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Abuso infantil por meio virtual: a possibilidade e as características do estupro virtual de vulnerável

RESUMO: O célere desenvolvimento tecnológico na sociedade contemporânea gerou a ampliação dos meios executórios delitivos, alterando a forma pela qual os crimes se manifestam no campo fático. Nesse cenário, o presente trabalho possui o objetivo de analisar a possibilidade e as características de cometimento do crime de estupro virtual de vulnerável. Para tanto, empregou-se o método de pesquisa dedutivo, partindo-se do estudo do contexto histórico-normativo em que as crianças e os adolescentes estão inseridos e dos elementos do tipo previsto no art. 217 – A, do Código Penal, à análise de recentes decisões jurisprudenciais sobre o tema. Concluindo-se, portanto, que é plenamente possível a configuração dos atos libidinosos praticados por meio virtual, envolvendo menores de 14 (quatorze) anos, no delito do art. 217-A, do Código Penal.

PALAVRAS-CHAVE: Estupro Virtual de Vulnerável. Atos Libidinosos Virtuais. Crianças e Adolescentes. Direito Penal.

CHILD ABUSE THROUGH VIRTUAL MEDIA: POSSIBILITY AND CHARACTERISTICS OF VIRTUAL RAPE OF VULNERABLES

Abstract: The swift technological development in contemporary society has generated the expansion of criminal enforcement means, changing the way in which crimes manifest themselves in the factual field. In this scenario, the present work aims to analyze the possibility and characteristics of committing the crime of virtual rape of vulnerable person. To this end, the deductive research method was used, starting from the study of the historical-normative context in which children and adolescents are inserted and the elements of the type provided for in art. 217 – A, of the Penal Code, to the analysis of recent jurisprudential decisions on the subject. Concluding, therefore, that it is fully possible to configure libidinous acts carried out through virtual means, involving minors under 14 (fourteen) years of age, in the offense of art. 217-A, of the Penal Code.

KEYWORDS: Virtual Rape of Vulnerable. Virtual Libidinous Acts. Children and Adolescents. Criminal Law.

1 INTRODUÇÃO

No decorrer do desenvolvimento histórico, o advento tecnológico foi responsável por profundas alterações no comportamento da espécie. Como exemplo, é possível retomar o domínio do fogo, que permitiu a expansão da dieta humana e possibilitou novas interações com o ambiente, até a invenção da pólvora, que proporcionou os espetáculos dos fogos de artifício, porém culminou com a sangrenta criação das armas de fogo. Nesse viés, os avanços da tecnologias, enquanto símbolos notáveis da capacidade criativa humana, ao passo que criam luzes e benefícios para a coletividade, são também responsáveis por gerar perigosas trevas, que desafiam as instituições sociais.

Tal cenário de contradição também se fez presente a partir do desenvolvimento das ciências da computação, da internet e dos computadores, que possibilitaram a construção do chamado espaço virtual ou ambiente digital. Ou seja, em razão da ascensão de tais tecnologias, verificou-se a maximização das potencialidades humanas em diversas áreas, porém, igualmente, houve a ampliação dos meios de execução delitiva.

Nesse sentido, passou-se a se observar o cometimento de diversos crimes no ambiente digital, muitas vezes, instigados por uma ilusão de impunidade e pela facilitação no estabelecimento de contato com vítimas de diferentes localidades.

Dessa forma, tornou-se necessário que o Estado voltasse cada vez mais sua atenção à tutela do espaço virtual, especialmente, no que se refere à análise de quais condutas virtuais deveriam estar sujeitas à incidência do Direito Penal, além da questão da tipificação das práticas virtuais, que também se fazem presentes no que se refere aos crimes contra a dignidade sexual das crianças e dos adolescentes, sobretudo, em relação ao delito previsto no art. 217 – A, do Código Penal (Estupro de Vulnerável).

Portanto, nessa esteira, destaca-se, ainda, que o exame dos casos de incidência dos delitos envolvendo as crianças e os adolescentes se configura como uma problemática de fundamental relevância, tendo em vista a violência histórica que tal grupo foi vítima e a especial estrutura normativa de proteção que estão sujeitos no ordenamento jurídico brasileiro.

2 A ESTRUTURA NORMATIVA DE PROTEÇÃO DOS INTERESSES DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO BRASIL

Os dispositivos jurídicos que visam a salvaguarda dos interesses das crianças e dos adolescentes no Brasil foram desenvolvidos a partir de um longo processo de estruturação da defesa dos menores nas sociedades ocidentais. Nesse sentido, analisar-se-á o movimento sociojurídico da violência legalizada, presentes nas sociedades antigas, à proteção integral, presente na sociedade brasileira.

2.1 A evolução histórica da valorização da segurança na infância e juventude

No decorrer do desenvolvimento histórico, os corpos das crianças e dos adolescentes foram, sistematicamente, objetos de exploração e abusos. Tal cenário se desenvolveu, principalmente, em razão da condição de vulnerabilidade em que os menores estavam inseridos nas relações de poder das sociedades antigas. Além disso, essa insegurança era agravada em razão da natural condição de desvantagem física, apresentada pelos menores em relação aos adultos, e a total dependência de auxílio em seus primeiros anos de vida.

Nesse contexto, cabe elucidar que as formas de violência que as crianças e os adolescentes eram submetidos variaram em razão do local e da época, porém conservando um contexto de desamparo jurídico. Nesse viés, Azambuja (2006) explica que:

Ao tempo do Código de Hamurábi (1700-1600 a.C.), no Oriente Médio, ao filho que batesse no pai havia a previsão de cortar a mão, uma vez que a mão era considerada o objeto do mal. Também o filho adotivo que ousasse dizer ao pai ou à mãe adotivos que eles não eram seus pais, cortava-se a língua; ao filho adotivo que aspirasse voltar à casa paterna, afastando se dos pais adotivos, extraíam-se os olhos. Em Roma (449 a.C.), a Lei das XII Tábuas permitia ao pai matar o filho que nascesse disforme mediante o julgamento de cinco vizinhos (Tábua Quarta, nº 1), sendo que o pai tinha sobre os filhos nascidos de casamento legítimo o direito de vida e de morte e o poder de vendê-los (Tábua Quarta, nº 2). Na Grécia antiga, as crianças que nascessem com deficiência eram eliminadas nos Rochedos de Taigeto. Em Roma e na Grécia, a mulher e os filhos não possuíam qualquer direito. O pai, o chefe de família, podia castigá-los, condená-los à prisão e até excluí-los da família (AZAMBUJA, 2006, p. 3).

Nessa senda, destaca-se que, em tais sociedades, durante esses períodos, a violência contra menores era legalizada. Ou seja, as ações de abandono, venda, mutilação e assassinato se constituíam como um exercício regular de um direito.

Mais adiante, durante a Idade Média europeia, as crianças eram consideradas como “miniadultos”. Isto é, eram tratadas de forma similar aos adultos em suas obrigações sociais. Assim, desde a tenra idade, as crianças deveriam ser iniciadas em um ofício ou se dedicar aos trabalhos agrícolas. Porém, essa instrumentalização não era acompanhada por um sistema de cuidados e amparos, marginalizando-os no quadro social. Com efeito, em contextos mais graves, os menores eram considerados de forma análoga aos animais, em razão da alta taxa de mortalidade infantil, que dificultava o estabelecimento de fortes laços afetivos entre crianças e adultos (FORMIGONI, 2017).

