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Multas de trânsito em veículo do Poder Público: quem deve pagar?

Agenda 14/12/2023 às 15:38

Resumo: A responsabilidade pelo pagamento de multas lavradas contra veículos públicos comumente é suportada pelo Poder Público com recursos públicos. Como poderia a Administração Municipal reaver essas perdas? O artigo aborda a questão que aflige a gestão municipal.

Palavras chave: multas de trânsito; motorista; servidor público; responsabilidade.

Abstract: Responsibility for paying fines issued against public vehicles is commonly borne by the Government with public resources. How could the Municipal Administration recover these losses? The article addresses the issue that afflicts municipal management.

Keywords: tickets; driver; public server; responsibility.

Abordagem geral

Nos termos do Código de Trânsito Brasileiro - CTB, Lei n.º 9.503 de 23/09/1997, a responsabilidade por penalidades decorrentes dos atos praticados na direção de qualquer veículo cabe primariamente ao “condutor” causador da infração, conforme expressa o art. 257, do CTB [BRASIL].

De igual forma, o CTB, no seu art. 256, elenca as penalidades que podem ser impostas ao infrator ao definir no artigo 257 as seguintes medidas: “I – advertência por escrito; II - multa; III - suspensão do direito de dirigir; IV - apreensão do veículo; V- cassação da Carteira Nacional de Habilitação; VI - cassação da Permissão para dirigir; VII – frequência obrigatória em curso de reciclagem”.

Neste caso, o CTB prevê igualmente que a penalidade de “multa” será exigida do proprietário do veículo[1], conforme dispõe o § 3º do art. 282 do código: 

Art. 282. […]

§ 3º Sempre que a penalidade de multa for imposta a condutor, à exceção daquela de que trata o § 1º do art. 259, a notificação será encaminhada ao proprietário do veículo, responsável pelo seu pagamento. 

Assim, havendo a aplicação da multa de trânsito, o proprietário do veículo é o responsável direto pelo seu pagamento perante o órgão de trânsito, mesmo que a infração tenha sido cometida pelo condutor do veículo que não seja proprietário, como previsto no parágrafo 3º do art. 257. Claro, é mais fácil ao Estado cobrar a receita do proprietário cuja garantia será o veículo. Assim, ao proprietário (Administração Pública) restaria o direito de regresso em desfavor do condutor.

Nesse sentido, destaca-se a doutrina de Maria Sylvia Zanella Di Pietro [2008]:

Quando o dano é causado por servidor público, é necessário distinguir duas hipóteses:

1. dano causado ao Estado;

2. dano causado a terceiros.

No primeiro caso, a sua responsabilidade é apurada pela própria Administração Pública, por meio de processo administrativo cercado de todas as garantias de defesa do servidor, conforme artigo 5º, inciso LV, da Constituição. [grifo nosso]

Observa-se que existem infrações de trânsito em que a responsabilidade é facilmente atribuída ao condutor do veículo, como por exemplo as relacionadas ao excesso de velocidade, ao estacionamento em local proibido e ao avanço de sinal vermelho, entre outras atribuídas diretamente ao ato de conduzir/dirigir o veículo. Outras, no entanto, são distintamente relacionadas ao próprio veículo.

No âmbito da Administração Pública, o condutor poderá ser responsabilizado, também, quando deixar de adotar providências e de tomar cuidados a ele deferidos em normas próprias. Sob essa linha, alguns municípios estabelecem normas específicas para regulamentar o procedimento para receber a multa do servidor ou corrigir-lhe as faltas. Comumente se impõe ao motorista as multas relativas ao exame prévio das condições de tráfego do veículo e aquelas relacionadas à própria direção pelas vias.

O Tribunal de Contas do Mato Grosso, via do Acórdão do Processo 209864/2016, exemplificou o seguinte: caso a norma preveja que o condutor deve verificar, por meio de inspeção física, antes de conduzir o veículo, se o licenciamento do veículo está regular, se as lanternas estão funcionando adequadamente ou se os pneus estão em condições de uso - não realiza este “check list” e não informa ou registra as ocorrências aos seus superiores – e, em virtude disso, o órgão de trânsito aplica uma multa por infração de trânsito, certamente que a responsabilidade pela sanção será do condutor, de natureza omissiva [BRASIL].

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O CTB também estabelece que as obrigações decorrentes de infrações referentes à regularização documental e conservação do veículo, cabem ao proprietário do veículo, nos termos do art. 257, tais como estas supra referidas. 

