RESUMO
O presente artigo pretende, através de uma reconstrução da relação que se estabelece entre interesses e direitos, apresentar uma construção teórica consciente do chamado giro lingüístico, superando assim as teorias semânticas que ainda imperam no direito moderno. Nessa perspectiva a clássica diferenciação entre direitos e interesses somente se justifica em uma perspectiva jurídica ainda filiada ao Utilitarismo e inconsciente das conquistas do giro lingüístico operado pela Filosofia e pelo Direito. Desse modo, a divisão entre direitos/interesses – como tanto ainda defendem os juristas tradicionais – como individuais, coletivos, difusos, etc., apenas pode se dar diante de cada caso concreto e nunca como uma categoria anterior constatada em abstrato.
PALAVRAS-CHAVE:Direitos/Interesses; Utilitarismo; Linguagem jurídica e compreensão pragmática do direito.
Podem-se encontrar longas discussões na dogmática jurídica sobre a relação entre direitos e interesses; todavia, a maior parte delas compartilha de uma mesma base político-filosófica comum: o Utilitarismo.
De modo geral, o termo "utilitarismo" designa a doutrina segundo a qual o valor supremo é a utilidade, isto é, a doutrina segunda a qual a proposição "x é valioso" é considerada como sinônima da proposição "x é útil". O utilitarismo pode ser uma tendência prática ou uma elaboração teórica, ou ambas as coisas a um só tempo. Como tendência prática pode ser o resultado do instinto (em particular do instinto da espécie), ou conseqüência de um certo sistema de crenças orientadas para as convivências de uma comunidade dada ou manifestação de uma reflexão intelectual. Como elaboração teórica pode ser o resultado da justificação intelectual de uma prévia atitude utilitária, ou a conseqüência de uma pura teorização sobre os conceitos fundamentais éticos e axiológicos, ou as duas coisas ao mesmo tempo (FERRATER MORA, 2001:2959-2960).
Como lembra Maciel Júnior (1996:27), um dos precursores desse debate foi Bentham. [01] Toda a teoria de Bentham apóia-se em dois conceitos situados em lados opostos: dor e prazer; esses conceitos apontariam a direção da ação humana correta, isto é, aquela que busca escapar da dor e alcançar sempre o máximo de prazer possível (princípio da utilidade). [02] Assim, não importa a distinção entre interesse individual e de uma coletividade, pois a segunda apenas é o somatório dos diversos interesses que integram a sociedade. [03] Logo, para buscar o interesse da coletividade, basta buscar o interesse que representa a busca de prazer conforme a concepção majoritária dos indivíduos daquela coletividade. [04] Para tanto, o pensador inglês propõe um cálculo de prazeres e dores a partir dos seguintes critérios: intensidade, duração, certeza ou incerteza, proximidade ou distanciamento, fecundidade e alcance, isto é, o número de pessoas afetadas (BENTHAM, 1979:16-18; FERRATER MORA, 2001:4:2960). A felicidade, como fim máximo do utilitarismo, depende do emprego de dois meios: "[...] a razão porque o método desenvolvido não será o apelo à história, ao preconceito ou ao hábito; e o direito porque o projeto é um projeto político [...]" (HARRISON, 2002:627).
Outro autor, também afiliado às bases do utilitarismo, foi Ihering. A lei, como lembra Maciel Júnior (2004:5), para aquele autor, não estava ligada à restrição da liberdade individual, mas antes ao estabelecimento de um equilíbrio entre o princípio individualista e o social. [05] Dessa forma, Ihering estruturou todo o seu pensamento para afirmar que toda norma deve ser dirigida a um determinado fim ou motivo prático. Todavia, não foi possível ultrapassar os limites do pensamento empirista, de modo que essa idéia de fim "era extraída empiricamente do mundo dos fatos, de uma espécie de causa a que se dá o nome de causa final, e não de uma oposição entre o ideal e a realidade" (MACIEL JÚNIOR, 2004:6). Um direito, então, não estava ligado à idéia de uma vontade jurídica abstrata, mas à garantia dos interesses da vida humana: é daí que deriva a famosa frase de que direitos são interesses juridicamente protegidos. Logo, ligada à idéia de direito, ter-se-ia a idéia de bem ou valor, expressando a medida da utilidade daquele direito.
