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Suicídio assistido: pode o direito se valer do consentimento do ofendido como causa supralegal de exclusão da ilicitude para a defesa da dignidade da pessoa humana?

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Que vida o direito deve proteger? A vida biológica, tendo como marcadores parâmetros visíveis de sinais vitais; ou a vida biográfica, na qual o indivíduo, com sua autonomia e valores, compreende-se como ser alguém no mundo e os limites de sua existência?

“Memento Mori”

RESUMO: As causas excludentes da ilicitude se subdividem em causas legais – cuja previsão se encontra no próprio Código Penal – e causas supralegais, que são idealizadas e desenvolvidas pela doutrina e jurisprudência. A doutrina aponta como principal causa supralegal de excludente da ilicitude o chamado consentimento do ofendido. Nem mesmo a vida – bem jurídico de supravalor, cuja garantia dos demais direitos pressupõe a sua existência – pode ser tratado como absoluto, permitindo, nos termos expressos da Constituição Federal, que seja relativizado. Por opção legislativa, a vida não é um direito fundamental absoluto: é possível que o Estado, em caso de guerra declarada e nos moldes do Código Penal Militar, ceife a vida de um indivíduo. Além disso, fazendo uma interpretação sistemática, é lícita a morte em casos de legítima defesa e estado de necessidade. Com o aumento da longevidade humana, proporcionado por questões múltiplas, como o avanço de recursos tecnológicos disponíveis na medicina, cresce também o número de doenças crônicas, progressivas e degenerativas, bem como comorbidades. Tais doenças podem trazer agravos e limitações significativas para o indivíduo que é acometido pelas mesmas e, a depender do que este considera como dignidade, ou vida digna, pode ter ofendido tais valores no curso de uma doença incurável. Já disponível em mais de dez países, o suicídio assistido e para que seja consumado, o sujeito ingere algum medicamento letal, fornecido por terceiros, no caso em tela, por médicos que acompanham ou conhecem o quadro de adoecimento vivenciado pelo indivíduo. A morte e o processo de morrer fazem parte da esfera privada, cabendo ao indivíduo a delimitação do que compreende como digno ou não nesse processo, bem como os limites de suportabilidade de sofrimento decorrentes de doenças graves e que lhe aproximam do final da vida. É temerário afirmar que o suicídio assistido, como instituto atinente à esfera médica, se dissocia do estudo do direito, uma vez que pode servir, com a devida e séria regulamentação, como um instrumento para a garantia do maior direito de todos, qual seja, a dignidade da pessoa humana. O direito a um fim digno não pode ser extirpado em prol da manutenção de uma vida indigna, tomada por sofrimento e não querida, desconsiderando por completo a autonomia da vontade e a dignidade da pessoa humana. Assim como todos os bens jurídicos do ordenamento, levando em conta sua (in) disponibilidade, se faz necessário realizar um juízo de valor e ponderação no caso concreto, e não apenas taxar um direito como absoluto e indisponível, desconsiderando as peculiaridades de cada caso.

Palavras-chave: consentimento do ofendido; suicídio assistido; dignidade da pessoa humana; doenças ameaçadoras da vida; distanásia; ortotanásia; exclusão de ilicitude.


  1. O CONSENTIMENTO DO OFENDIDO COMO CAUSA SUPRALEGAL DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE

Entende-se por crime, em seu conceito analítico e tripartido, a conduta típica, ilícita e culpável. Portanto, para que seja possível falar em crime, é necessário que estejam presentes no caso concreto esses três substratos, de modo que, caso haja a exclusão de um deles, haverá a exclusão do próprio crime.

Nesse diapasão, as causas excludentes da ilicitude se subdividem em causas legais – cuja previsão se encontra no próprio Código Penal – e causas supralegais, que são idealizadas e desenvolvidas pela doutrina e jurisprudência, conforme a necessidade de evolução do direito, diante da própria evolução social.

Justamente pela ausência de previsão legal, as causas supralegais de exclusão dos substratos do crime adentram no subjetivismo penal. Isso porque, cabe exclusivamente aos doutrinadores e aos Tribunais elencarem seus conceitos, requisitos, condições e alcance de aplicação. Diante disso, surgem diversos posicionamentos e ideologias acerca de tais possibilidades, o que permite um amplo debate doutrinário e jurisprudencial acerca do real alcance dessas excludentes, evitando, inclusive, a fossilização do direito para com os anseios da sociedade. Nesse sentido, Salgado Martins:

as causas ilidentes da antijuridicidade não podem limitar-se as estritas prescrições da lei positiva, mas devem ser examinadas dentro de quadro mais amplo, isto é, à luz de critérios sociológicos, éticos, políticos, em suma, critérios que se situam antes do Direito ou, de certo modo, fora do âmbito estrito do Direito positivo (Direito penal- Introdução e parte geral, p. 179).

Assim, a doutrina aponta como principal causa supralegal de excludente da ilicitude o chamado consentimento do ofendido. Importante destacar que tal causa possui dupla natureza jurídica, uma vez que, a depender do caso concreto, poderá afastar a ilicitude da conduta ou a sua própria tipicidade. Conforme leciona Capez (2023), excluirá a tipicidade quando o consentimento ou dissentimento forem exigências expressas do tipo para o aperfeiçoamento da infração penal, de modo que a sua presença ou falta terá repercussão direta no próprio tipo. Por outro lado, excluirá a ilicitude quando o consentimento ou o dissenso não forem definidos como exigência expressa do tipo e estiverem preenchidos outros requisitos que trataremos adiante.

Existe grande divergência doutrinária acerca dos requisitos necessários para que se possa efetivamente excluir a ilicitude da conduta com base no consentimento do ofendido. Porém, existem requisitos comuns trabalhados pela doutrina, que Reyes Echandía resume em:

1) que o direito seja daqueles de que se possam dispor validamente os particulares;

2) que o sujeito passivo tenha capacidade jurídica para dispor do direito;

3) que o consentimento seja anterior ou consentâneo à conduta do agente;

4) que seja expresso ou que, em caso contrário, não fique dúvida razoável de que o titular do direito houvera consentido;

5) que seja concreto, sério e emitido sem erro nem violência.