Por isso, sendo a infração cometida pelo condutor servidor público em condução de veículo oficial, este deve arcar com o pagamento da multa correspondente. Isto, contudo, não exime a Administração Pública de efetuar o pagamento para manter o veículo regular para circulação, conforme exigido pelo órgão de trânsito. Também em respeito à responsabilidade objetiva atribuída pela própria norma. Afinal, o veículo é seu e não do condutor.

Logo, o servidor, se não desejar contestar a multa, deve pagá-la. Se acaso não ocorrer o adimplemento espontâneo da multa pelo servidor, após ser devidamente informado, o Poder Público, depois de pagar o débito, deve promover ao pertinente regresso ao Erário, do valor pago. Então não haveria entraves ao pagamento.

A instauração de procedimento administrativo para o pagamento ou regresso da multa deve oportunizar o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV, Constituição). É importante para registrar qualquer conduta indevida no trânsito.

Alguns municípios orientados por seus tribunais de contas têm estabelecido procedimentos para a condução de veículos oficiais em caso de multas. Então, além das normas comuns de trânsito são exigidos, a título exemplificativo: a) elaborar, independentemente de recurso, relatório no dia da ocorrência, descrevendo as condições da autuação e entregá-lo ao setor responsável pela gestão dos veículos; receber do setor responsável pela utilização dos veículos a notificação da multa de trânsito, juntamente com o requerimento para recurso e o formulário de autorização para desconto em folha; b) assinar a notificação de infração de trânsito para transferência dos pontos relativos à penalidade para sua habilitação e anexar cópia de sua Carteira Nacional de Habilitação. O prazo para devolução é de cinco dias; c) se optar pela interposição de recurso, protocolar requerimento no órgão de trânsito que autuou a infração e informar o setor responsável pela utilização dos veículos na pasta de sua lotação; d) se optar pelo desconto do valor da multa, formalizar a autorização e devolver ao setor responsável pela utilização dos veículos; e) receber do setor responsável pela utilização dos veículos a notificação de resultado de recurso de multa; f) no caso de recurso deferido, assinar o formulário específico de ciência e devolver ao setor responsável pela utilização dos veículos auxiliares em até cinco dias; g) no caso de recurso indeferido, se optar pelo desconto do valor da multa, formalizar a autorização e devolver ao setor responsável pela utilização dos veículos [CGE/MT].

Importante dizer que há decisões em tribunais considerando ilegítimo que o condutor figure como parte em recurso de veículo oficial: 

MULTA DE TRÂNSITO. DESCONSTITUIÇÃO. PROVA. ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. RESOLUÇÃO 149/2003 DO CONTRAN. VALIDADE DO AUTO DE INFRAÇÃO. 1. O condutor do veículo não tem legitimidade para pedir a nulidade da sanção imposta pela prática de infração de trânsito de responsabilidade do proprietário. Artigo 257, § 2º, do CTB (...) (Apelação Cível Nº 70050739622, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza, Julgado em 28/09/2012). 

Daí que é importante que o próprio condutor faça a declaração do fato por relatório ou seja acionado para relatar a ocorrência pela própria Administração, a fim de se avaliar a viabilidade de interposição de recurso pela Gestão perante o órgão de trânsito, se entender por conveniente recorrer ou simplesmente atribuir pontuação ao motorista (art. 257, § 7º, CTB). O legitimado para o recurso de trânsito será sempre o município e não o motorista.

Por outro lado, a exigência de pagamento da multa pelo servidor e eventual apuração de falta funcional por reiteradas desídias e negligência de condutor renitente, seriam providências distintas e exige tratamento peculiar. Melhor explicando, é que as sanções aplicadas aos condutores de veículos do município devem ser pagas pelos próprios servidores, conforme já explanado (na inteligência do art. 37, §6º, CF c/c art. 257, do CTB). Não obstante, a constância nas multas de trânsito pode indicar que o servidor está sendo relápso em sua atividade e precisa ser advertido.

Pode ser, no entanto, que a desídia ou o descuido com o bem público em práticas repetidas de má condução do veículo implique em falta disciplinar objetivamente (alguma transgressão do estatuto dos servidores do município). Nessa situação o recomendável é que os processos sejam separados para que não haja confusão de objetos (- no processo prévio, a apuração da responsabilidade – no processo de empenho da multa, o pagamento pelo município – no processo disciplinar, a apuração de falta no exercício do serviço público - ).

