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Pornografia e cultura do estupro: transformações sociais e repercussões legislativas

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Agenda 13/03/2024 às 17:15

Resumo: O presente trabalho busca, primeiramente, explicar um pouco sobre a cultura do estupro e quais são seus reflexos na sociedade, apresentando sua definição jurídica e sua definição social. Em seguida, passa-se a análise da indústria pornográfica e quais males ela pode trazer para seus consumidores e como diferentes feminismos têm se posicionado sobre. Por fim, visa analisar as soluções jurídicas apresentadas ao problema, partindo da ótica de diversas dimensões jurídicas e da legislação brasileira. Por ainda se configurar como um grande tabu, o tema termina sendo pouco discutido no meio jurídico e social, apesar da sua relevância como configurador de modelos de relações sexuais. Por isso, este trabalho busca avançar nesse campo, contribuindo para a discussão.

Palavras-chave: Indústria Pornográfica; Crime de Estupro; Regulamentação; Cultura do Estupro.

Sumário: 1. Introdução. 2. Estupro e cultura do estupro: definições sociais e jurídicas. 2.1. Definição jurídica: a tipificação do crime de estupro. 2.2. Definição social: a cultura do estupro. 3. Pornografia e cultura do estupro: representações sobre sexo e violência. 3.1. O consumo da pornografia como um problema social. 3.2. As correntes feministas e a indústria pornográfica. 4. Dimensões jurídicas sobre a pornografia. 4.1. Conflito entre direitos fundamentais: liberdade de expressão x igualdade. 4.2. Legislações e discussões mundiais. 4.2.1. Brasil. 5. Considerações finais. Referências bibliográficas.


1. INTRODUÇÃO

É notório que a pornografia existe há séculos. Segundo Eberstadt e Layden, talvez sua existência coincida com a criação da própria civilização humana. Pinturas pornográficas estampadas nos vasos na antiga Grécia e cenas eróticas na antiga Pompeia são dois exemplos muito comuns dessa época1. Contudo, sempre foi algo reprimido moralmente por diversas religiões, que tanto tinham influência nas velhas cidades.

Em paralelo a isso, tem-se o fato de que o mundo, da forma como está disposto atualmente, foi construído partindo de uma base patriarcal, fundamentada na prevalência de um gênero sobre o outro. Isso culminou na cultura do estupro vivenciada nas mais diversas sociedades2.

Juntamente a essa questão, há os avanços tecnológicos advindos do mundo moderno, que instalaram o uso da Internet no cotidiano de todos os cidadãos, permitindo a rápida disseminação e acessibilidade dos conteúdos pornográficos colocados constantemente nessa rede virtual. Tudo isso, somado ao fato de que a pornografia contemporânea possui conteúdo qualitativamente diferente da que existia milênios atrás, sendo muito mais violenta e extrema, leva à formação e perpetuação de diversos problemas sociais que estão cada vez mais presentes.

Apesar dos eventuais avanços nessa discussão3, uma grande dificuldade é que muitas pessoas ainda não têm conhecimento sobre os potenciais males que a pornografia traz, males estes que são pessoais e em relação a terceiros, não criando uma associação entre ela e os problemas. Inclusive, isso faz com que eles sejam erroneamente relacionados a outras raízes, ou até mesmo considerados como um comportamento comum do ser humano, como será evidenciado mais à frente.

Dito isso, a ruptura da visualização da pornografia como um mero meio inofensivo de prazer precisa ser feita. A indústria pornográfica produz vítimas todos os dias e isso não pode ser ignorado. Um meio capaz de trazer soluções para tais problemas é o jurídico, através de legislações específicas, que trazem uma maior fiscalização e estruturação de como a pornografia pode ser feita e quais são seus limites, a fim de amenizar seus danos causados. Embora esse meio não esteja livre de contradições – por exemplo, expondo as mulheres vitimadas a ciclos de revitimização4 – busca-se explorar as suas potencialidades.