Posteriormente, é apenas durante a Idade Moderna que emergiram, nas estruturas sociais, tímidas abordagens de proteção das crianças e dos adolescentes. Nesse cenário, a defesa dos menores se confundia com uma noção de “sacramentalização” dos corpos infantis, juntamente com a construção de uma narrativa que constituía os menores como, fundamentalmente, inocentes e livres de corrupção. Ademais, ocorreu um estabelecimento mais profundo de instituições de ensino-vigilância voltadas para “acolher” as crianças e os adolescentes, desenvolvendo-se um maior poder-saber sobre esse grupo social.

Todavia, ainda nesse momento, não houve a constituição de um sistema jurídico-social de proteção dos menores, sendo esses ainda submetidos às arbitrariedades do chefe da família. Assim, essa situação se acentuou com o advento da industrialização ocidental, que agravou os contextos de labor infantil e precariedade social. Em suma, no campo prático, no que pese as luzes espalhadas pelo Iluminismo na sociedade ocidental, as crianças e os adolescentes foram deixados à mercê das sombras.

Em paralelo, o Brasil, nesse período, ainda se encontrava em construção e, apesar do elevado sincretismo entre as sociedades conquistadoras europeias com os povos originários e aqueles trazidos como escravos do continente africano, a sociedade brasileira acabou por reproduzir o contexto de violência praticada contra os menores nas metrópoles. Nesse cenário, também não se estruturaram instituições ou sistemas jurídicos que visassem, efetivamente, a assistência das crianças e dos adolescentes, situação essa que só começaria a se alterar depois de séculos de abusos.

Nessa acepção, foi somente no período de transição da Idade Moderna para a Idade Contemporânea, que ocorreu a aceleração do desenvolvimento das estruturas de valorização da segurança na infância e juventude. Nesse contexto, Roudinesco (2008) esclarece como se deu o aumento dessa proteção:

Foi justamente em razão de ser apontada pelos sexólogos do fim do século XIX como depositária de uma sexualidade perigosa — isto é, perversa, autoerótica, polimorfa —, que a criança pôde então beneficiar-se de uma proteção especial. Não sendo mais criaturas passivas, os filhos da sociedade burguesa, fossem meninos ou meninas, não precisavam mais ser iniciados sexualmente por um professor: nem em nome da libertinagem, nem em virtude de uma pedagogia qualquer. Como consequência, o pedófilo — e em especial o pedófilo incestuoso, isto é, aquele que seduz sexualmente a criança que ele próprio engendrou — tornou-se progressivamente o mais perverso dentre os perversos: agente de uma iniciação infame. Símbolo do horror, será condenado em nome da ciência, em certos países da Europa e da América, a renunciar, por meio de emasculação ou castração química, ao órgão de seu gozo, suplantando, como esteio do ódio público, o homossexual (ROUDINESCO, 2008, p. 68).

Desse modo, a partir da construção da noção social de que os menores erão sujeitos detentores de sexualidade, que se desenvolveu a necessidade uma defesa ativa. Isto é, entendeu-se que não bastava adotar uma postura de tutela passiva em relação às crianças e aos adolescentes, deixando-os desassistidos, uma vez que, assim, estariam sujeitos à corrupção de sua sexualidade e do seu desenvolvimento pessoal. Nesse sentido, caracterizou-se, como autores de tais abusos, diversos agentes sociais, desde os pais e os colégios, que aplicavam sobre os menores uma pedagogia violenta, aos pedófilos, que tomavam os corpos infantis como objetos de seu gozo.

Nesse caminho, os ordenamentos jurídicos, das sociedades ocidentais contemporâneas, passaram a positivar essa noção de valorização da segurança dos menores, a fim de garantir o desenvolvimento infantil livre de violências e abusos. Tal contexto de proteção possuía como finalidade a constituição de adultos psicologicamente sadios, que poderiam contribuir para o progresso da sociedade com o máximo de suas habilidades. Assim, os menores passaram a dispor de uma série de normas jurídicas que lhes atribuía direitos e amparos, juntamente com o estabelecimento de instituições voltadas à aplicação de tais normas.

2.2 Os direitos assegurados na Constituição Federal de 1988 e a importância do Estatuto da Criança e do Adolescente

No Brasil, a positivação da segurança na infância e juventude teve seu maior desenvolvimento com o advento da Constituição Federal de 1988 (CF) e do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 (ECA). Nesse viés, tais conjuntos normativos se constituíram como sistemas jurídicos modernos, valorizando a aplicação dos direitos humanos na esfera da infância e da juventude, além de estabelecer uma rede de proteção legislativa aos menores.

Nesse viés, a CF, já em seu artigo 1º, estabeleceu, como um dos fundamentos da República, a dignidade da pessoa humana. Em relação a tão princípio, Silva et al (2021) explicam que:

[...] ao adentrar no conceito da dignidade, tem-se que o Legislador não a define objetivamente, porém a caracteriza em outros artigos, ou seja, tal conceito só pode ser compreendido com uma análise global da Lei Maior. Nesse liame, observa-se, no Art. 6º, a defesa dos direitos sociais, como o bem-estar físico e mental, livre desenvolvimento das capacidades profissionais e sociais do sujeito, a proteção dos indefesos, ou seja, o mínimo existencial comum. Este, que, na Carta Magna, é entendido como indispensável para a concretização da dignidade. Além disso, é salvaguardado, com especial cuidado como consta no Art. 227°, a proteção das crianças, jovens e adolescentes, com incumbência do Estado, da família e da sociedade em ampará-los e protegê-los de atos indignos (Silva et al, 2021, p. 29).

Nesse contexto, verifica-se que, ao entender que os menores são detentores de dignidade, o Legislador exclui, do sistema jurídico brasileiro, a perpetuação da violência histórica que esse grupo foi submetido.

A Lei Maior, além do expresso em seu art. 277, atribuiu a diversas instituições sociais o dever de garantir às crianças e aos adolescentes uma existência digna e livre de violências. Dentre essas, a assistência social, como contido no art. 203, inciso II, da CF, “A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: II - o amparo às crianças e adolescentes carentes;”.

Além disso, determinou-se, no parágrafo 4º, do art. 227, da CF, que: “A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente”. Assim, observa-se que há um mandamento constitucional no sentido de atribuir aos crimes contra os menores um elevado grau de punibilidade. Contexto esse que se alia às elevadas penas atribuídas a tais crimes, se comparados às demais espécies de delitos presentes no ordenamento brasileiro.

Por conseguinte, o ECA, como se observa já em seu artigo 1º, configura-se como um conjunto normativo voltado à proteção integral da criança e do adolescente. Outrossim, em seu artigo 2º, define tais conceitos para efeitos legais: “Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”. Tal conceituação é essencial, uma vez que é adotada para a incidência de tipos criminais previstos nesse Estatuto e em demais normas.

A partir do artigo 3º, do ECA, é exposto um amplo rol de direitos assegurados aos menores, muitos desses, constituindo-se como reiterações ou especificações daqueles já previstos na Carta Magna. Nesse contexto, destaca-se o artigo 5º, do mesmo Estatuto, em que lê-se: “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”.

Outrossim, além do estabelecimento de um rico sistema normativo de garantia de direitos sociais e liberdades individuais, o ECA prevê um tratamento especial aos menores infratores, como se verifica em seu art. 103 e seguintes. Nesse viés, estabeleceu-se que as crianças e os adolescentes não possuem um desenvolvimento psicossocial equivalente aos adultos, sendo então necessárias disposições normativas próprias. De forma que, entende-se que tais indivíduos não podem ser considerados como autores de crimes, mas, sim, de atos infracionais análogos, estando sujeitos a procedimentos especiais e à aplicação de Medidas Socioeducativas.