Por primeiro instaura-se o procedimento para ressarcimento da multa, registrando o fato com a constatação da multa e notificando o servidor para pagar ou autorizar desconto em folha. Se ele permanecer inerte, o município deve pagar a multa, registrando a ocorrência no processo administrativo e notificando novamente o infrator (caso queira reembolsar o erário). Se ainda ficar inerte ou recorrer, deve a autoridade lavrar decisão (secretário de pasta, já que subscreve atos nos termos em que definir lei de estrutura administrativa do ente). O débito pode então ser encaminhado para cobrança regular e até mesmo inscrição em Dívida Ativa, uma vez que é procedimento de imputação de débito que obedeceu ao contraditório e ampla defesa.

Salienta-se que estou reticente em concordar com o desconto em folha sem autorização do servidor, ainda que assim alguns normativos disponham desta forma. É que as leis estatutárias em geral estabelecem procedimentos auto-executórios (não dependentes de autorização judicial), pelos quais a Administração pode descontar dos vencimentos do servidor a importância necessária ao ressarcimento dos prejuízos, respeitado o limite mensal fixado em lei, com vistas à preservação do caráter alimentar dos estipêndios. Quando o servidor é contratado pela legislação trabalhista, o artigo 462, § 1º, da CLT, só permite o desconto com a concordância do empregado ou em caso de dolo. 

Então, se a administração resolver descontar da remuneração do servidor deve obediência aos limites do estatuto dos servidores. Se, porém, o servidor renitente continuar a dirigir inadequadamente, implicando em falta disciplinar, a Autoridade Administrativa deve comunicar a ocorrência para instauração de PAD (ofício com relatório minucioso das faltas e documentos comprobatórios seria o melhor instrumento). Os processos correrão independentes entre si. Recorde-se, todavia, que nem sempre o ato de receber multas de trânsito poderá, pura e simplesmente, ser tido como falta disciplinar, o que recomendaria exame profundo das faltas disciplinares previstas no estatuto correspondente.

Ainda sobre possível falta do servidor, é interessante perceber que as multas ocorrem por problemas de conservação ou medidas que devem ser adotadas pela Administração e não por ele (conservação de faixa, circular sem equipamento obrigatório, etc.). Possível que até mesmo estas falhas tenham sido relatadas pelo servidor a ponto de lhe retirarem a responsabilidade sobre as multas, uma vez que sobre si apura-se culpa, ao contrário da responsabilidade objetiva que atinge a Administração Pública. Contudo, não basta a declaração da pasta a que responde, é preciso inspeção veicular para imputar essa responsabilidade à própria Administração. 

Considerações finais

Essas perspectivas de interpretação em nada destoam das legislações atualmente existentes, já que elas não estabelecem necesssariamente rito processual administrativo, apenas procura instruir a Administração em como ressarcir o erário cumprindo as leis de regência aqui referidas. Daí nos orientarmos melhor pelos princípios adequados de processo Administrativo que instruem que todo processo tenha objeto, instauração, instrução e conclusão (num dossiê inteligível ao homem médio), com respeito ao contraditório e ampla defesa [CARVALHO FILHO, 2010]. Ressalta-se, ainda, o que determinam possíveis leis de processo administrativo de cada ente municipal.


Referências Bibliográficas:

[1] Entenda-se proprietário também como pessoas jurídicas

BRASIL. Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9503compilado.htm> Acesso em: 14 dez 2023.

______. Constituição Federal. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 14 dez 2023.

______. Controladoria Geral do Estado. Disponível em: <https://www.cge.mt.gov.br/-/servidor-que-comete-infracao-com-veiculo-oficial-tem-de-pagar-a-multa> Acesso em: 14 dez 2023.

______. Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm> Acesso em: 14 dez 2023.

______. Tribunal de Contas do Mato Grosso. Disponível em <file:///C:/Users/renato%20luiz/Downloads/VOTO_209864_2016_01.pdf> Acesso em: 14 dez 2023.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23ª ed. Rio: Forense, 2010, p. 1054-1086.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 21ª ed. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2008, p. 578.


Sobre o autor
Renato Luiz Barbosa Brandão

Advogado, Procurador Jurídico do Município de Jataí-Goiás, Pós-graduado em Direito e Direito Processual Civil. Professor do Curso de Direito da Universidade Federal de Jataí-Goiás, Ex-Professor do Curso de Direito do Centro de Ensino Superior de Jataí, membro da Comissão Especial de Regularização Fundiária do Município de Jataí.

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