Passados mais que 17 (dezessete) anos, voltei a um texto que escrevi quando cursava o Mestrado em Direito.
Foi uma época de grande aprendizado.
Tive o privilégio de aprender com grandes professores, aos quais sou eternamente grato.
Meus mestres me apresentaram vários autores, pessoas que deixaram obras de fôlego, perenes. A elas sempre e invariavelmente retorno, seja para redigir uma petição, seja para escrever um artigo acadêmico.
É imprescindível, creio eu, ler os clássicos da literatura mundial e não apenas livros jurídicos - mais notadamente aqueles voltados à área específica de atuação.
Os professores me ensinaram a fazer pesquisa científica [mediante a estrita observância de método científico] de forma mais profunda, densa e robusta, visando a contribuir para o debate acadêmico.
Nunca me esqueci que o objeto cognoscível sempre está ao alcance do sujeito cognoscente.
A pesquisa acadêmica jamais chegará a um resultado absoluto, a um resultado que não pode ser alterado, porquanto precário, provisório. Amanhã pode haver outro resultado.
A cognição não é exauriente.
Foi um período denso, cansativo, de estafa mental, mas de maravilhosas descobertas e de muito aprendizado, conforme ressaltei.
Naquele tempo de estudo, um pensador, em especial, me chamou a atenção: Michel de Montaigne.
Após a aula do prof. Dr. Luís Fernando Lopes Pereira a respeito do ensaísta, imediatamente adquiri “Os Ensaios”. Tenho a data da aula gravada na memória: 21/10/2006.
Fiquei bastante curioso, queria saber a linha de pensamento de Montaigne, quais eram suas fontes de referência e assim por diante. Enfim, queria conhecer um pouco mais o pensador. Hoje, penso que conheço um pouco.
Confesso que a partir da leitura dos três volumes, mudei minha maneira de pensar a respeito de várias questões.
Foram exatos 12 (meses) lendo os três volumes dos Ensaios.
Cada filósofo citado por Montaigne fazia com que eu simplesmente deixasse o livro de lado e fosse atrás dos estóicos, dos epicuristas, dos céticos e assim por diante.
Afinal, foram lidos mencionados por Montaigne e eu queria saber qual era a linha de pensamento de cada um. Algumas frases de tais pensadores estão nas vigas da biblioteca do castelo
A pesquisa sobre os autores citados pelo ensaísta nunca chegou ao fim.
A respeito de Montaigne escrevi um pequeno texto no início de 2007; republiquei em 2020 e a ele retorno.
Sempre que possível, cito Montaigne, Sêneca, Epicteto, Marco Aurélio e muitos outros nas petições que redijo.
Após razoável tempo, reli o meu pequeno escrito [aquele do início de 2007].
Entendi prudente acrescentar algumas reflexões, até porque aquele simples e despretensioso texto se mostra atual, a meu ver.
Os tempos pós-modernos são de informação, da tecnologia acentuada, intensa, quiçá da ausência de tempo para uma simples leitura dos clássicos.
A “sociedade do espetáculo” (mais um que me foi apresentado: Guy Debord), tem traços bastante firmes e coloração vibrante.
Em Michel de Montainge inexiste julgamento absoluto, jamais. Em alguns momentos de sua escrita impera o ceticismo.
Ao tomar da pena e molhá-la na tinta da temperança, acentua que a verdade e a razão são comuns a todos, e não pertencem a quem as disse primeiramente mais do que a quem as diz depois2.
Ao contrário de Descartes, cujas ideias são centralizadas na certeza, na racionalidade crítica iluminista, Montaigne se mostra homem prudente, de bom senso, moderado, de equilíbrio e ponderação ao analisar suas experiências e o seu próprio tempo.
A partir de 1572, quando deu início à escrita de sua obra, o pensador expõe com clareza que é necessário ao homem se afastar do júbilo constante; que não tenha visão turva a respeito das pessoas e dos fatos.
Prudência, moderação e equilíbrio!
Montaigne, ao contrário dos ideários cartesianos, tinha o espírito renovado e ávido, totalmente despido de ortodoxia, a fim de melhor se conhecer e continuar na busca incansável pelo saber.
Seu espírito era aberto, sempre à espera de novas respostas aos questionamentos diários. Montaigne tem apreço ao bom senso e à temperança.
A torre do castelo se tornou o lugar preferido para leitura, reflexão e escrita; a pena e a tinta se tornaram companheiras inseparáveis de Montaigne; sua vasta biblioteca era o referencial teórico utilizado para a escrita da obra perene.
Homem de sensatez ímpar e prudência redobrada no trato das coisas [e das opiniões a respeito dos homens], assevera que a sinceridade e a verdade pura, em qualquer época que seja, inda têm aplicação e curso3.
O ideário montaigniano é no sentido de que suas ideias, crenças e valores não são absolutos, jamais. O próprio título da obra em comento já sugere que nada é permanente, eterno, perpétuo, até mesmo porque nenhum homem soube nem saberá nada de certo4.
Os três volumes primorosos se tornam mais do que modernos, porquanto apresentam diversidade de temas [com inclinação dialética], que inclusive são do interesse do jurista do século XXI.
Extrai-se o seguinte fragmento da obra referenciada: Saber de cor não é saber: é conservar o que foi entregue à guarda da memória. Do que sabemos efetivamente, dispomos sem olhar para o modelo, sem voltar os olhos para o livro. Desagradável competência, a competência puramente livresca! Espero que ela sirva de ornamento, não de fundamento, segundo o parecer de Platão, que afirma que a firmeza, a honradez, a sinceridade são a verdadeira filosofia, enquanto as outras ciências e que visam alhures são apenas ouropéis5.
É de se ter a consciência hermenêutica, defendida por Paolo Grossi6.
Assevera o insigne pensador italiano que o jovem jurista não pode eximir-se da tarefa de ampliar seu olhar num momento de crise das fontes de produção jurídica como a atual, perturbadora mas, ao mesmo tempo, muito fértil para que não tenha temor do novo7.
O discurso jurídico há de ser pautado dentro da ética e da legalidade, apresentando-se argumentos jurídicos plausíveis e agir de forma técnica.
Aliás, escreve Montaigne: não faço o erro comum de julgar um outro de acordo com o que sou. Dele aceito facilmente coisas que diferem de mim8 . E o mesmo filósofo vai mais além, ao afirmar que aprecio as naturezas equilibradas e moderadas. A falta de moderação, mesmo para com o bem, não se me choca, espanta-me e causa-me dificuldade para batizá-la9.
Importante que o jurista moderno [ou pós-moderno, se assim se entender] observe a hemenêutica jurídica [Gadamer e Heidegger]; é de se varrer definitivamente a filosofia da consciência e afastar-se da síndrome de Abdula, referida por Lenio Streck10.
Só assim haverá o resgate do Direito na sua amplitude, tal como busca o saudoso jurista Paolo Grossi.
Os Ensaios – Livro I. São Paulo: Martins Fontes Editora, 2002, p. 227.︎
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Os Ensaios – Livro III. São Paulo: Martins Fontes Editora, 2001, p. 7.︎
Os Ensaios – Livro I, cit., XCV.︎
Os Ensaios - Livro I, cit., p. 228.︎
Primeira lição sobre o direito. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006, p. 99. Tradutor Ricardo Marcelo Fonseca.︎
Op. cit., p. 89.︎
Os Ensaios – Livro I, cit., p. 342.︎
Os Ensaios – Livro I, cit., p. 295.︎
Hermenêutica jurídica e(m) crise. Uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 3ª edição. 2001.︎