Todavia, além do pensamento utilitarista, em Ihering, já podem ser encontrados traços do pensamento orgânico – de matriz derivada do positivismo sociológico. O Organicionismo compreende as comunidades políticas como um "todo vivo", no qual os indivíduos desempenham papéis semelhantes a um órgão dentro do corpo humano. Assim, há uma completa rejeição da compreensão liberal, no sentido da supervalorização do público. Muitas vezes, esse público é identificado com o Estado, muito por influência do pensamento de Hegel. [06] Durkheim parece ser outro influente pensador dessa tradição. O positivismo sociológico reconhece a hegemonia da sociedade sobre o indivíduo partindo do seguinte raciocínio: a sobrevivência do todo tem prevalência sobre a da parte. O indivíduo é, então, despido de suas características básicas: razão e liberdade (FREITAG, 1989:17). Isso porque o método sociológico se propõe – como forma de garantia da objetividade – a compreender os fatos sociais como coisas externas à vontade e à consciência dos indivíduos, dotados de existência própria.
Na leitura de Adorno, Durkheim não só idealiza a sociedade à semelhança do que Hegel fizera com o Estado, mas a deifica. A sociedade passa a ser a origem e o princípio regulador de toda a vida individual e social, científica e moral, a razão de ser, o árbitro e a finalidade última de toda ação humana, individual e coletiva. Ela representa o saber religioso, moral e científico conjugados. É onisciente e onipotente, em suma, a própria obra de Deus, a materialização e o coroamento de toda a criação, de todo o mundo da natureza (FREITAG, 1989:19).
Logo, a sociedade não pode ser compreendida como um mero somatório das vontades individuais, pois apresentaria um sentido próprio, o qual os indivíduos seriam incapazes de compreender. Em termos jurídicos, importante lembrar a tese da "cláusula da comunidade" como forma de dar primazia ao que se considerava interesse público.
Na Alemanha, o Tribunal Federal Administrativo (Bundesverwaltungsgericht) elaborou, na década de 50 do século passado, doutrina que ficou conhecida como teoria da ‘cláusula da comunidade’, segundo a qual a proteção dos direitos fundamentais cessaria quando o exercício destes direitos ameaçassem bens jurídicos da comunidade. Esta teoria foi, no entanto, severamente criticada pela quase unanimidade da doutrina, e acabou sendo revista. Dizia-se que ela abria ampla possibilidade para abusos e arbitrariedades, em razão do seu caráter vago e indeterminado, pondo os direitos fundamentais à disposição dos Poderes Públicos. Ademais, argumentava-se, com razão, que ela degradava os direitos fundamentais, na medida em que permitia o seu sacrifício em nome de interesses da coletividade que muitas vezes sequer possuíam estatura constitucional (SARMENTO, 2005:87-88). [07]
Por outro lado, o Utilitarismo, como já visto, compreende que a melhor solução dos problemas político-sociais envolve a promoção, em maior escala, dos interesses dos membros da sociedade. Trata-se de buscar alcançar o maior nível de satisfação (felicidade) para os membros da sociedade. Logo, a ação política ou moral correta é aquela que atinge esse fim. Todavia, o Utilitarismo reconhece que pessoas tenham interesses diversos e até mesmo conflitantes; como então proceder?
[...] nesses casos, deve-se atribuir um peso igual aos interesses de cada um, na busca da solução mais justa. Assim, justifica-se o sacrifício dos interesses de um membro da comunidade sempre que este sacrifício for compensado por um ganho superior nos interesses de outros indivíduos (SARMENTO, 2005:61).
Mas isso se mostra profundamente problemático, já que essa tradição não pretende ler adequadamente os direitos fundamentais – como direitos acima das preferências majoritárias – de modo que podem ser modificados conforme o sabor das conveniências do mercado político, servindo apenas como direitos se garantirem a felicidade e o bem-estar geral de um maior número de pessoas.
