e assim combater a precarização essa modalidade de emprego. Um exemplo disso foi a mobilização a nível nacional ocorrida pelos entregadores de plataformas digitais em julho de 2020 (RIBEIRO, 2020). Necessário se faz averiguar se os trabalhadores das plataformas digitais são classificados como autônomos ou empregados, ou se poderia surgir uma terceira modalidade de prestação de serviço (HEIMOVSKI; MENDES, 2021).

No ordenamento jurídico brasileiro ainda não existe uma definição e, perante as especificidades do conceito de empregado e autônomo, o ideal seria definir uma terceira modalidade como vem acontecendo nos demais países. De toda forma, o enquadramento dos trabalhadores de plataformas digitais como empregado ou autônomo ou o surgimento de uma terceira modalidade precisa ser regulado, preenchendo a lacuna legislativa, para que se elimine a desigualdade social, com a proteção dos trabalhadores e se crie segurança jurídica a todas as relações (HEIMOVSKI; MENDES, 2021).

A proposta de idealizar uma terceira modalidade no direito brasileiro pode ser uma alternativa para amparar um número expressivo de trabalhadores que hoje se encontram sem proteção jurídica, visto que que o trabalho via plataforma digital apresenta características singular.

Importante ressaltar que não seria a primeira vez que uma relação de trabalho com características atípicas teria suas condições regulamentadas por legislação específica. A categoria dos trabalhadores avulsos, por exemplo, é tem características próprias dentro do arranjo normativo, pois não existe ligação direta entre o prestador de serviço e o tomador da mão-de-obra, com a existência de um intermediário entre ambos: o sindicato, relação regida pela Lei 12.023/2007; ou o órgão gestor de mão de obra do trabalho portuário, previstos na Lei 12.815/2013 (GERON, 2021).

Em relação aos trabalhadores de serviços prestados por meio de plataformas digitais, é clara a dificuldade para determinar se são empregados ou autônomos. Esse cenário de insegurança jurídica ocasiona demoradas e onerosas batalhas judiciais. A problemática da insegurança jurídica é prejudicial tanto para os trabalhadores, que não veem seus direitos reconhecidos, como para os empresários, que deixam de investir em razão do elevado grau de insegurança.

A opção por uma terceira via seria o modelo ideal, pelo menos no aspecto prático. O principal objetivo de qualquer proposta legislativa que trate sobre a temática do trabalho “uberizado” deve ser a redução da insegurança jurídica associada à indeterminação da condição desse trabalhador. A criação de uma nova modalidade serviria também para permitir o agrupamento desses trabalhadores para negociar futuros benefícios em prol da categoria (GERON, 2021).

Já existem inúmeros projetos de leis em tramitação para regulamentar os direitos dos trabalhadores de aplicativos, inclusive com um deles aprovado na Câmara dos Deputados em dezembro de 2021. A maioria dos projetos de leis apresentados em 2020 foram apensados ao PL 6015 de 2019 de autoria do Deputado Mário Heringer (PDT/MG) que reconhece como empregados os trabalhadores por meio de plataforma digitais.

O projeto de lei aprovado pela Câmara dos Deputados em 1° de dezembro de 2021, dispõe sobre os direitos dos entregadores de aplicativos durante o estado de calamidade decorrente da pandemia de Covid-19. O texto, que vem se arrastando no Congresso Nacional desde abril de 2020, segue ainda para a análise do Senado Federal, mas já demonstra um avanço em direção a conquista da regulamentação dessa classe trabalhadora.

Dentre as medidas previstas está a determinação de que a plataforma digital contrate seguro contra acidentes, sem franquia, em benefício do entregador nela cadastrado para cobrir exclusivamente acidentes ocorridos durante o período de retirada e entrega de produtos (BRASIL, 2021).

O projeto ainda traz que o entregador afastado do trabalho por infecção pelo coronavírus deve receber da empresa “assistência financeira” por pelo menos 15 dias. Também obriga as companhias a fornecer máscaras e material higienizante (como álcool em gel) para os entregadores (BRASIL, 2021).

Outra medida que causa espanto por ser abordada pela primeira vez, é a obrigação das plataformas de delivery em fornecer alimentação e água potável entre o intervalo das entregas, deixando que o entregador tenha um tempo definido para descansar (BRASIL, 2021). Estabelecimentos como restaurantes e lanchonetes que oferecem produtos por iFood, Uber Eats e Rappi, ou os que possuem sua própria frota de autônomos, também não podem impedir que esses funcionários usem o banheiro, de acordo com as medidas tratadas na PL.

O intuito do legislador é garantir o mínimo de direitos para a categoria. Ao garantir o mínimo de direitos aos trabalhadores, há uma tendência para redução das desigualdades sociais entre o trabalhador e os proprietários das plataformas digitais e/ou contratantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das transformações ocorridas nas relações de trabalho a partir do desenvolvimento tecnológico, o serviço prestado por meio de plataformas digitais vem ganhando destaque. Atualmente, milhares de pessoas estão inseridas nesse novo ambiente e para muitas delas é a única fonte de subsistência.

Com as altas taxas de desemprego, acentuada com a crise da pandemia do Covid-19, uma opção encontrada como meio de sobrevivência por diversos trabalhadores é a prestação de serviços sob demanda mediante aplicativos.

A situação trabalhista dos prestadores de serviços por meio de aplicativos é precária e atinge a sua dignidade, sobretudo porque está se consolidando o entendimento judicial de que não há vínculo jurídico de emprego nos Tribunais Superiores.

Ainda que não se classifique o serviço prestado por meio de aplicativos como relação de emprego, as condições mínimas de proteção ao desemprego e de valorização do trabalho devem ser garantidas aos trabalhadores desta categoria. Considerando as especificidades do conceito de empregado e autônomo, o ideal seria definir uma terceira modalidade como vem acontecendo nos demais países

Diversos projetos de regulamentação dessa nova modalidade de trabalho tramitam no Congresso Nacional brasileiro, garantindo benefícios aos trabalhadores do setor, que hoje não possuem. Um importante e recente passo foi dado com a aprovação da PL n°1665/2020 na Câmara dos Deputados, assegurando proteção social e de saúde aos profissionais que atuam com plataformas digitais no país.

É imprescindível, portanto, a criação de legislação para regulamentar a prestação de serviços por meio de aplicativo, evitando a insegurança jurídica que paira sobre a questão, e assim, fomentar esta prestação de serviços no mercado brasileiro.

Sobre os autores
Lissa Furtado Viana

Professora do curso de direito da Faculdade Anhanguera - Campus Juazeiro do Norte-CE. Advogada OAB/CE n46.143. Mestre em Direito Constitucional e Teoria Política pela UNIFOR (Conceito: CAPES 6). Especialista em Direito Constitucional (URCA) e especialista em Ciências Criminais (CERS). Bacharela em Direito pela Universidade Regional do Cariri (URCA). Pesquisa nos temas: direitos humanos, feminismo, tráfico de pessoas e migração, trabalho análogo à escravo e tecnologia aplicada ao direito; com artigos e capítulos de livros publicados.

Luan Victor de Souza Luna

Bacharel em Direito (UNIFap). Mestre em Direito Privado (PUC-MG). Membro da Associação Brasileira de Filosofia do Direito (ABRAFI) e da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC). Professor e advogado militante.︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIANA, Lissa Furtado; LUNA, Luan Victor Souza. Uberização e realidade pós-pandemia do covid-19:: A precarização laboral e a necessidade da regulamentação da plataformização do trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7470, 14 dez. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/107646. Acesso em: 24 nov. 2024.

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