Para além desses princípios, no mesmo viés da Carta Manga, o ECA estabeleceu um sistema normativo que atribui a diversas instituições o dever de atuar em prol da proteção dos interesses dos menores. Dentre essas, encontra-se o Concelho Tutelar, como expresso em seu artigo 131: “O Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta Lei”. Nesse sentido, tal órgão possui um amplo rol de atribuições voltadas à defesa das crianças e dos adolescentes, expressas no artigo 136, do ECA, a exemplo, atender e aconselhar os responsáveis pelos menores e assessorar o Poder Executivo no desenvolvimento de propostas orçamentárias voltadas a programas de aplicação dos direitos da criança e do adolescente.

Nesse contexto, o Ministério Público se configura como outra instituição essencial, sendo que o ECA lhe estabelece diversos campos de atuação na esfera da defesa dos menores. Assim, realça-se que, em diversos dispositivos desse Estatuto, encontra-se a determinação da necessidade de manifestação do Ministério Público nos procedimentos envolvendo crianças e adolescentes, a exemplos, os artigos 35, 50, § 1º, 52-C, § 1º, 93, parágrafo único, 121, § 6º, 153, 157, 190-A, inciso I, e 191, parágrafo único.

Dessa forma, constata-se que há um cenário de proteção integral das crianças e dos adolescentes no ordenamento jurídico brasileiro. Todavia, em inúmeros casos, esse escudo normativo e institucional é incapaz de evitar que a maculada espada do abuso sexual atinja muitas crianças e adolescentes na sociedade brasileira. Assim, passar-se-á à análise de como o Direito Penal tutela o mais grave crime sexual praticado contra crianças e adolescentes.

3 O ESTUPRO DE VULNERÁVEL

O estupro de vulnerável se encontra tipificado no art. 217-A, do CP, em que se lê:

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

§ 2º (VETADO)

§ 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:

Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.

§ 4º Se da conduta resulta morte:

Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.

§ 5º As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime (BRASIL, 1940).

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Nesse viés, extrai-se, da descrição do caput, que tal delito possui dois núcleos do tipo, isto é, tutela duas condutas distintas. A primeira, “ter conjunção carnal”, é a cópula em seu sentido específico (a penetração total ou parcial do pênis na vagina). Assim, nessa conduta, em respeito ao princípio da impossibilidade da analogia in malam partem no Direito Penal, é elemento sine qua non a relação heterossexual.

A segunda conduta, “praticar outro ato libidinoso”, é a ação revestida de significação sexual. Ou seja, configura-se como um conceito relativamente genérico, que remete a um infinito número de ações, cabendo à jurisprudência e à doutrina delimitarem seus contornos. Dessa forma, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em ocasião do agravo regimental no recurso especial n. 1.995.795/SC, entendeu que:

PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. ART. 217-A DO CÓDIGO PENAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. RECONHECIMENTO DO DELITO NA FORMA TENTADA PELO EG. TRIBUNAL A QUO. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. ATOS LIBIDINOSOS DIVERSOS DA CONJUNÇÃO CARNAL. RECONHECIMENTO DA FORMA CONSUMADA. PRECEDENTES. REVALORAÇÃO DOS ELEMENTOS FÁTICO-PROBATÓRIOS DELINEADO NOS AUTOS. NÃO INCIDÊNCIA DO ÓBICE PREVISTO NA SÚMULA 7/STJ.

I - O ato libidinoso, atualmente descrito nos arts. 213 e 217-A do Código Penal, não é só o coito anal ou o sexo oral, mas podem ser caracterizados mediante toques, beijo lascivo, contatos voluptuosos, contemplação lasciva, dentre outros. Isto porque, o legislador, com a alteração trazida pela Lei n. 12.015/2009, optou por consagrar que no delito de estupro a prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso, não havendo rol taxativo ou exemplificativo acerca de quais atos seria considerado libidinoso [...].

Nesse cenário, Masson (2018, p. 137) professa que:

Na linha da posição do Superior Tribunal de Justiça, é preciso destacar que o estupro de vulnerável (e o estupro) realmente não depende do contato físico entre o agente e a vítima. Exige-se, contudo, o envolvimento físico desta no ato sexual, mediante a prática de ato libidinoso (exemplos: automasturbação, relação sexual com animais etc.)

Assim sendo, evidencia-se que o liame que conecta as condutas entendidas, pela doutrina e jurisprudência corrente, como atos libidinosos é a conotação sexual que lhes é intrínseca. Ademais, em certas ações, a exemplo do coito anal ou do sexo oral, tal conotação é explicitada. Porém, há atos que necessitam de maior atenção do operador do direito para sua adequada classificação, como é o caso das relações sexuais virtuais, que serão objeto de profunda análise no “título V” deste artigo. Outrossim, em todas essas ações, o consentimento da vítima ou o fato de que ela já possua uma vida sexual ativa não excluem a incidência do tipo penal, conforme determinação do § 5º, do art. 217-A, do CP.

Em relação ao sujeito ativo do estupro de vulnerável, considera-se que pode ser praticado por qualquer indivíduo, sendo perfeitamente cabível a coautoria, a participação e a autoria mediata, hipótese em que é utilizado um inculpável para o cometimento do crime. Nesse contexto, ressalva-se que, como já detalhado, a conduta de “ter conjunção carnal”, necessariamente, implica que o sujeito ativo seja um indivíduo com órgão sexual masculino ou feminino, enquanto, respectivamente, a vítima possua órgão sexual feminino ou masculino.

Quanto a seu sujeito passivo, é o “menor de 14 (quatorze) anos”, englobando, conforme disposição do 1º, do ECA, crianças e adolescentes, até o instante em que completam quatorze anos. Outrossim, como se observa no § 1º, do art. 217-A, do CP, o Legislador classificou também, para efeitos de incidência do presente tipo penal, aqueles que “por enfermidade ou deficiência mental, não têm o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não podem oferecer resistência” como vulneráveis.

Quanto à consumação do presente delito, entende-se que se configura como um crime de consumação material, que admite a tentativa, isto é, consuma-se, no que diz respeito à conduta de “ter conjunção carnal”, no momento da introdução total ou parcial do pênis na vagina, sendo dispensável o orgasmo para o cometimento do delito (MASSON, 2018). Em relação à conduta de “praticar outro ato libidinoso”, essa se consuma, quando o delito é praticado de modo físico, no momento em que há a ação sexual no corpo do vulnerável, a exemplo, o instante em que ocorre a introdução total ou parcial do pênis no ânus ou o toque nas partes intimas. Nas hipóteses em que não há contato físico direto entre os sujeitos, mas sim relação sensorial, como ocorre nos casos de contemplação lasciva presencial ou virtual, o delito se consuma no momento em que o sujeito ativo visualiza o sujeito passivo realizar o ato libidinoso, a exemplo do indivíduo que, em pé ao lado da cama, assiste o menor se masturbar, ou o indivíduo que, por meio de uma chamada de vídeo, observa a menor introduzir objetos em sua vagina.

Os parágrafos § 3º e § 4º, do art. 217-A, do CP, qualificam o presente crime em razão das consequências da conduta praticada, respectivamente, se dela resultar lesão corporal de natureza grave ou morte. Nesse cenário, para classificação de tal lesão, utiliza-se o a definição legal contida nos parágrafos § 1º e § 2º, do art. 129, do mesmo Código:

§ 1º Se resulta: I - Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias; II - perigo de vida; III - debilidade permanente de membro, sentido ou função; IV - aceleração de parto.

§ 2º Se resulta: I - Incapacidade permanente para o trabalho; II - enfermidade incurável; III - perda ou inutilização do membro, sentido ou função; IV - deformidade permanente; V – aborto”.