Maciel Júnior (2004:22) lembra que, contemporaneamente, a compreensão existente da relação entre direitos e interesses ainda é uma derivação do pensamento de Bentham e de Ihering. Isso tem levado a uma assimilação dos dois institutos sem uma devida distinção. Assim, segundo os parâmetros traçados pela dogmática jurídica, existiriam diversos desdobramentos na classificação dos interesses. Os interesses (ou direitos) individuais representam uma limitação à ação do Estado, no sentido de uma abstenção para que os indivíduos assumam suas próprias escolhas. No campo dos interesses individuais, Maciel Júnior (2004:11), citando Mancuso, [08] iguala-os ao interesse do sujeito particular – seria o interesse cuja fruição estaria restrita ao círculo do seu destinatário, de modo a somente ele sofrer seus efeitos ou se beneficiar dos encargos assumidos. O Código de Defesa do Consumidor (art. 81, III) destaca uma derivação do interesse individual, qualificando-o como interesse individual homogêneo, que, nesse caso, não seria um interesse propriamente coletivo na essência, mas decorrente de uma origem comum, em razão de uma mesma base jurídica compartilhada.
Em contraposição ao interesse (ou direito) individual, posicionar-se-iam os interesses (ou direitos) públicos, que, segundo Maciel Júnior (2004:12), representariam os interesses pertinentes à própria sociedade representada pelo Estado. Mas esses não se confundiriam com os chamados interesses (ou direitos) coletivos, uma vez que essa última categoria é representada pelos interesses comuns aos indivíduos existentes na sociedade. Seriam os interesses compartilhados por um grupo determinado de indivíduos, como por exemplo, uma associação ou categoria sindical. [09]
Por fim, os interesses (ou direitos) difusos comporiam uma outra categoria, cuja origem é explicada através das necessidades da sociedade moderna de "massa". [10] Lembrando Cappelletti e Garth (1988:26), tratar-se-iam de interesses tão fragmentados e pulverizados que ninguém poderia se declarar seu titular exclusivo, já que os titulares seriam todos, simultaneamente. Além da pluralidade de titulares indeterminados, essa categoria traz um objeto de interesse que é por essência indivisível (MACIEL JÚNIOR, 2004:20). Essa leitura serviu de base epistemológica no curso da produção do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), que trouxe uma definição dessas categorias, igualando direitos e interesses:
Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.
Todavia, essa leitura acaba por suscitar alguns problemas: (1) será que direitos podem ser igualados com interesses ou, como faz a dogmática jurídica por influência de Ihering, com bens?; e (2) será que a distinção entre as categorias de direitos pode-se apoiar adequadamente em uma compreensão semântica do Direito? Um ponto de partida é estabelecido por Maciel Júnior:
[...] Ihering trabalha com dois conceitos diferentes e que nunca poderiam ter sido confundidos. Se os interesses são a manifestação da vontade que vincula um sujeito a um bem, isso significa que os interesses são pertencentes à esfera privada, particular do indivíduo, que exterioriza uma vontade. Já os direitos seriam outra coisa, um outro momento (2004:24).
Nessa ótica, os direitos são um momento posterior aos interesses. A afirmação de um direito dá-se a partir de um processo institucional: seja tomando consciência do consenso da sociedade sobre sua existência, caracterizado pelo processo legislativo; seja através do processo judicial, que reconhece a existência do direito dentro da história institucional daquela sociedade. Todavia,
[o] equívoco metodológico de Ihering consistiu em pressupor que o interesse somente teria importância para o direito a partir do momento em que houvesse a previsão legal de tutela desse interesse. O interesse que importaria ao direito seria um interesse juridicamente tutelado, ou seja, um direito. Não haveria, segundo essa concepção, a razão para a diferenciação ontológica entre interesses e direitos (MACIEL JÚNIOR, 2004:25).
Interesses, então, seriam elementos anteriores aos direitos. Justamente porque existe um consenso dentro sociedade sobre quais interesses extrapolam o limite do particularismo individual, ter-se-á um direito. Logo, todo interesse juridicamente protegido é, por conseqüência, um direito; e, por isso mesmo, possui natureza pública – e isso se pode observar, por exemplo, já em Kelsen. Em outras palavras: todo direito traz em si uma questão pública e, por isso mesmo, de interesse público.