Neste diapasão, é unanime a necessidade de que o bem jurídico envolvido na conduta seja disponível, ou seja, que seja exclusivamente de direito privado, sem que haja interesse estatal em sua conservação e proteção. Assim, o ofendido apenas pode dar seu consentimento para a realização de uma conduta até então típica, caso o bem jurídico protegido pelo tipo penal seja passível de disponibilidade pelo seu titular.

A INEXISTÊNCIA DE DIREITOS ABSOLUTOS E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

É cediço que, salvo raríssimas exceções – como a proibição à tortura; à escravidão; à extradição de brasileiro nato; e compulsoriedade de associação – não existem direitos absolutos em nosso ordenamento jurídico. Isso porque, num plano abstrato de apreciação constitucional, nenhum direito se sobressai sobre o outro, de modo que se faz necessária a observância de técnicas e princípios em caso de conflito aparente de normas para se chegar em uma solução. É o caso concreto que apontará qual direito prevalecerá, valendo-se, principalmente, do princípio da proporcionalidade para tal decisão. Cumpre esclarecer que, em nenhuma hipótese, será possível a supressão completa de um direito pelo outro. É necessário que a harmonia constitucional, baseada em seus princípios de interpretação, permanece íntegra e sem lacunas e, para isso, Dworkin e Alexy lecionam a teoria da ponderação, que possui como base principal o princípio da proporcionalidade.

Nesse sentido, a norma maior da proporcionalidade compreende três sub-princípios, perfazendo, portanto, um verdadeiro procedimento a ser utilizado quando da ponderação de princípios. São eles a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.

O primeiro desses elementos é o da adequação. Por meio dele, a restrição que se faz no âmbito de um direito fundamental há de ser feita para que se consiga atingir determinado objetivo, ou seja, a restrição precisa ser apta à finalidade pretendida.

Ocorre que, por vezes, para a consecução de um fim legítimo, mais de uma medida restritiva pode mostrar-se adequada. É nesse contexto que se insere o sub-princípio da necessidade. Tal princípio impõe que a medida restritiva, além de ser a mais adequada, deve ser a mais branda dentre todas as medidas que se mostrem adequadas. Portanto, é necessário que a restrição seja aquela absolutamente indispensável e necessária para que se atinja o fim pretendido.

Por fim, o último sub-princípio refere-se à proporcionalidade em sentido estrito, denominado por alguns doutrinadores de racionalidade, que permite que o aplicador do direito realize a tarefa de ponderar e sopesar os bens jurídicos em conflito no caso concreto. Trata-se de balancear os princípios envolvidos, atribuindo-lhes peso e buscando que o benefício resultante da efetivação de um direito fundamental seja mais importante que a restrição adequada e necessária do princípio que com ele colide.

Nesse sentido, nem mesmo a vida – bem jurídico de supravalor, cuja garantia dos demais direitos pressupõe a sua existência – pode ser tratado como absoluto, permitindo, nos termos expressos da Constituição Federal, que seja relativizado.

O poder constituinte originário, por meio de sua Assembleia Nacional Constituinte e de maneira democrática, deu início a nova ordem constitucional de 1988, trazendo, pela primeira vez, um vasto rol de direitos e garantias fundamentais do indivíduo e, além disso, elencou diversos direitos de segunda geração – direitos sociais, econômicos e culturais – que pressupõe uma atuação positiva do estado para sua implementação. Ao garantir expressamente tais direitos, o constituinte baseou-se em um supra-princípio que regia (e ainda rege) a ordem nacional e internacional à época: o princípio da dignidade da pessoa humana. No bojo do texto constitucional, não existe relativização de tal direito, o que não ocorre nem mesmo com o direito à vida.

A dignidade da pessoa humana, após as atrocidades ocorridas na 2° Guerra Mundial, tomou um lugar de destaque na ordem internacional, figurando como um eixo axiológico que irradia para todas as esferas de poder e para todas as ordens internas. Não podemos garantir o direito à vida, se esta não for digna; a dignidade pressupõe a vida, assim como a vida pressupõe a dignidade. São conceitos que estão interligados, devendo caminhar lado a lado. Entretanto, por opção legislativa, a vida não é um direito fundamental absoluto: é possível que o Estado, em caso de guerra declarada e nos moldes do Código Penal Militar, ceife a vida de um indivíduo. Além disso, fazendo uma interpretação sistemática, é lícita a morte em casos de legítima defesa e estado de necessidade.

Conclui-se, portanto, que nem mesmo um bem jurídico supremo, que é a vida, será sempre absoluto no caso concreto. Se o próprio poder constituinte originário relativizou o direito à vida em relação ao direito à paz e à ordem pública (nos casos de guerra declarada), é inviável concluirmos que o direito à vida não pode, em nenhuma hipótese, ser relativizado para a garantia do direito da dignidade da pessoa humana. Em situações excepcionais, deverá o aplicador do direito se valer da proporcionalidade e da técnica da ponderação, para averiguar qual direito se sobressairá naquele caso em específico. Porém, tal discussão está longe de ser pacífica.

DA (IN)DISPONILIDADE DO DIREITO À VIDA NA SEARA PENAL

Ao tratarmos do consentimento do ofendido como causa supralegal de exclusão da ilicitude, abordamos o requisito da disponibilidade do bem jurídico envolvido na conduta típica.

Para a doutrina tradicional, entende-se por bens disponíveis todos aqueles que sejam exclusivamente de direito privado, sem que haja interesse estatal em sua proteção. Os bens disponíveis, portanto, encontram-se na esfera do interesse meramente particular, sendo passíveis de alienação e disposição. Diante desse conceito, a discussão que aqui se coloca diz respeito à seleção desses bens para serem classificados como de interesse estatal e, portanto, considerados indisponíveis. Seria a vida, em todo e qualquer caso, um bem jurídico indisponível para o direito penal?