Por isso, o presente estudo tem o objetivo de evidenciar como a indústria pornográfica vem socialmente influenciando nas práticas dos crimes de estupro, trazendo maior visibilidade e conscientização para essas questões. Serão analisadas, ainda, possíveis soluções partindo da ótica de diferentes dimensões jurídicas e das normas legais já previstas na legislação brasileira.


2. ESTUPRO E CULTURA DO ESTUPRO: DEFINIÇÕES SOCIAIS E JURÍDICAS

Há muitos anos, as mulheres já foram consideradas seres sagrados, líderes de sociedades matriarcais. O crescimento da onda de misoginia no final do século XV, principalmente nas cidades europeias, com a aliança entre artesãos e autoridades e a contínua privatização de terras, resultou numa nova divisão sexual do trabalho, o que ocultou a condição de trabalhadoras das mulheres e as tornou em bens comuns pertencentes aos homens.5 Esses acontecimentos, juntamente com o crescimento do regime capitalista, passaram a efetivamente colocar a mulher numa posição de pessoa frágil e passiva, de alguém que necessita de cuidados, que é submissa e dependente dos homens e de seus empregadores6. Da mesma forma, a possessividade do homem cresceu em paralelo com a objetificação da mulher, que deveria ser somente sua e aceitar o papel de dona de casa e cuidadora de seus filhos.

Esse panorama merece um enfoque específico, pensando o contexto brasileiro, que visibilize a questão racial. As mulheres negras são a classe que mais sofre com as consequências advindas do sistema opressor, evidenciado pelo fato de que mesmo o pensamento social e político negro pode ter um viés masculinista e heterossexista, assim como a teoria feminista tem, por vezes, um viés racista e, também, heterossexista.7 O conceito de ser mulher é algo culturalmente construído, e, desde os primórdios da sociedade, é irrefutável a diferença entre o que se espera de uma mulher branca e o que se espera de uma mulher negra.8 Como exemplo, cita-se o período colonial, no qual mulheres brancas deviam cuidar dos filhos e mulheres negras eram obrigadas a entregar seus filhos e a fornecer mão-de-obra.

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No Brasil, a violência de gênero atravessa gerações, no contexto doméstico, contra mulheres brancas, e no contexto étnico, contra mulheres negras e indígenas,9 sempre demonstrando uma relação de poder, seja do mestre sobre a escrava, do branco sobre a negra ou do colono sobre a indígena.

É impossível ignorar a presença de uma cultura do estupro desde o passado colonial e escravocrata brasileiro, quando mulheres negras eram consideradas bens pertencentes aos senhores das fazendas, que contra elas podiam praticar todo tipo de violência, inclusive o estupro. Desde aquela época, é nítida a separação entre mulheres brancas e negras, que inclusive estas eram acusadas por aquelas de seduzirem seus maridos.10 Toda a histórica hiperssexualização dos corpos negros servia para justificar os crimes de estupro. Importante salientar que são os grupos dominantes os responsáveis pela personificação sexual, invisibilização e silenciamento das mulheres negras.11

O período colonial trazia uma relação entre a violência sexual e o pecado, já que o sexo era um ato pecaminoso. Contudo, a violência era repudiada somente quando ocorrida contra mulheres brancas. Os corpos não brancos, de mulheres negras, indígenas e quilombolas eram tidos como impuros, inundados pelo pecado, então a violência contra eles era legitimada, seja pela Igreja, pelo Estado ou pela sociedade.12

O próprio sistema patriarcal tido como opressor pelas feministas brancas não é o mesmo que exerce controle sobre mulheres negras, visto que estas, como mencionado, tiveram seus corpos hiperssexualizados, diferente das mulheres brancas que tinham sua sexualidade controlada. Isso solidifica o estupro como um crime historicamente racial, no qual apenas mulheres brancas figuravam como legítimo sujeito passivo do delito. Apesar dessa realidade jurídica não existir mais, socialmente ela ainda persiste, visível quando se atesta que é mais comum a mulher negra ser desacreditada e seu acusado absolvido do crime, do que quando a vítima é uma mulher branca.13 Todo esse estereótipo histórico e social criado reflete na forma como o sistema penal discrimina essas mulheres, não só em função do gênero, mas também da raça e da classe.