Nesse viés, evidencia-se que para incidência dessas qualificadoras, é necessário que tais resultados tenham carácter preterdoloso. Isto é, não foram causados de maneira intencional, pois se há dolo direto, em relação às lesões ou à morte, o indivíduo responderá, respectivamente, pelo crime de lesão corporal ou pelo homicídio, em concurso material com o estupro de vulnerável.

Nessa esteira, ao se tratar desse delito, a doutrina clássica costuma debater a Teoria da Exceção de Romeu e Julieta, que se baseia na obra de William Shakespeare, em que dois personagens, de 16 e 13 anos, apaixonam-se. Nesse sentido, alguns Estados norte-americanos positivaram as chamadas Romeo and Juliet laws, que, em linhas gerais, relativizam a vulnerabilidade dos menores de 14 anos, em hipóteses em que a diferença de idade é considerada pequena (até 5 anos). Todavia, tal teoria não é aceita pelo ordenamento jurídico brasileiro, sendo que o marco dos 14 anos possui caráter objetivo, não comportando relativização (MASSON, 2018).

Todavia, esse entendimento clássico sofreu um ressente abalo, em razão de uma decisão proferida pelo e. Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2023), veiculada no Informativo n. 777, em que se observa:

Admite-se o distinguishing quanto ao Tema 918/STJ (REsp 1.480.881/PI), na hipótese em que a diferença de idade entre o acusado e a vítima não se mostrou tão distante quanto do acórdão paradigma (o réu possuía 19 anos de idade, ao passo que a vítima contava com 12 anos de idade), bem como há concordância dos pais da menor somado a vontade da vítima de conviver com o réu e o nascimento do filho do casal, o qual foi registrado pelo genitor. [...].

Na questão tratada no acórdão proferido, sob a sistemática dos recursos repetitivos, a vítima era criança, com 8 anos de idade, enquanto o imputado possuía idade superior a 21 anos.

No presente caso, o imputado possuía, ao tempo do fato, 19 anos de idade e a vítima, adolescente, contava com apenas 12 anos de idade.

A necessidade de realização da distinção feita no REsp Repetitivo 1.480.881/PI se deve em razão de que, no presente caso, a diferença de idade entre o acusado e a vítima não se mostrou tão distante quanto do acórdão paradigma, bem como porque houve o nascimento do filho do casal, devidamente registrado, fato social superveniente e relevante que deve ser considerado no contexto do crime. [...].

Não se registra proveito social com a condenação do recorrente, pois o fato delituoso não se mostra de efetiva lesão ao bem jurídico tutelado. Diversamente, e ao contrário, o encarceramento se mostra mais lesivo aos valores protegidos, em especial, à família e à proteção integral da criança, do que a resposta estatal para a conduta praticada, o que não pode ocasionar punição na esfera penal. [...].

Neste julgado, entendeu-se que não deveria ser aplicado o entendimento do REsp 1.480.881/PI, que reiterava há impossibilidade de flexibilização do critério objetivo de “menor de 14 (quatorze) anos” para incidência do tipo penal do estupro de vulnerável. Assim, julgou-se que deveria se aplicar o distinguishing, em relação ao acórdão paradigma, pois as particularidades do caso, a exemplo da menor diferença de idade e do nascimento de filho do casal, gerou um contexto em que não se verificou efetiva lesão à dignidade sexual da menor. Além disso, os efeitos socialmente lesivos de uma eventual condenação seriam danosos a diversos valores protegidos no ordenamento brasileiro.

Todavia, por se tratar de julgado recente, ainda é necessário maior amadurecimento e reflexão sobre tal mudança de paradigma e seus efeitos, embora tal decisão tenha aberto novas portas para o debate dos contornos do sujeito passivo e da punibilidade do presente delito. Desse modo, o tempo mostrará se o referido julgado se constituirá como uma decisão isolada ou um pioneiro na construção de uma nova visão jurisprudencial.

4 A UTILIZAÇÃO DO AMBIENTE DIGITAL NO COMETIMENTO DE DELITOS

Durante as décadas de 30 e 40 do século XX, desenvolveu-se, no contexto da Segunda Guerra Mundial, a chamada Máquina de Turing, “o dispositivo escrevia e interpretava símbolos limitados em 0, 1 e conjunto vazio — basicamente, a estruturação das linhas de códigos atuais” (GALILEU, 2018). Inicialmente, esse equipamento foi desenvolvido com fins militares, especificamente, para decodificar as mensagens alemãs. Todavia, foi responsável por um grande avanço no campo do processamento de dados, possibilitando o surgimento das Ciências da Computação e, por consequência, os computadores e celulares modernos.

Nesse contexto, tal tecnologia também viabilizou a criação de outra essencial inovação, a internet, em 1969. Inicialmente, “chamada de Arpanet, tinha como função interligar laboratórios de pesquisa. Assim, a Arpanet era uma garantia de que a comunicação entre militares e cientistas persistiria, mesmo em caso de bombardeio. Ou seja, eram pontos que funcionavam independentemente de um deles apresentar problemas” (SILVA, 2001). Posteriormente, tal tecnologia teve seu uso estendido ao público civil, em especial, com o advento da World Wide Web, ou WWW, em 1992.

Com efeito, o surgimento dessas tecnologias possibilitou a construção do chamado espaço virtual ou ambiente digital. Assim, a partir dessa nova rede de possibilidades e interações, houve a facilitação do acesso à informação em todo o mundo, juntamente com uma maior democratização da educação e do aumento da produtividade das indústrias e escritórios. Além disso, essa nova gama da manifestação humana gerou uma quebra de paradigmas em relação ao que era entendido como real.

Porém, com o advento dessas tecnologias, os meios de execução delitiva também se ampliaram. Nesse cenário, tornou-se necessário o desenvolvimento de estruturas e teorias jurídicas que viabilizassem o controle dos crimes virtuais. Destaca-se, nesse caso, a positivação da Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, que estabeleceu princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil, visando a proteção dos dados dos usuários e a construção de um ambiente virtual harmônico. Outrossim, houve o estabelecimento de tipos penais qualificados ou aumentos de pena relacionados ao cometimento virtual de delitos, a exemplo, a fraude eletrônica, prevista no art. 171, § 2º-A, do CP:

A pena é de reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa, se a fraude é cometida com a utilização de informações fornecidas pela vítima ou por terceiro induzido a erro por meio de redes sociais, contatos telefônicos ou envio de correio eletrônico fraudulento, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo.

Todavia, no que pese o esforço global, legislativo e policial, de contenção dos delitos virtuais, houve um aumento na prática de tais infrações. Nesse viés, tem-se, a exemplo, a expansão do comércio de drogas on-line, como aponta uma pesquisa realizada pela Global Drug Survey:

Em 2021, quase um em cada quatro entrevistados na América do Norte relatou comprar drogas na dark web. Na Oceania e na Europa, foram um em cada seis.

Na Rússia, o percentual foi de 86%; na Finlândia e na Suécia, mais de 40%; e na Inglaterra, Escócia e Polônia, mais de 30% (BBC, 2022).

Ademais, outro delito que se beneficiou com as maiores possibilidades de interações fornecidas pelo espaço virtual foi o estelionato, conforme indica um levantamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023:

Estelionato por meio eletrônico. Taxa por 100 mil habitantes. Em 2021, foram 115 estelionatos a cada 100 mil habitantes no país. No ano seguinte, foram 189,9, um aumento de 65,1%. [...] o estado recordista em estelionatos por meio eletrônico no Brasil é Santa Catarina, com 64.230 registros em 2022. Isso representa 32% dos casos do Brasil (HONÓRIO; STABILE; PAIVA, 2023).