De acordo com Yuri Carneiro Coelho (2003, p.130), o bem jurídico penal é um valor tutelado pelo direito penal, que possui seu substrato na Constituição, ancorado na realidade social, sendo o elemento material da estrutura do delito e que tenha a capacidade de relativizar o princípio da liberdade e de concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana enquanto valor fundamental para a convivência pacífica em sociedade. O bem jurídico penal, portanto, não pode ser definido como um mero valor escolhido sem parâmetros pelo legislador, que permite a punição estatal em caso de violação. É necessário observar os ditames sociais e, principalmente, o princípio da dignidade da pessoa humana, como valor e como norma. Desse modo, o bem jurídico tutelado pelo tipo penal não deve ser interpretado de maneira fria, mas de acordo com realidade social do momento em que vivemos.

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Nesse sentido, nem todos os bens jurídicos penais são indisponíveis. Como vimos ao tratar do consentimento do ofendido como causa supralegal de exclusão da ilicitude, existem bens que, por sua natureza – normalmente patrimonial – podem ser alvo de concordância de violação pelo seu titular. Um exemplo claro acerca desses bens são os bens patrimoniais referentes ao delito de dano, previsto no artigo 163 do Código Penal:

Dano

Art. 163 - Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia:

Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa. (BRASIL, 1941, on-line).

Pode o titular da coisa, de maneira prévia, concreta, sem nenhum vício de coação e possuindo plena capacidade jurídica, dispor do bem jurídico “coisa alheia”, permitindo, então, que o agente danifique, inutilize ou deteriore tal bem. Nesse caso, aplicar-se-á a causa supralegal de exclusão da ilicitude denominada de consentimento do ofendido, vez que não pairam dúvidas acerca da disponibilidade de um bem patrimonial.

Diferente situação se dá no tocante ao bem jurídico “vida”. Nos termos do artigo 121 do Código Penal, o homicídio é crime punido com reclusão, de seis a vinte anos, em sua modalidade simples. Tal delito protege o bem jurídico vida humana extrauterina, de modo que, salvo as exceções já abordadas anteriormente, não pode um agente, sem qualquer eximente de responsabilidade, ceifar a vida de outrem. Trata-se, para a doutrina majoritária, de um bem jurídico indisponível, vez que, nem com a concordância do próprio titular do direito, um terceiro poderá mata-lo, sob pena de responsabilização penal. Nesse sentido, se faz necessário avaliar a plausibilidade de tal indisponibilidade.

É indiscutível que o direito à vida possui interesse estatal em sua proteção e merece severa reprimenda em casos de violação. Ocorre que, assim como outros bens, não é plausível que em toda e qualquer situação o mesmo seja indisponível. Ora, se nenhum direito fundamental é absoluto, sendo possível, inclusive, que o próprio Estado ceife a vida de um indivíduo em casos de guerra declarada, porque defende-se que o bem jurídico “vida” é indisponível em todas as circunstâncias, de modo a gerar a inaplicabilidade da causa supralegal de exclusão da ilicitude do consentimento do ofendido?

VIDA HUMANA É UM DIREITO FUNDAMENTAL ATÉ SEU FIM?

O Direito, como baluarte da dignidade da pessoa humana, não pode fugir à responsabilidade de defendê-la em situações relacionadas ao morrer, visto a morte ser experiência fatídica, intransferível e que alcançará a todos.

De acordo com estudo divulgado em 2016 pelo Ministério da Saúde e Fundação Getúlio Vargas, nos próximos anos haverá uma mudança no perfil demográfico da população brasileira (online):

Com o aumento da longevidade humana, proporcionado por questões múltiplas, como o avanço de recursos tecnológicos disponíveis na medicina, cresce também o número de doenças crônicas, progressivas e degenerativas, bem como comorbidades (vigência de mais de uma doença) conforme gráficos apresentados também no relatório supracitado:

Tais doenças podem trazer agravos e limitações significativas para o indivíduo que é acometido pelas mesmas e, a depender do que este considera como dignidade, ou vida digna, pode ter ofendido tais valores no curso de uma doença incurável.

Apesar do sentimento de imortalidade proporcionado pelos recursos avançados em saúde, a terminalidade da vida humana é inexorável, contudo, tal discussão se faz como um “tabu social”, através de uma cultura de negação da morte, sendo possível a discussão de questões como parto humanizado, mas não morte humanizada.

Porém, tal discussão se faz urgente, pois, segundo pesquisa realizada em 2021 por um grupo britânico, entre 81 países avaliados, o Brasil é o 3° pior país do mundo para se morrer, considerando, por exemplo oferta de equipe capacitada para cuidados de final de vida e medicamentos para controle de dor. (O Globo, online, 2022)

1. TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

No âmbito do Direito, consentimento pressupõe a manifestação da autonomia da vontade, como por exemplo, manifestado em negócios jurídicos. Porém, tal gênero não se limita ao Direito, estando presente na relação médico-paciente, visando não apenas tornar simétrica a relação, como atender aos princípios da autonomia da vontade e ao próprio código deontológico da Medicina, que, em seu artigo 34 veda ao médico “deixar de informar ao paciente o diagnóstico, prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação ao seu representante legal” (CFM).

Também em sua Resolução n°2056/2013, o CFM traz, em seu artigo 30:

Nenhum tratamento será administrado a qualquer pessoa sem o seu consentimento esclarecido, salvo quando as condições clínicas não permitirem sua obtenção ou em situações de emergência, caracterizadas e justificadas em prontuário. Parágrafo único. Na impossibilidade de obter-se o consentimento esclarecido do paciente, ressalvada a condição prevista na parte final do caput deste artigo, deve-se buscar o consentimento do responsável legal.

Dadalto (2022) destaca o dever do médico não apenas explicar ao paciente quanto ao tratamento indicado para a doença em questão, mas também opções terapêuticas, abarcando benefícios e malefícios, fomentando, assim, o direito do paciente em decidir livremente, o curso que considera apropriado para si.