Além disso, uma questão deve ser pormenorizada: interesse, como reconhece Maciel Júnior (2004:28), traz um conteúdo axiológico, diferentemente dos direitos, como lembra Habermas (2002), que são dotados de uma natureza deontológica. Assim, interesses são expressão de uma preferência (a partir de valores e de fins) do sujeito, ao passo que direitos são referência à correção de uma determinada ação. Desse modo, a mesma crítica, iniciada à compreensão de direitos como valores, repete-se aqui e demonstra a necessidade de reconstrução do direito a partir de novas bases epistemológicas – o que será objeto dos capítulos seguintes da presente pesquisa.
Ilustrando a questão, tem-se o posicionamento de Sarmento (2005:110): os direitos individuais não podem se confundir com interesses privados. Pode-se tomar, como exemplo, o direito de liberdade ou de locomoção. Enquanto para Alexy (1997), haveria sempre um direito geral de liberdade, que sempre entraria em confronto com as restrições pelo Poder Público, inflacionando assim o conceito de direito (e principalmente o de direito fundamental); [11] a proposta de Dworkin (2002; 2001) apresenta-se mais razoável. "Parafraseando Dworkin, podemos dizer que [prima facie] não há um direito fundamental a percorrer a Av. Rio Branco, no Rio de Janeiro, ou a Av. Paulista, em São Paulo, na contramão" (SARMENTO, 2005:110). É por isso que ele procede (2002; 2001) à busca de uma leitura mais adequada para a pergunta "temos um direito à liberdade?", feita por Thomas Jefferson. Por exemplo, ao invés de vislumbrar um conflito entre igualdade e liberdade – o que por sinal parece ser comum em diversos juristas [12] – o professor de Oxford empreende uma leitura que integra ambos os conceitos (DWORKIN, 2005).
Nessa linha, já se pode vislumbrar que cai por terra o argumento a favor de um requisito de admissibilidade recursal específico para os recursos destinados aos Tribunais Superiores que se paute pelo critério interesse privado/público, como fator de seleção de causas para julgamento. Como já foi observado, toda lesão (ou ameaça de lesão) a direito já traz em si uma questão de interesse público.
Em busca da resposta à segunda pergunta identificada, ou seja, se as distinções entre as categorias de direitos podem-se apoiar em uma compreensão semântica do Direito, tem-se a importante conclusão a que chega Cattoni de Oliveira (2003:132): "propomos compreender a distinção entre direito individuais, coletivos, direitos sociais e direito difusos como uma distinção lógico-argumentativa". [13] Isso porque o sistema de garantias processuais pátrio foi estruturado de maneira que o meio coletivo não representa uma ameaça à defesa individual de direitos; não podendo, portanto, ser valorado como superior ou mais eficaz. [14]
Logo, o que se quer entender como direitos individuais (o que inclui os direitos individuais homogêneos), direitos coletivos e direitos difusos não deve obedecer a uma interpretação literal (semântica), como feita no texto do art. 81 do CDC, mas antes através de uma reconstrução discursiva no curso do processo jurisdicional (discurso de aplicação).
Conforme o caso, por exemplo, o direito ao meio ambiente saudável pode ser tratado argumentativamente como questão interindividual de direito de vizinhança, como condições adequadas de trabalho de uma categoria profissional ou, até mesmo, como direito das gerações futuras: depende da perspectiva argumentativa, se individual, coletiva, social ou difusa de quem o defende em juízo (CATTONI DE OLIVEIRA, 2003:137). [15]
Por isso mesmo, a presente investigação concorda com a proposta que será levantada por Dworkin e Habermas no sentido do abandono das "teorias semânticas da interpretação", isto é, das teorias que buscam
[...] fixar abstratamente e fora do contexto de aplicação a extensão do sentido dos textos normativos. Isso implica não somente abandonar uma teoria material do Direito, como também uma teoria estrutural das normas jurídicas que pretende fixar a interpretação adequada dos textos normativos à base da sua "literalidade" ou da sua "topografia textual" (CATTONI DE OLIVEIRA, 2003:137).
Dessa forma, mostra-se essencial uma proposta de reconstrução do Direito a partir de outra luz, levando em conta a necessidade de reconhecimento e integração teórica da dimensão pragmática, já evidenciada pelo movimento do giro lingüístico.
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