Dessa forma, resta evidente que o cometimento de delitos virtuais se constitui como uma grande ameaça à segurança pública. Desse modo, é impreterível que haja um debate formal sobre essa questão, visando a correta tutela normativa de tais crimes.

5 O ESTUPRO VIRTUAL DE VULNERÁVEL

O desenvolvimento do espaço virtual permitiu o ampliamento das relações humanas. Em efeito, essa nova gama de possibilidades gerou a ressignificação de diversos comportamentos, tal como a atividade sexual. Nesse viés, a utilização de webcams, microfones, e, mais recentemente, óculos de realidade aumentada permitiram a criação de novos fetiches e modalidades sexuais, tais como o Sexting, o Gozofone e o Cibersexo. Todavia, há a configuração de uma séria problemática quando tais práticas são realizadas com a participação de crianças e adolescentes. Assim, questiona-se a possibilidade e as características do estupro virtual de vulnerável.

5.1 O Sexting, o Gozofone e Cibersexo

Ao se analisar o movimento histórico da humanidade, observa-se, como característica constante, a criação de novas técnicas e instrumentos visando a expansão das potencialidades dos seres humanos. Nesse contexto, com o advento das tecnologias digitais, houve a modificação da forma pela qual se interpreta a si mesmo e o mundo em que se está inserido. Sob esse prisma, a difusão do espaço virtual foi responsável por uma particular reinterpretação do indivíduo para com a si mesmo, como explicam Leitão e Gomes (2018):

[...] a internet vem promovendo uma verdadeira revolução em nossos entendimentos sobre “nós mesmos”, paralelamente à promoção de novos processos de subjetivação, dando origem a novos discursos e “narrativas de si”, através dos diferentes modos de engajamento com as plataformas digitais. Mas mais do que narrar e compartilhar dramas sociais e estigmas experimentados na vida off-line, o que se observa nos ambientes digitais são os usos e apropriações criativas que esses sujeitos fazem do ciberespaço, para se reinventarem e construírem novas formas de apresentação de si, através da experimentação e da relação lúdica e estética com essas plataformas (LEITÃO; GOMES, 2018, p. 184).

Diante disso, observa-se que, no campo da subjetividade, o limiar entre o espaço virtual e o físico não se constitui como uma contradição, mas, sim, como uma continuidade, em que o indivíduo é capaz de, profundamente, manifestar-se e reinventar-se. Nesse sentido, a partir da experimentação realizada pelos usuários da internet, ao longo das últimas décadas, começou-se a se desenvolver um novo hábito em certas comunidades virtuais, a prática de relações sexuais on-line.

Em um primeiro momento, conceber a possibilidade da realização de um ato que, tradicionalmente, necessitava de íntimo contato físico pode aparentar ser um contrassenso, para um olhar desatento. Todavia, para se compreender o fenômeno do sexo on-line é preciso se considerar a complexidade sexual do ser humano. Nesse viés, torna-se imperativa a definição de sexualidade, que segundo Bearzoti (1994), parte de um conceito psicanalítico freudiano:

[...] sexualidade é energia vital instintiva direcionada para o prazer, passível de variações quantitativas e qualitativas, vinculada à homeostase, à afetividade, às relações sociais, às fases do desenvolvimento da libido infantil, ao erotismo, à genitalidade, à relação sexual, à procriação e à sublimação (BEARZOTI, 1994, p. 3).

Assim, entende-se que a sexualidade é uma construção subjetiva e engloba aspectos da vida do indivíduo que vão além da mera relação corporal com o outro. Outrossim, como explicam Rodrigues e Nielsson (2015), o pensamento de Michel Foucault considera que:

A sexualidade, por si só, é uma construção onde se entrelaçam a preocupação com a moral, com a ética e as técnicas e as práticas em relação a si próprio. Assim o Uso dos Prazeres segue uma construção a partir da interação de jogos de verdade com regras de conduta (RODRIGUES; NIELSSON, 2015, p. 8).

Nesse viés, a sexualidade não se configura como uma dimensão estática, mas, sim, como uma construção que se relaciona à dimensão social do indivíduo, sendo influenciada pelo meio em que o sujeito está inserido. Nesse cenário, o espaço virtual se configurou como um novo horizonte para a curiosidade e a experimentação humana, tendo influenciado intimamente as formas de manifestação e da vivência sexual, de forma que, originou-se um amplo rol de novas modalidades de relações sexuais, que, para fins de didática e categorização, podem ser divididas em três modalidades: o Sexting, o Gozofone e Cibersexo.

Tais modalidades são classificadas tendo como parâmetro o nível de interação sensorial virtual entre os envolvidos e os costumes de suas práticas. Em relação ao Sexting, trata-se de um termo que resultou da junção entre duas palavras do idioma inglês, sex (sexo) e texting (envio de mensagens), ou seja, expressa a ideia de sexo por meio de mensagens. Como professam Souza e Banaco (2018):

Para os fins a que a presente discussão se propõe, o sexting será definido como a produção e o compartilhamento, por meio eletrônico, de conteúdos, imagens ou textos, que explicitem claramente áreas genitais ou outras partes do corpo (em forte alusão sexual), ou, em sendo conteúdo escrito, mensagens que expressem experiências e/ou insinuações sexuais do próprio adolescente que produz estes materiais e, também, de seus amigos, colegas ou demais pessoas que estejam a ele ligados em uma rede social específica (SOUZA; BANACO, 2018, p. 6).

Assim, há uma intensa troca de mensagens de textos, imagens ou vídeos com nítida conotação sexual. Além de, frequentemente, haver o desenrolar de uma narrativa sexual ou conto erótico dinâmico, entre os envolvidos, possibilitando a superação das limitações do ato sexual físico para, valendo-se da criatividade, o estabelecimento de uma experiência singular.

Quanto ao Gozofone, este consiste em um termo desenvolvido a partir das palavras “gozar”, que, no contexto da expressão, significa: “Atingir o orgasmo nas relações sexuais” (MICHAELIS, 2023), e “telefone”, expressando a ideia de ter prazer sexual por meio de uma chamada de voz. Os costumes dessa modalidade são similares aos do Sexting, porém há uma maior interação sensorial entre os envolvidos, visto que há o contato por meio da fala entre os participantes. Ademais, outro elemento dessa prática é que, muitas vezes, os participantes se masturbam durante o diálogo libidinoso (conduta que contribuiu para a origem do termo), gerando, assim, maior eroticidade na relação sexual.

Em relação ao Cibersexo, originando-se da junção do prefixo “ciber”, derivação da palavra inglesa Cyber, que se refere à ideia de algo estar relacionado à internet e/ou tecnologia (CAMBRIDGE, 2023), e o termo sexo, expressando a ideia da relação sexual por meio do espaço virtual. Tal termo, em razão de sua ampla significação, pode ser utilizado para designar as modalidades sexuais virtuais em geral. Porém, para efeitos do presente estudo, será entendido como a categoria em que a interação entre os indivíduos alcança seu mais elevado grau. Nesse viés, em tal modalidade, os sujeitos se utilizam do sentido da visão em tempo real, diferentemente das categorias anteriormente definidas.

Assim, é a situação em que os indivíduos se conectam, simultaneamente, em uma plataforma que permita a utilização de videochamadas para a prática sexual. Diferentemente do Sexting, em que as somente há a troca de mensagens, fotos e vídeos, e do gozofone, em que é utilizado a audição, aqui, esses elementos se combinam e são potencializados pela adição do sentido da visão que se desenvolve em tempo real entre os participantes. A exemplo, é o caso em que os indivíduos se conectam em uma videochamada, utilizando-se de webcams, e começam a se masturbar, enquanto mantem um diálogo erótico.