O direito à informação é garantido em nossa Constituição, bem como o direito à verdade é indiscutível, porém, conforme Araújo aponta “é inegável que pacientes com doenças que ameaçam a vida precisam de médicos com excelentes habilidades de comunicação, os quais dificilmente são encontrados” (2020, p. 101).

No que tange à autonomia para tomadas de decisão sobe tratamentos atinge o consentimento informado na relação médico-paciente, de forma a respeitar seus valores e aquilo que considera ou não como digno, além de não objetificar o paciente, não o colocando no lugar de mero “órgão” ou objetificado, mas como um sujeito integral e de direitos. (Teixeira e Rodrigues, 2017)

Desta forma, não se admite que em um cenário de tratamento de doenças crônicas e terminais não haja a discussão sobre os melhores tratamentos para cada contexto, considerando curso natural da doença, disponibilidade de recursos e tratamentos, assim como valores e biografia da pessoa acometida.

Mister ressaltar que a relação médico-paciente possui caráter negocial, devendo atender aos princípios da boa-fé, dignidade e liberdade (Teixeira e Rodrigues, 2017) e como destaca Araújo (2023, p. 46) “se a minha dignidade depende do respeito à minha capacidade de ter meus próprios fins, eu preciso ter condições de conhecer as opções. E de escolher entre elas. Por isso mesmo, não acredito que seja possível ter dignidade dentro da ilusão”.

Posto isso, não podemos falar em autonomia e consentimento sem que todas as informações atinentes à doença, tratamento e prognóstico sejam ofertadas de forma clara. (Mascarenhas e Matos, 2021, p. 95)

2. DISTANÁSIA, CUIDADOS PALIATIVOS E ORTOTANÁSIA

Tomou a decisão errada não por todos os perigos envolvidos, mas porque a cirurgia não tinha nenhuma chance de lhe dar o que ele de fato queria: suas capacidades, sua força, a vida que tinha antes. Estava correndo atrás de algo que era praticamente uma fantasia, sob o risco de sofrer uma morte prolongada e terrível - que foi exatamente o que aconteceu. (Gawande, 2015, p. 15).

Quando falamos de doenças crônicas, progressivas e degenerativas, torna-se indispensável a compreensão de seu curso natural, que terá sua linha de evolução a depender do órgão ou funcionalidade atingidos, a ilustrar-se nas imagens a seguir (Knaul, et al, 2018, p.1400):

Posto tais dados, é indiscutível que, ainda com os recursos disponíveis, as doenças possuem um curso natural, que culminará no desfecho morte, considerando idiossincrasias.

Entretanto, temos na medicina prática ainda frequente, visto perfil paternalista e pouco autonomista no que tange ao compartilhamento e tomada de decisão junto ao paciente em doenças que ameaçam a vida, sem proposta de tratamento modificador de doença, o que atende por “distanásia”. Esta pode ser compreendida como um prolongamento do processo de morrer, onde recursos tecnológicos e medicamentos, como internação em unidade de terapia intensiva, uso de drogas vasoativas, reanimações cardiopulmonares, hemodiálise, são dispendidos a pessoas que vivenciam o final da vida ou de uma doença crônica. (Mascarenhas e Matos, 2021)

...uma política distanásica, é aquela que reforça o controle médico em torno do corpo humano. O profissional esquece o paciente e passa a focar, exclusivamente na doença. O medo da morte do paciente enquanto suposta falha do médico apenas reforça o mito da infabilidade da Medicina e de seus profissionais. (ibidem, p. 94)

Em 2008, o projeto nacional Coping with Cancer [Lidando com o câncer] publicou um estudo mostrando que pacientes com câncer em estágio terminal, que foram conectados a um respirador artificial, receberam compressões torácicas ou desfibrilações elétricas ou que foram internados em unidades de tratamento intensivo pouco antes de morrerem, tiveram uma qualidade de vida substancialmente pior em sua última semana do que aqueles que não tiveram nenhuma dessas intervenções. E seis meses após a morte daqueles pacientes, as pessoas que haviam cuidado deles tinham uma propensão três vezes maior a sofrer de um caso sério de depressão. Passar os últimos dias de vida em uma uti devido a uma doença terminal é, para a maior parte das pessoas, uma espécie de fracasso. Você está conectado a um respirador artificial, todos os seus órgãos estão parando de funcionar, sua mente está à beira do delírio e incapaz de se dar conta de que você nunca vai deixar esse lugar fluorescente, ao qual não pertence. O fim chega sem lhe dar a chance de se despedir ou de dizer “Está tudo bem”, “Desculpa” ou “Eu te amo”. (Gawande, 2015, p. 148).

Faz-se mister ressaltar que tal cenário é empreendido por questões que envolvem falha de comunicação, quando a equipe responsável não discute previamente com paciente impossibilidade de reversão de quadro; esperança baseada em argumentos morais ou religiosos, como a crença no ‘milagre”, “não desistir”, “lutar contra a doença”; bem como no ainda defasado currículo das faculdades de medicina, que fomentam o papel apenas de cura, desconsiderando, inclusive, a biografia e valores da pessoa a ser cuidada. (Araújo, 2020; Robles-Lessa e Baruffi, 2021).

...o que se observa nesses casos é muito mais obsessão por vencer a morte, do que a premência de se encontrar meios de viver com qualidade até que chegue o momento final. Compartilhada, muitas vezes, mais por médicos e familiares do que pelo próprio paciente, a manutenção da vida a todo custo torna-se uma batalha fadada ao insucesso, permeada por fracassos de se trocar um presente digno por um futuro impossível ou improvável (Araújo e Magalhães, 2021, p. 296)

Quando diante de doenças crônicas e progressivas, ou seja, aquelas em que a cura ou reversibilidade não será alcançada, tem-se como indicação a oferta dos Cuidados Paliativos, que segundo a OMS (2002):

Cuidados Paliativos consistem na assistência promovida por uma equipe multidisciplinar, que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares diante de uma doença que ameace a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, por meio de identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais.

