O Brasil vive e cultiva o mito da redemocratização e do estabelecimento de nova ordem constitucional em 1988. A idéia de superação do período, longo, de vinte e um anos de ditadura militar, com eleições indiretas, turva a percepção da maioria, levando a crer na refundação político-institucional do país.
O modelo implantado em 1964 nunca se proclamou fora da legalidade e produziu uma base legal própria de suporte e justificação de ações de exceção. Muitos serão levados à incompreensão e à rejeição da assertiva anterior por não perceberem que os abusos em sua maioria deram-se contra a lei, principalmente as violações do direito à integridade física dos cidadãos.
Os grupos que se instalaram então mostraram-se muito desejosos da produção de uma aparência de legalidade institucional, o que, de resto, revela-se atitude muito caracteristicamente brasileira. Havia uma constituição, havia três poderes, independentes entre si, contudo essa conformação não passou de farsa. Desperta curiosidade a cerimônia com que tratamos as formas, a par com a desenvoltura com que atuamos no plano material, fático, desprezando sumariamente a legalidade que afirmamos.
Nesse panorama, é certo que a constituição de 1967 resultou da atuação do poder constituinte originário. O golpe de estado é, por definição, rompimento de ordem constitucional, tendente ao estabelecimento de outra, em substituição àquela afrontada. Quando se depõem mandatários à força, depõe-se juntamente o sistema legal em que se atuava anteriormente. A norma rompida não confere sustentação àqueles que a romperam.
Eis a necessidade de se produzir novo conjunto normativo, principalmente no que diz respeito à organização do estado e ao exercício do poder político. Enfim, deve-se fazer nova constituição, refletindo a configuração que os grupos exitosos no golpe de estado ou revolução desejam dar ao país.
A legitimidade para tanto é plena, verificada na medida do sucesso na empreitada política. O poder atuante na feitura de uma constituição, nestas circunstâncias, é propriamente originário. Ainda que romper uma ordem constitucional seja ilegítimo sob os parâmetros da ordem rompida, depois de consolidado o processo político de ruptura, não há paradigmas jurídicos de verificação. Criar-se-ão outros.
Os grupos revolucionários ou simplesmente golpistas muito raramente desprezam impor-se limites mediante uma constituição nova, ainda que funcione apenas no plano das aparências. São raros, com efeito, os casos de falta absoluta de pudor político. Ao constitucionalismo triunfante deve-se tal acréscimo de hipocrisia política.
No Brasil de 1964 em diante, os pudores dos golpistas quanto a formas legais revelaram-se muitos, considerando-se que estavam bastante próximos de poder tudo. O problema era que o golpe dera-se em nome de ideologia que implicava a prática democrática e a garantia das liberdades. A solução era consagrar legalmente até certo ponto a democracia e algumas garantias, desprezando-as sumariamente, na realidade.
A distância entre o que se diz e o que se faz é indissociável da história política brasileira e a hipocrisia nossa mais forte característica. Adotamos a lógica do pequeno e do grande grupos como realidades diversas que se comunicam de formas diferentes, consoante as relações sejam internas ou externas.
A verdade, tomada no sentido de discurso sincero, admite-se no seio de pequenos grupos. A comunicação destes com o que se convencionou chamar de opinião pública pauta-se pelo disfarce, pela ambigüidade, ou pela mentira pura e simples. Tal sistemática não oferece maiores incômodos ao espírito médio, que aceita as regras não escritas do jogo político tão bem como declara aceitar as regras formais.
Contudo, a auto-limitação política, por meio de ordem constitucional, pode trazer alguns problemas quando o divórcio entre as formas e as práticas acentua-se demais. Se, além disso, ocorrem problemas econômicos, um modelo de estado tende ao colapso. Processo dessa natureza desencadeou-se, no Brasil, a partir de 1978. Não se chegou, porém, ao rompimento institucional que muitos desejam ver na assembléia constituinte de 1988, em que não atuou poder originário.
A construção de mitos heróicos democráticos pode ser relativamente útil ao orgulho nacional e muito útil aos heróis, mas dificulta abordagens precisas e alonga desvios de compreensão de processos históricos e políticos. No caso aqui focado, atrás da mitologia da redemocratização encontram-se uma série de acordos e a acomodação de vários interesses conflitante. Muito foi realizado em matéria política, exceto rompimento por meio de golpe de estado ou revolução.
A assembléia nacional constituinte de 1988 foi convocada por meio de emenda à constituição então vigente, o que consiste em incoerência flagrante, ao menos visto por perspectiva de análise jurídica. A constituição de 1967, com as alterações de 1969, não previa sua extinção mediante processo convocado por emenda a ela própria. A Emenda nº 26 tentou conciliar o inconciliável, trazendo forma jurídica para processo político que consiste exatamente no rompimento e na posterior criação de novas formas.
Todo o anseio de conduzir a suposta mudança segundo padrões formais típicos, o que se revela exatamente na convocação da assembléia por emenda, deixa claro o caráter de transição negociada. A passagem política do período de 1985 a 1988 foi ocupação de espaços cedidos por aqueles que não os podiam mais ocupar.
Pequenas mudanças demandam pequenos ajustes. Todavia, sempre se faz necessária grande encenação para a feitura do pouco. Inserir garantias de liberdade e integridade pessoais, além de toda uma série de insignificâncias e proteções corporativas materialmente não-constitucionais, no texto base então vigente, implicou a montagem de uma cerimônia ritual. Obviamente, a construção do mito estava deslocada da realidade e serviu apenas aos heróis do momento.
O que aconteceu é muito significativo em perspectiva histórica restrita, assumindo-se um corte de meio século. A partir de uma visão mais abrangente, contudo, o processo de 1985 a 1988 amesquinha-se e, talvez, insere-se entre os menores tremores políticos da história brasileira. Percebe-se, então, nítida desproporção entre o evento político e histórico e sua apropriação jurídica.
Utilizou-se aparato maior que a ocasião e propagandeou-se momento político diverso do que havia. Grupos sucederam a outros e liberdades individuais foram um pouco mais respeitadas e eleições diretas restabelecidas. Nada disso, contudo, é suficiente para se falar em festa da democracia, refundação política ou início de outro período histórico.
As eleições, para abordar-se uma das novidades, não têm o significado que se lhes pretende dar, quando são realizadas com voto compulsório e eleitores extremamente apartados de qualquer informação. Instituiu-se o leilão confirmatório aberto, de comparecimento obrigatório. Enfim, fazia-se a democracia para permitir a continuidade do que se fizera suspendendo a mesma suposta democracia. A mais sedutora conclusão é que democracia não passa de um nome e que, em sociedades de massa, afirma-se com a previsão de poucas e violáveis regras de acesso temporário ao poder.
Neste momento, o óbvio tem que ser reafirmado. As massas brasileiras encontram-se em nível de deseducação formal de África sub-saariana. As classes médias quase na mesma situação, exceto pela oportunista posse de conhecimentos técnicos úteis conforme a época vivida e todo um arsenal de moralismo maniqueísta que a faz sentir-se monopolista da verdade ética.
As classes social e economicamente dominantes consentem nisso tudo e permitem que alguns estratos médios apropriem-se de algo. São extremamente deseducadas, comparando-se a grupos de posição semelhante em outros locais. Nutrem o mito da posição obtida com mérito, o que representa, em país recente e independente do colonizador sem guerras, evidente contrasenso. Méritos, se é possível identifica-los, estão no inegável êxito na continuidade, sempre oportunamente disfarçada.