Por fim, reforça-se que, embora o estabelecimento de tais modalidades tenha por finalidade apenas possibilitar uma maior sistematização no presente estudo, cabe evidenciar que o fenômeno da prática sexual virtual possui um amplo espectro de manifestações. Isso significa que os seus contornos específicos irão variar de acordo com a comunidade virtual em análise.

5.2 A possibilidade de tipificação dos atos libidinosos realizados virtualmente no delito previsto no art. 217 – A, do Código Penal

Conforme detalhado no título “3 O ESTUPRO DE VULNERÁVEL”, do presente estudo, o delito previsto no art. 217 – A, do Código Penal, engloba duas condutas distintas, como núcleos do tipo, “ter conjunção carnal” e “praticar outro ato libidinoso”. Em relação à conjunção carnal, destaca-se que o contato físico entre os indivíduos se configura como elemento indispensável, de modo que sua execução não pode ser realizada por meios digitais. Todavia, tal contexto se altera ao se analisar a questão da conduta de “praticar outro ato libidinoso”, pois é a ação revestida de significação sexual. Isto é, configura-se como um conceito, relativamente genérico, que remete a um infinito número de ações, cabendo à jurisprudência e à doutrina delimitar seus contornos.

Nesse viés, seguindo-se o exposto no subtítulo anterior, os avanços tecnológicos advindos nas últimas décadas criaram um terreno fértil para a manifestação e a ressignificação de diversas condutas humanas, entre elas, as relações sexuais. Assim, elas se constituem como um notável exemplo da capacidade criativa e adaptativa do gênero humano à prática do sexo, utilizando-se de recursos digitais, que se tornaram uma nova vertente da complexa sexualidade que permeia as relações sociais. Porém, em paralelo a essas possibilidades, esses novos mecanismos podem se revestir de nocivas consequências nos casos em que há o envolvimento de crianças e adolescentes. Portanto, analisar-se-á a possibilidade de tais relações se enquadrem no tipo penal previsto no art. 2017 – A, do CP, na hipótese do envolvimento de menores de 14 (quatorze) anos.

Nesse contexto, em acórdão publicado no dia 23 de março de 2022, pela 4ª Câmara Criminal, nos autos n. 0008737-73.2021.8.16.0021, o e. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná considerou que:

APELAÇÃO CRIMINAL. SENTENÇA CONDENATÓRIA. CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL, TENTATIVA DE SUBTRAÇÃO DE INCAPAZ E ARMAZENAMENTO DE PORNOGRAFIA INFANTIL (ART. 217-A, CAPUT, POR DIVERSAS VEZES, NA FORMA DO ART. 71, CAPUT, AMBOS DO CÓDIGO PENAL; ART. 249, NA FORMA DO ART. 14, II, AMBOS DO CÓDIGO PENAL, E ART. 241-B, DA LEI 8.069/1990). RECURSO DA DEFESA. [...] 2) PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO DO CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL (ART. 217-A, DO CP). ALEGAÇÃO DE ATIPICIDADE ANTE A PRÁTICA DE ATOS LIBIDINOSOS DE FORMA VIRTUAL. DESPROVIMENTO. PRESCINDIBILIDADE DE CONTATO FÍSICO DIRETO. CONTEMPLAÇÃO LASCIVA POR MEIO VIRTUAL. PRECEDENTES. CRIME CONSUMADO. PRÁTICA DE “SEXO VIRTUAL” CONFIGURADA ANTE A INTENSA TROCA DE MENSAGENS ERÓTICAS POR PARTE DO ACUSADO E A INFANTE. VÍTIMA QUE EXPRESSOU TER 12 ANOS DE IDADE. VIOLÊNCIA PRESUMIDA. SENTENÇA ANCORADA EM FARTO CONJUNTO PROBATÓRIO, EM ESPECIAL NAS DECLARAÇÕES DA VÍTIMA, DE SUA AVÓ E SEUS GENITORES. ESPECIAL RELEVÂNCIA DA PALAVRA DA VÍTIMA, NOTADAMENTE NOS CRIMES SEXUAIS, QUE SÃO COMUMENTE PRATICADOS NA CLANDESTINIDADE, NOS QUAIS A VÍTIMA É GERALMENTE A ÚNICA PESSOA PRESENTE. PRECEDENTES. 3) PEDIDO DE DESCLASSIFICAÇÃO DO CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL PARA O DELITO DE SATISFAÇÃO DA LASCÍVIA MEDIANTE A PRESENÇA DE CRIANÇA OU ADOLESCENTE (ART. 248-A, DO CÓDIGO PENAL). DESCABIMENTO. DEMONSTRADA A PRÁTICA DE ATOS LIBIDINOSOS COM A MENOR, E NÃO NA PRESENÇA DA MENOR, IMPOSSÍVEL A DESCLASSIFICAÇÃO DA CONDUTA PARA O TIPO PENAL DO ART. 218-A, DO CÓDIGO PENAL. PRECEDENTES. [...]. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.

Neste julgado, entendeu-se que houve a consumação do delito tipificado no art. 217 – A, do CP, mediante a intensa troca de mensagens eróticas entre o réu e a vítima. Isto é, reconheceu-se a configuração do Sexting, envolvendo menores de 14 (quatorze) anos, como um ato libidinoso capaz de gerar repercussão penal. Nesse sentido, afastou-se a alegação de atipicidade da conduta, tendo em vista a aplicação da teoria da contemplação lasciva e a existência de atos libidinosos de forma virtual.

Ademais, o tema já foi objeto de uma decisão proferida pelo e. STJ, veiculada no Informativo n. 685, de 22 de fevereiro de 2021, em que se verifica:

Discute-se a possibilidade de não tipificação do estupro de vulnerável em virtude da ausência de contato físico entre o agente e as vítimas. No caso, as instâncias de origem delinearam e reconheceram a ocorrência de todos os elementos contidos no art. 217-A do Código Penal, com destaque à qualidade de partícipe do réu, diante da autoria intelectual dos delitos, bem como da prescindibilidade de contato físico direto para a configuração dos crimes. Sobre o tema, frisa-se que é pacífica a compreensão de que o estupro de vulnerável se consuma com a prática de qualquer ato de libidinagem ofensivo à dignidade sexual da vítima, conforme já consolidado por este Superior Tribunal de Justiça. Doutrina e jurisprudência sustentam a prescindibilidade do contato físico direto do réu com a vítima, a fim de priorizar o nexo causal entre o ato praticado pelo acusado, destinado à satisfação da sua lascívia, e o efetivo dano à dignidade sexual sofrido pela ofendida. Ressalta-se que os precedentes desta Corte já delinearam a chamada contemplação lasciva como suficiente para a configuração de ato libidinoso, elemento indispensável constitutivo do delito do art. 217-A do Código Penal. A ênfase recai no eventual transtorno psíquico que a conduta praticada enseja na vítima e na real ofensa à sua dignidade sexual, o que torna despicienda efetiva lesão corporal física por força de ato direto do agente. [...] Na situação em exame, ficou devidamente comprovado que o acusado agiu mediante nítido poder de controle psicológico sobre as outras duas agentes, dado o vínculo afetivo entre eles estabelecido. Assim, as incitou à prática dos atos de estupro contra as infantes (ambas menores de 14 anos), com o envio das respectivas imagens via aplicativo virtual, as quais permitiram a referida contemplação lasciva e a consequente adequação da conduta ao tipo do art. 217-A do Código Penal [...].

Assim, enfatizou-se que a realização de atos libidinosos, virtualmente, é capaz de gerar danos ao bem jurídico tutelado pelo crime do art. 217 – A, do CP. De modo que o réu, ao se estabelecer como mentor intelectual dos atos libidinosos e incitar à prática dos atos de estupro contra as infantes (ambas menores de 14 anos), com o envio das respectivas imagens via aplicativo virtual, as quais permitiram a referida contemplação lasciva, teve sua conduta configurada como estupro de vulnerável.