Tal indicação é respaldada pelo Conselho Federal de Medicina, em sua Resolução N°1805/2006:

Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.

§ 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.

§ 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.

§ 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica.

Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar.

Ao cuidado de fim de vida proporcionado pelos Cuidados Paliativos dá-se o nome de “ortotanásia”, ou seja, “morte no tempo correto”, onde respeitar-se-á o curso natural da doença, sendo ofertado pela medicina todo e qualquer recurso que possa aliviar e amenizar os sintomas decorrentes de uma patologia, sendo intensificados na proximidade da morte e em sua vigência, sem o emprego de recursos extraordinários ou fúteis, considerando que estes não evitariam o desfecho morte, mas tão apenas prolongariam o processo do morrer às custas de sofrimento. (Mainart, Vasconcelos e Bussinguer, 2021).

APELAÇÃO CÍVEL. ASSISTÊNCIA À SAÚDE. BIODIREITO. ORTOTANÁSIA. TESTAMENTO VITAL. 1. Se o paciente, com o pé esquerdo necrosado, se nega à amputação, preferindo, conforme laudo psicológico, morrer para "aliviar o sofrimento"; e, conforme laudo psiquiátrico, se encontra em pleno gozo das faculdades mentais, o Estado não pode invadir seu corpo e realizar a cirurgia mutilatória contra a sua vontade, mesmo que seja pelo motivo nobre de salvar sua vida. 2. O caso se insere no denominado biodireito, na dimensão da ortotanásia, que vem a ser a morte no seu devido tempo, sem prolongar a vida por meios artificiais, ou além do que seria o processo natural. 3. O direito à vida garantido no art. 5º, caput, deve ser combinado com o princípio da dignidade da pessoa, previsto no art. 2º, III, ambos da CF, isto é, vida com dignidade ou razoável qualidade. A Constituição institui o direito à vida, não o dever à vida, razão pela qual não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a tratamento ou cirurgia, máxime quando mutilatória. Ademais, na esfera infraconstitucional, o fato de o art. 15 do CC proibir tratamento médico ou intervenção cirúrgica quando há risco de vida, não quer dizer que, não havendo risco, ou mesmo quando para salvar a vida, a pessoa pode ser constrangida a tal. 4. Nas circunstâncias, a fim de preservar o médico de eventual acusação de terceiros, tem-se que o paciente, pelo quanto consta nos autos, fez o denominado testamento vital, que figura na Resolução nº 1995/2012, do Conselho Federal de Medicina. 5. Apelação desprovida. ( Apelação Cível Nº 70054988266, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Irineu Mariani, Julgado em 20/11/2013)

(TJ-RS - AC: XXXXX RS, Relator: Irineu Mariani, Data de Julgamento: 20/11/2013, Primeira Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 27/11/2013)

No Estado de São Paulo, a Lei n° 10241/1999 (São Paulo), também popularmente conhecida como “Lei Mário Covas”, assegura em seu artigo 2°, o direito do paciente em:

XXIII - recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida; e
XXIV - optar pelo local de morte.

Em 2020, no Estado de São Paulo, foi promulgada a Lei 17.292, que regulamenta os serviços de cuidados paliativos (Mainart, Vasconcelos e Bussinguer, 2021) e, de acordo com Robles-Lessa e Baruffi (2021), 92% das faculdades de Medicina não contemplam em sua grade tal disciplina e há uma estimativa de que a “necessidade de Cuidados Paliativos é em mais de metade das mortes, mais precisamente em 57,5%” (p.24). Depreendemos, assim, o enorme abismo na oferta e necessidade de cuidados em final de vida.

Destarte, quando considerada a dignidade da pessoa humana, pode-se depreender que a oferta e acesso aos Cuidados Paliativos atendem aos pressupostos da dignidade da pessoa humana, ao considerar o cuidado integral ao paciente que enfrenta uma doença ameaçadora da vida.

Entretanto, poder-se-ia considerar paternalismo médico, social e jurídico determinar que apenas tal cuidado abarque a dignidade da pessoa humana, haja vista que os valores individuais desenvolvidos ao longo da biografia de um indivíduo possam não corresponder ao (con)viver com limitações impostas por uma doença incapacitante e degenerativa.

Nos termos da Constituição, a “inviolabilidade da vida tem que ver com terceiros, cuja ação contra a vida alheia é coibida, mas não se pode ler o texto constitucional de forma a proibir que qualquer pessoa decida sobre a duração de sua vida”.

Com isso, pretende-se assentar a ideia de que a previsão constitucional acerca da “inviolabilidade” do direito à vida se destina a impedir que as pessoas tenham a sua vida ceifada arbitrariamente. Todavia, não significa que tal direito seja indisponível e que, portanto, as pessoas não possam escolher seus caminhos no que diz respeito à própria vida e à própria morte. (Piovesan e Dias, 2017, p. 67)

3. SUICÍDIO ASSISTIDO

Considerar a antecipação da morte de forma deliberada não é tema recente na história da humanidade, entretanto, na atualidade, tal temática é imbuída de dogmas e estigmas religiosos, assim como questões de moralidade.

Já disponível em mais de dez países como Suíça, Colômbia e, mais recentemente, Portugal (Uda, 2022), o suicídio assistido “é um método no qual o próprio paciente, tomado por uma doença incurável ou em estado terminal, decide por vontade expressa, dar termo a própria vida, fazendo isto com as próprias mãos, causando-lhe uma morte digna e indolor.” (Miranda, Silva e Stigert, 2015, p. 161).

Para que seja consumado, o sujeito ingere algum medicamento letal, fornecido por terceiros, no caso em tela, por médicos que acompanham ou conhecem o quadro de adoecimento vivenciado pelo indivíduo.

Ressalta-se que, em países onde o suicídio assistido é descriminalizado, existem leis e normas rígidas bem estabelecidas. (Castro, et al, 2016; Coutinho, Martinez, 2019).

Quanto aos argumentos favoráveis à prática do suicídio assistido, temos a fundamentação de que apenas o sujeito que vivencia uma doença incurável e progressiva pode dizer o limite de seu sofrimento, seja este de que natureza for, e seu grau de suportabilidade, além dos limites terapêuticos atingidos pela medicina. (Sá e Moureira, 2017)

Nesta seara, a premissa de que a vida é um direito e não um dever, atendendo aos princípios da autodeterminação, o direito de escolha por uma morte digna atingiria o direito à sua antecipação.

“A existência de uma autonomia para morrer pressupõe a compreensão da liberdade do indivíduo moderno [...], trata-se da efetivação de um projeto biográfico que pressupõe a construção, a efetivação e a busca pelo reconhecimento da sua pessoalidade” (Sá e Moureira, 2017, p. 200)

No que tange aos argumentos desfavoráveis, entendem que é dever do Estado garantir a vida a todo o custo, visto ser “vida” um bem jurídico indisponível. (ibidem, 2017)

Existem também narrativas de oposição religiosas, sendo a vida um bem sagrado, apenas disponível a Deus a determinação de seu fim (Coutinho e Martinez, 2019), entretanto, o Estado é laico, ou seja, protege o direito ao exercício religioso, porém, não tem a religião como fonte de leis. (Miranda, Silva e Stingert, 2015).

A morte e o processo de morrer fazem parte da esfera privada, cabendo ao indivíduo a delimitação do que compreende como digno ou não nesse processo, bem como os limites de suportabilidade de sofrimento decorrentes de doenças graves e que lhe aproximam do final da vida e lhe afastam de uma vida que considera digna e minimamente capaz de ser vivida em sua plenitude, visto tratar-se de uma decisão autônoma e não heterônoma, não atingindo a terceiros, mas apenas a figura do indivíduo.

Ao se darem conta da finitude de suas vidas, as pessoas não pedem muita coisa. Não pedem mais riquezas. Não buscam mais poder. Pedem apenas que lhes seja permitido, na medida do possível, continuar moldando a história de suas vidas no mundo, fazer escolhas e manter as ligações com os outros de acordo com suas prioridades. (Gawande, 2015, p. 141)

A recusa de tratamentos prolongadores de sofrimento é direito assegurado e consolidado em nosso ordenamento e o Direito precisa acompanhar a sociedade moderna e as discussões dela decorrentes, de forma a assegurar não apenas a vida com dignidade, mas o morrer com dignidade, de acordo com os ditames da autonomia de cada indivíduo.

Pense-se ou não no assunto, deixar de morrer não é uma escolha possível. Mas viver com plenitude a vida até o seu fim e, então morrer, de forma digna sim. [...] O que confere dignidade é olhar para o ser humano que existe apesar do doente, independente do doente; o ser humano que é quem vive e quem morre. [...] O momento em que, mais do que nunca, é preciso lutar sim, mas pela melhor vida que se puder ter – até o seu fim. Pelo presente, e não pela ilusão de um futuro. (Araújo e Magalhães, 2021, p. 306)

DA INSTIGAÇÃO, DO INDUZIMENTO E DO AUXÍLIO AO SUÍCIDIO COMO CONDUTA TÍPICA NO ORDENAMENTO BRASILEIRO

Dispõe o Código Penal Brasileiro, em seu artigo 122:

Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação   

Art. 122. Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou a praticar automutilação ou prestar-lhe auxílio material para que o faça:

Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos.   

§ 1º Se da automutilação ou da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, nos termos dos §§ 1º e 2º do art. 129 deste Código:   

Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.   

§ 2º Se o suicídio se consuma ou se da automutilação resulta morte:    

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.   

§ 3º A pena é duplicada:   

I - se o crime é praticado por motivo egoístico, torpe ou fútil;   

II - se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência.   

§ 4º A pena é aumentada até o dobro se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social ou transmitida em tempo real

§ 5º Aumenta-se a pena em metade se o agente é líder ou coordenador de grupo ou de rede virtual.

§ 6º Se o crime de que trata o § 1º deste artigo resulta em lesão corporal de natureza gravíssima e é cometido contra menor de 14 (quatorze) anos ou contra quem, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência, responde o agente pelo crime descrito no § 2º do art. 129 deste Código.  

§ 7º Se o crime de que trata o § 2º deste artigo é cometido contra menor de 14 (quatorze) anos ou contra quem não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência, responde o agente pelo crime de homicídio, nos termos do art. 121 deste Código. 

Trata-se de um crime doloso contra a vida que merece devido aprofundamento. A conduta tipificada no delito em questão refere-se ao indivíduo que induz, instiga ou auxilia a suposta vítima a ceifar a própria vida. Não se trata, pois, do indivíduo que, com suas próprias mãos e vontade, executa a morte de outrem, nem do indivíduo suicida, que opta por colocar termo à própria vida.

Nesse sentido, a instigação, como elementar do referido tipo penal, significa suscitar a ideia, sugerir o suicídio. Instigar significa reforçar, estimular, encorajar um desejo já existente. Prestar auxílio, por sua vez, consiste na prestação de ajuda material, que tem caráter meramente secundário (CAPEZ, 2023, p. 310).

Fazendo uma correlação com o suicídio assistido, a única possibilidade de enquadramento típico se daria com a realização da elementar “auxílio”. Isso porque, como explanado anteriormente, o suicídio assistido consiste no método em que um médico – ou qualquer outro profissional ou assistente – fornece os meios necessários para que o paciente, com o seu consentimento e após detalhada deliberação, em casos de doenças crônicas, progressivas ou degenerativas, resolve pôr termo à própria vida. Trata-se, portanto, apenas de um mero auxílio material para a prática suicida, vez que inexiste qualquer instigação ou induzimento ao paciente que já possui plena certeza de sua decisão.