Outrossim, em relação à incidência dos atos libidinosos executados virtualmente no delito tipificado no art. 217 – A, do CP, o Supremo Tribunal Federal, em recurso extraordinário com agravo, n. 1405786, publicado no dia 19 de outubro de 2022, julgou que:

APELAÇÃO CRIME. ASSEDIAR, POR QUALQUER MEIO DE COMUNICAÇÃO, CRIANÇA, COM O FIM DE COM ELA PRATICAR ATO LIBIDINOSO. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. ARMAZENAR, POR QUALQUER MEIO, FOTOGRAFIA, VÍDEO OU OUTRA FORMA DE REGISTRO QUE CONTENHA CENA DE SEXO EXPLÍCITO OU PORNOGRÁFICA ENVOLVENDO CRIANÇA OU ADOLESCENTE. CONCURSO MATERIAL. [...] 3. ESTUPRO DE VULNERÁVEL (2º FATO). ÉDITO CONDENATÓRIO. MANUTENÇÃO. Prova amplamente incriminatória. Relatos coerentes e convincentes da vítima, criança de apenas 10 anos de idade à época dos fatos, dando conta de que, em duas oportunidades, manteve contato com o réu, pessoa que conheceu pela Internet, por meio de WebCam, oportunidade em que ele se despiu, passando a praticar masturbação, instando-o a também manipular seu pênis, com o que concordou, ambos se masturbando simultaneamente. A palavra da vítima, em delitos que atentam contra a dignidade sexual, porque geralmente praticados sem testemunhas, assume especial relevância, principalmente quando encontra amparo no restante do contexto probatório, notadamente os diálogos anexados aos autos, dos quais se depreende claramente que o réu efetivamente praticava atos libidinosos diversos da conjunção carnal com o menor. Relatos vitimários corroborados, ainda, pelas declarações de seu genitor, acerca da descoberta dos abusos e deflagração da investigação policial, em consonância com os dizeres dos policiais civis que atuaram na ocorrência, esclarecendo que o increpado foi localizado por meio dos IP's dos locais onde ele utilizava o perfil falso que mantinha na rede social Facebook Acusado que, embora negando ter se masturbado na frente da vítima, admitiu, em seu interrogatório judicial, que em uma oportunidade visualizou o menino manipulando o órgão genital por meio da WebCam, sustentando que "ambos se estimularam a se exibir". Ação delituosa praticada pelo indigitado que se enquadra perfeitamente na conceituação de atos libidinosos diversos da conjunção carnal, dedicados a satisfazer a libido deturpada do agente. Tipo penal que pode se configurar a despeito da ausência de contato físico, quando suficiente a mera "contemplação lasciva". Precedentes do E. STI. 771) Tipicidade incontroversa. [...] 5. DESCLASSIFICAÇÃO DO DELITO PARA OS PARA O DELITO PREVISTO NO ART. 241-D, PARÁGRAFO ÚNICO, II DO ECA OU NO ART. 215-A DO CP. INVIABILIDADE. Ação delituosa praticada pelo indigitado que denota perfeitamente a intenção de praticar ato libidinoso diverso da conjunção carnal com a vítima. Releva neste tipo de crime o conteúdo finalístico da ação, se possui carga libidinosa, dirigida ao prazer sexual. Precedentes do E. STJ. Conduta que, em pelo menos duas oportunidades, foi além do mero assédio, concretizado o ato libidinoso da conjunção carnal, circunstância que inviabilizo a desclassificação para o delito previsto no art. 241-D, parágrafo único, II do ECA. Da mesma forma, inviável operar-se a desclassificação para o tipo penal do art. 215-A do CP, que tipifica a conduta de "praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro", não possuindo, como elementares, a violência e grave ameaça, tampouco condizendo com o cometimento de abuso sexual contra pessoa vulnerável, no qual se concretiza a violência presumida. Precedentes do E. STJ. Atos praticados que são tão aviltantes, quanto outros atos mais invasivos, reclamando severidade de repressão. A desproporção, como tal interpretada, resolve-se com apenamento mais contundente para atos mais invasivos, nos limites preconizados pelo legislador. Inexistência de violação ao princípio da proporcionalidade. Estupro de vulnerável configurado. Desclassificação inviável [...].

Neste julgado, considerou-se que houve a configuração do delito de estupro de vulnerável mediante o contato virtual entre o réu e a vítima, uma vez que se utilizaram de plataformas on-line e webcams, para estabelecerem um contato visual e, após, passaram a se masturbarem simultaneamente. Ou seja, houve a prática do Cibersexo. Além disso, postulou-se que o referido tipo penal pode, perfeitamente, enquadrar-se sem a necessidade de contato físico entre os envolvidos, posto que houve suficiente mera contemplação lasciva. Adicionalmente, afastou-se o pleito de desclassificação do art. 217 – A, do CP, para o delito previsto no art. 241 – D, parágrafo único, II, do ECA, ou para a infração tipificada no art. 215 – A, do CP, posto que se entendeu que a conduta do réu, além de se enquadrar plenamente no tipo penal do art. 217 – A, os atos realização reclamam severidade de repressão, de modo que não restaria configurada a violação ao princípio da proporcionalidade.

Dessa forma, verifica-se que a atual jurisprudência vem considerando possível a configuração do delito tipificado no art. 217 – A, do CP, mediante à prática virtual de atos libidinosos. Nesse sentido, aplica-se a teoria da contemplação lasciva e o envolvimento da vítima no ato libidinoso. Ou seja, não basta que o autor do delito execute um ato libidinoso em si mesmo, a exemplo da masturbação, enquanto a vítima adota uma postura meramente passiva e espectadora. Assim, partindo-se da análise dos referidos julgados, para a incidência do tipo, é necessário que haja o estabelecimento de um intenso contato entre os indivíduos, seja pela troca de mensagens ou por meios mais diretos de interação, como as chamadas de voz ou vídeo, e o envolvimento da vítima na realização de algum ato libidinoso, a exemplo da introdução de objetos nas regiões intimas ou a masturbação.

Outrossim, como se observa nos referidos julgados, comumente é alegado, em oposição à tipificação dos atos libidinosos executados virtualmente, a ofensa ao princípio da proporcionalidade das penas. Nesse viés, Korndoerfer (2021) defende que, em respeito a tal princípio, deveria ser positivado um tipo penal específico, com uma pena menor em relação à prevista no art. 217 – A:

Notadamente, observa-se que há fundamento jurídico relevante para a existência de um tipo penal específico, de modo a permitir que o magistrado possa utilizar parâmetros que concedam uma censura com adequado grau de ponderação. Com isso, expurgar-se-iam sanções desequilibradas e se estaria mais próximo e congruente com o princípio da proporcionalidade da pena. Tal necessidade poderá ser concretizada por intermédio do Projeto de Lei nº 3.628/2020, proposto pelo deputado Lucas Redecker, que tem, dentre suas proposições, a tipificação expressa da conduta de estupro virtual de vulnerável (KORNDOERFER, 2021, p. 53) .

Todavia, a atual jurisprudência é harmônica em reconhecer a inexistência de ofensa ao princípio da proporcionalidade das penas em relação ao estupro virtual de vulnerável. Em especial, o referido julgado do STF, recurso extraordinário com agravo, n. 1405786, em que tal alegação foi diretamente enfrentada, concluindo-se pela inexistência de dano a tal princípio constitucional, de modo que eventuais particularidades menos invasivas do contato virtual devem ser consideradas na fase de dosimetria da pena:

[...] as circunstâncias o favoreceram, porque o grau de invasividade da conduta não foi intenso como outros tantos que também caracterizam o estupro de vulnerável, diante do modus operandi empregado - contato libidinoso virtual. Princípio da proporcionalidade. Basilar reduzida para 8 anos e 6 meses de reclusão [...] (BRASIL, 2022).