Diferente situação se dá em relação àquele que, ainda que a pedido de outrem, realiza a execução da morte, pondo fim a vida alheia. Nessa situação, não responderá o agente por auxílio ao suicídio (artigo 122), mas por homicídio, previsto no artigo 121 do Código Penal.

Importante esclarecer a tipificação no que se refere à eutanásia. O Código Penal prevê, em seu artigo 121, § 1º, uma causa de diminuição de pena, que será aplicada quando o agente comete um homicídio impelido de relevante valor moral. Segundo Bitencourt (2023, p. 176), relevante valor moral é o valor superior, enobrecedor de qualquer cidadão em circunstâncias normais. Será motivo de relevante valor moral aquele que, em si mesmo, é aprovado pela ordem moral, pela ordem prática, como, por exemplo, a compaixão ou piedade ante o irremediável sofrimento da vítima. Nesse sentido, a eutanásia – também chamada de homicídio piedoso – refere-se à situação em que o agente, envolvido pela situação de grande sofrimento da vítima e, na vasta maioria das vezes, a seu próprio pedido, põe fim à sua vida, para fazer cessar o intenso sofrimento decorrente de alguma doença. Nesses casos, poderá o agente ser beneficiado pela causa de diminuição de pena que se refere o § 1º do artigo 121 do Código Penal. Não se trata, pois, de um fato atípico – como já o é em outros país – mas sim de um crime doloso contra a vida, cuja competência para julgamento, inclusive, é do Tribunal do Júri.

Entretanto, cumpre esclarecer que, para que subsista a tipicidade – como primeiro substrato do conceito analítico de crime – tanto para o delito do artigo 121 quanto para o do artigo 122, ambos do Código Penal, faz-se necessário o preenchimento da tipicidade formal e da tipicidade material.

Entende-se por tipicidade formal a subsunção do fato à norma, ou seja, quando a conduta praticada pelo agente adequa-se com perfeição à descrição abstrata prevista no ordenamento penal. Ainda, segundo Bitencourt (2023, p.105), a tipicidade de um comportamento proibido é enriquecida pelo desvalor da ação e pelo desvalor do resultado lesando efetivamente o bem jurídico protegido, constituindo o que se chama de tipicidade material. Portanto, só há tipicidade quando presentes, na mesma conduta, a tipicidade formal e material. Não basta que o fato se subsuma com perfeição à norma: é necessário averiguar, no caso concreto, se a conduta praticada pelo agente efetivamente lesou o expôs a perigo de lesão o bem jurídico protegido pelo tipo penal. Nesse sentido, é necessário adentrar, ainda que superficialmente, na teoria do bem jurídico penal, para entendermos quais as razões da proteção de um determinado bem por um tipo penal.

Entende-se por bem jurídico penal, segundo Frans Von Liszt (2006, v.1), um valor preestabelecido, de vital relevância, variável de acordo com aspectos determinados de cada sociedade. Em suma, a existência da norma penal refere-se sempre à proteção de valores essenciais à manutenção da ordem social, depreendidos do contexto histórico no qual a sociedade está inserta.

Ora, se o bem jurídico penal é aquilo que está por trás da tipificação e, portanto, nos leva a concluir que é algo que deve ser protegido, sob pena de responsabilização penal, é plausível inferir que, nos casos de doenças crônicas, degenerativas ou progressivas, quando há vontade inequívoca do paciente de pôr termo ao sofrimento, ainda subsiste o bem jurídico a ser tutelado pelo delito de homicídio? Podemos afirmar, nessas circunstâncias, que existe tipicidade material na conduta de quem auxilia um suicídio ou pratica a eutanásia?

Num segundo plano, analisando a ilicitude da conduta como segundo substrato do conceito analítico de crime e, utilizando a tese anteriormente abordada no presente artigo sobre a disponibilidade do bem jurídico vida, far-se-ia possível a aplicação do consentimento do ofendido como causa supralegal de exclusão da ilicitude da conduta e, portanto, da exclusão do próprio crime. Nesse sentido, teríamos uma conduta típica – formal e materialmente. Entretanto, não prosperaria a antijuridicidade da conduta do indivíduo que, a pedido de um paciente em estágio terminal, com doença crônica, degenerativa ou progressiva, possuindo plena capacidade jurídica e mental para a tomada de decisões e com seu livre e espontâneo consentimento, forneça os meios necessários para o encerramento da vida. É plausível concluir que, em determinados casos, analisadas as circunstâncias do caso concreto, a vida, como bem jurídico tutelado pelo ordenamento, não deve ser considerada indisponível a ponto de ferir a autonomia da vontade e a dignidade da pessoa humana. Desse modo, seria possível concluir pela possibilidade de exclusão da ilicitude da conduta pelo consentimento do ofendido.

CONCLUSÃO

Quando se dialoga sobre a dignidade da pessoa humana, não há como fugir à responsabilidade no que tange à discussão da morte com dignidade, haja vista que o fim da vida humana não escapará a nenhum de nós.

Assim, urge ao Direito, protetor de tal direito fundamental garantido pela Constituição Federal, acompanhar a sociedade nas discussões tenentes a tal propositura.

É fato inexorável que a vida humana merece vasta proteção constitucional e penal, tanto em âmbito interno quanto em âmbito internacional. Não se trata, pois, o presente artigo, de uma defesa injustificada da relativização do direito à vida. Pelo contrário: defende-se o direito à vida em seu mais pleno grau de merecimento: uma vida com dignidade e respeito à autonomia da vontade.

De acordo com Bechara (2021), um sistema jurídico que não admite a valoração de suas normas não considera necessário motivá-las a partir de sua racionalidade – pois isso debilitaria a ideia de que basta a vontade do Estado para impô-las – , afastando-se da realidade, o que gera grande preocupação acerca da possibilidade de utilização arbitrária e autoritária do direito como mero mecanismo político de manutenção de poder. O delito não existe por si mesmo em plano natural, vez que uma conduta humana apenas será considerada delitiva a partir da possibilidade de atribuir-lhe um sentido social negativo.