Nesse sentido, resta preservado o princípio da proporcionalidade, uma vez que eventuais particularidades do caso concreto serão consideradas para beneficiar o réu na dosimetria de sua pena.

Ademais, há um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados (PL 1891/2023), atualmente aguardando votação em plenário, de autoria da debutada Renata Abreu (PODE-SP), que pretende, entre outras disposições, adicionar um novo parágrafo ao art. 217 – A, do CP:

Estupro Virtual de Vulnerável

§ 6º As penas previstas neste artigo são aplicadas mesmo que o crime seja praticado à distância, inclusive pelos meios digitais, como sites da rede mundial de computadores e aplicações de internet (BRASIL, 2023).

Em sua justificação, o referido projeto de lei expõe que:

[...] Já há um primeiro precedente no Brasil, o caso acontecido em Teresina-PI, em que em que foi decretada a primeira prisão por estupro virtual no país Não obstante já haver o primeiro caso no país, o presente Projeto de Lei pretende dar segurança jurídica para as vítimas e para o Poder Judiciário na hora de decidir, ao tipificar o crime de estupro virtual, não deixando as decisões à mercê apenas do entendimento de doutrinas e/ou jurisprudências. É neste cenário que se insere o projeto que ora apresentamos, que explicita a responsabilidade criminal daquele que, mesmo à distância, afeta valores tão caros à sociedade [...] (BRASIL, 2023).

Portanto, observa-se que o referido projeto de lei se trata de uma tentativa de positivação do entendimento já consolidado pela jurisprudência majoritária. Sendo assim, ele visa proporcionar mais segurança jurídica no processamento de tal delito e dirimir eventuais alegações de ofensa aos princípios da legalidade e da proporcionalidade das penas.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como uma reação à violência histórica sofrida pelas crianças e adolescentes, observa-se que o ordenamento jurídico brasileiro estabeleceu especiais cuidados ao tutelar os direitos de tais grupos, além de estabelecer uma rede de instituições voltadas à efetivação de tais prerrogativas. Ademais, estabeleceu-se o princípio da proteção integral das crianças e dos adolescentes, que visa garantir o pleno desenvolvimento de tais indivíduos, além de repudiar qualquer violação de sua dignidade e integridade física e psíquica.

Nesse cenário, diante do exposto no presente estudo, entende-se que é possível a tipificação de atos libidinosos praticados virtualmente no delito previsto no art. 217 – A, do CP. Nesse sentido, tal enquadramento não se constitui como uma analogia in malam partem do dispositivo penal, mas, sim, uma interpretação lógica de uma das condutas previstas no tipo “praticar outro ato libidinoso”, não ocorrendo, dessa forma, ofensa ao princípio da legalidade.

Ademais, é importante ressaltar que a realização de atos libidinosos virtuais pode causar danos significativos à saúde mental da vítima, uma vez que essa prática representa uma violação direta à sua dignidade sexual. Desse modo, há uma clara ofensa ao bem jurídico protegido por esse crime, que é a dignidade sexual de crianças e adolescentes menores de 14 anos.

Assim, para que haja a configuração do delito de estupro virtual de vulnerável, é necessário que ocorra a contemplação lasciva por parte autor. Ou seja, é necessário o estabelecimento de um intenso contato entre autor e vítima, de modo que permita que o autor acompanhe o ato libidinoso realizado pela vítima. Esse que se configura como um segundo requisito para a execução do crime, de modo que a vítima não pode se constituir como um sujeito meramente passivo, é necessário que essa, de fato, pratique algum ato libidinoso, com sigo mesma ou em terceiro, para que haja a consumação do fato típico.

Destarte, nessa senda, três modalidades de realização do delito se destacam, o Sexting, o Gozofone e o Cibersexo, que variam no nível de interação sensorial entre os envolvidos, fundamental para a configuração da contemplação lasciva. Assim, conforme já elucidado anteriormente, no Sexting os atos libidinosos são configurados mediante a intensa troca de mensagens eróticas entre os indivíduos, podendo envolver também o envio de fotos e vídeos. No Gozofone, há o estabelecimento de uma chamada de voz, por meio da qual são realizados os atos libidinosos por meio do estabelecimento de um diálogo erótico. Em tal modalidade, há uma interação maior entre os sujeitos, em comparação ao Sexting, posto que são utilizados os sentidos da fala e da audição. Por sua vez, o Cibersexo é o grau de maior interação entre os sujeitos, pois além da fala, também é utilizado o sentido da visão. Essa é a modalidade em que o autor e a vítima interagem por meio de uma chamada de vídeo, na qual são realizados os atos libidinosos.

Ademais, ressalta-se que tal divisão possui finalidades meramente didáticas e sistematizadoras, uma vez que as práticas de atos libidinosos por meios virtuais possuem diversas possibilidades de manifestações no campo fático. Portanto, cabe ao operador do direito analisar o caso concreto com atenção e bom senso para discernir o que irá se configurar como um ato libidinoso virtual.

Outrossim, em relação às alegações de ofensa ao princípio da proporcionalidade das penas em razão da incidência do art. 217 – A, do CP, nos casos de atos libidinosos virtuais, verifica-se que a jurisprudência majoritária vem se posicionando no sentido do não reconhecimento de tal ofensa. Além disso, tal entendimento poderá vir a ser consolidado mediante a aprovação do Projeto de Lei n. 1891/2023, atualmente, aguardando votação em plenário, de autoria da debutada Renata Abreu (PODE-SP).

Portanto, verifica-se que tais disposições penais se encontram alinhadas ao logos do ordenamento jurídico brasileiro e aos princípios de proteção às crianças e aos adolescentes contidos na Constituição Federal de 1988 e no ECA, posto que visam a salvaguarda do pleno desenvolvimento infantil, livre de abusos sexuais e psicológicos. Sendo assim, a possibilidade jurídica de punibilidade dos casos de estupro virtual de vulnerável se configura como mais um fundamental escudo na defesa integral das crianças e dos adolescentes.

REFERÊNCIAS

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BBC, Redação. Por que traficantes de drogas da 'dark web' não têm medo da polícia. G1. Disponível em: https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2022/01/11/por-que-traficantes-de-drogas-da-dark-web-nao-tem-medo-da-policia.ghtml. Acesso em: 11 de set. de 2023.

BEARZOTI, Paulo. Sexualidade: um conceito psicanalítico freudiano. SciELO. Arq. Neuro-Psiquiatr. 52 (1). Mar 1994. pg. 5. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0004-282X1994000100024. Acesso em: 19 de set. 2023.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 1891, de 14 de abril de 2023. Dispõe sobre o estupro na modalidade virtual, alterando o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal). Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2356369. Acesso em: 15 de out. de 2023.

_____. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 04 ago. 2023.

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Sobre os autores
Alessandro Dorigon

Mestre em direito pela UNIPAR. Especialista em direito e processo penal pela UEL. Especialista em docência e gestão do ensino superior pela UNIPAR. Especialista em direito militar pela Escola Mineira de Direito. Graduado em direito pela UNIPAR. Professor de direito e processo penal na UNIPAR. Advogado criminalista.

Eduardo Sampaio Marcuz

Acadêmico do curso de direito na Universidade Paranaense – UNIPAR

Informações sobre o texto

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