Nesse sentindo, para o princípio da proporcionalidade, quando o custo for maior que a vantagem, o tipo penal será inconstitucional, porque contrário ao Estado Democrático de Direito. Em outras palavras: a criação e manutenção de tipos penais incriminadores deve ser uma atividade compensadora para os membros da coletividade. Com efeito, um direito penal democrático não pode conceber uma incriminação que traga mais temor, mais ônus, mais limitação social do que benefício à coletividade. Somente se pode falar na tipificação de um comportamento humano na medida em que isso se revele vantajoso em uma relação de custos e benefícios sociais (CAPEZ, 2023, p. 604).

Não se trata, ademais, de assegurar apenas uma única possibilidade, a saber, o suicídio assistido, como modo de atingir a morte digna, mas também denunciar o abismo entre a necessidade de pessoas que vivenciam doenças terminais e a falta de acesso e de equipes especializadas em Cuidados Paliativos, sendo urgente a adequação dos currículos das graduações das áreas assistenciais, bem como dever do Estado em garantir o acesso e a devida aplicação de legislações já disponíveis.

Isto posto, é temerário afirmar que o suicídio assistido, como instituto atinente à esfera médica, se dissocia do estudo do direito, uma vez que pode servir, com a devida e séria regulamentação, como um instrumento para a garantia do maior direito de todos, qual seja, a dignidade da pessoa humana. O direito a um fim digno não pode ser extirpado em prol da manutenção de uma vida indigna, tomada por sofrimento e não querida, desconsiderando por completo a autonomia da vontade e a dignidade da pessoa humana. Assim como todos os bens jurídicos do ordenamento, levando em conta sua (in) disponibilidade, se faz necessário realizar um juízo de valor e ponderação no caso concreto, e não apenas taxar um direito como absoluto e indisponível, desconsiderando as peculiaridades de cada caso. Além disso, a esfera penal, como ultima ratio, deve adentrar apenas nas situações em que exista efetivamente um bem jurídico passível de proteção, o que, para nós, não ocorre nos casos em que seria permitido – de acordo com a legislação dos países que já permitem a prática e os requisitos trazidos no presente artigo – o suicídio assistido.

Ademais, não é razoável a confusão entre convicções religiosas e direito. O Brasil, apesar de ser um Estado Laico, está imbuído em crenças e religiosidade. Tal situação é digna e, inclusive, merece a devida proteção legal e constitucional. Entretanto, justamente pelo sustento da própria laicidade estatal, não é plausível a imposição de certas proibições em razão de alguma dessas crenças. Cada indivíduo, como ser único que é, possui direito – respeitando seus dogmas – de realizar ou não realizar alguma conduta, de acordo com sua íntima convicção e obedecendo àquilo que crê. Porém, isso não pode justificar uma imposição a todos os indivíduos, que também possuem o direito de terem suas respectivas crenças ou simplesmente não terem crenças religiosas.

Na democracia contemporânea a função do Direito não se sustenta sob uma perspectiva meramente funcional, mas pressupõe a geração legítima, garantida normativamente, de um fluxo comunicativo capaz de respaldar a validade do Direito enquanto instrumento garantidor de iguais liberdades fundamentais.

Assim, se a morte configurar como uma possibilidade no processo de construção da pessoalidade, ela deve ser levada em consideração não como uma afronta ao direito à vida, mas como uma realização de um projeto de vida-boa de um destinatário ou coautor do Direito que busca a realização de sua própria individualidade. (Sá e Moureira, 2017, p. 213)

Desse modo, concluindo pela disponibilidade do bem jurídico “vida”, em casos excepcionalíssimos onde o direito à autonomia da vontade e da dignidade da pessoa humana se sobressaem em relação à própria vida, seria possível, em tese, a aplicação do consentimento do ofendido como causa supralegal de exclusão da ilicitude.

A vida é íntima e, a despeito do que se prega como regra, a morte não é sua antagonista. Tem seu início, com o nascimento, e o seu fim, com a morte. Assim, como para o nascimento há o direito de se planejar e se escolher como e onde deve ocorrer, por que à morte tal direito é negado?

Quem e o que deve balizar o que é sofrimento e até onde este deve ser tolerado, quando é a vida de um terceiro que é atingida por uma doença crônica e progressiva, que apesar de toda tecnologia disponível, terá como único desfecho a morte?

Ademais, que vida o direito deve proteger? A vida biológica, onde temos como marcadores de sua existência parâmetros visíveis em um monitor através de sinais vitais, ou a vida biográfica, onde o indivíduo, através da sua autonomia e de seus valores, compreende-se como ser alguém no mundo e os limites de sua existência?

Tal discussão é vasta e atinge não apenas a esfera da saúde e do Direito e o intuito final deste artigo não é encerrar tal temática, mas trazer luz ao direito da morte digna. Citando Hannah Arendt, o primeiro direito de um indivíduo é o direito a ter direitos.

Sobre as autoras
Beatriz Bullo

Delegada de Polícia do Estado de São Paulo. Possui graduação em Direito pela Universidade Santa Cecília (2020), especialização em Direito Processual Civil (2021), em Direito do Consumidor (2022) e em Direitos Humanos (2022). Foi advogada (2020-2023) e professora de Direito Penal Parte Geral, Direito Penal Parte Especial, Legislação Penal Especial e Ética Profissional da Faculdade de São Vicente/UNIBR (2022-2024).

Bruna Louise de Godoy Macedo

Psicóloga Clínica e Hospitalar. Membro Fundador da Academia Brasileira de Bioética Clínica. Especialista em Psicologia Hospitalar. Especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental. Especialista em Cuidados Paliativos e Terapia da Dor. Graduanda em Direito.︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Beatriz Bullo; MACEDO, Bruna Louise Godoy. Suicídio assistido: pode o direito se valer do consentimento do ofendido como causa supralegal de exclusão da ilicitude para a defesa da dignidade da pessoa humana?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7513, 26 jan. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/108124. Acesso em: 2 nov. 2024.

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