Para demonstrar como tal diferença continua muito presente na sociedade brasileira, ressalta-se a analogia elaborada por Lélia Gonzalez, em seu texto “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, acerca do mito da democracia racial: na época do Carnaval, a mulher negra sofre com o complexo da Cinderela, sendo exaltada como a princesa do baile durante as festividades, mas quando tudo acaba, volta a ser ignorada. A autora, igualmente, evidencia a presença do referido mito na indústria pornográfica, manifesta pela preferência de seus consumidores, que valorizam sexualmente corpos negros.

As referências mobilizadas até então entendem o estupro para além de definições puramente jurídicas, destacando inclusive aquelas situações em que o estupro ocorre legitimado pelo direito. Percebe-se, então, que o conceito de estupro está permanentemente em disputa. Alguns autores e autoras o entendem como apenas um tipo penal, outros como um elemento enraizado na formação brasileira. Sendo mobilizado por diferentes atores - operadores do Poder Judiciário, mídia, movimentos sociais, sujeitos individuais - é necessário entender as distintas definições sobre estupro.

2.1. Definição jurídica: a tipificação do crime de estupro

Diante do cenário já destacado acima, fica mais claro entender como os crimes sexuais surgiram e como se deu sua tipificação no desenrolar dos anos. Em relação ao crime de estupro em si, não se sabe fielmente quando a expressão foi utilizada pela primeira vez, mas é notório que o delito é reprovável há gerações: ele foi previsto pela primeira vez entre os séculos XVIII e XVII A.C. no Código de Hamurábi, o qual cominava pena de morte para aquele que fosse flagrado violando uma mulher virgem, que morasse com os pais.14

É perceptível que o Direito Penal é desenvolvido de acordo com os valores culturais de uma localidade, tanto que ele pode variar de país para país, com a predominância dos interesses dos grupos dominantes.15 Nisso, os valores patriarcais e estereótipos femininos acabam sendo reproduzidos nas normas jurídicas.

Para exemplificar o acima mencionado, observa-se que, entre 1603 e 1830, as Ordenações Filipinas eram aplicadas no Brasil, as quais reprovavam intensamente o crime de adultério, mas a pena recaia apenas sobre a mulher adúltera e seu amante. O homem nem sequer podia configurar como sujeito ativo do crime. Inclusive, ele tinha o direito por lei de matar sua esposa e seu amante, caso assim desejasse, ou de perdoá-los, direito este previsto no Título XXXVIII (“Do que matou sua mulher por a achar em adultério”).16

Em relação aos crimes sexuais, preocupava-se tão somente com o impacto que tal delito poderia causar na ordem familiar das vítimas. Assim, traziam uma categorização das mulheres vítimas em virgens, viúvas honestas, escravas brancas de guarda e mulheres que ganham dinheiro com seu corpo.17

A cominação de penas mais altas para crimes cometidos contra mulheres virgens pode-se explicar pelo fato de que, antigamente, acreditava-se que as virgens possuíam grandes poderes espirituais, por conta de sua pureza.18 Por isso, o estupro dessa vítima era um pecado enorme que irritava muitos Deuses.

Em 1830, ocorreu a promulgação do Código Criminal do Império. Este continuou classificando as mulheres em virgens, honestas, reputadas como tal e prostitutas, atribuindo diferentes penas para os agressores conforme a característica carregada pela vítima mulher. Além disso, caso o agente desposasse a ofendida, teria a extinta sua punibilidade em relação ao crime sexual cometido19, o que evidencia a preocupação do legislador em, mais uma vez, proteger os interesses da sociedade patriarcal, e não a dignidade da mulher.

Em 1890, um novo Código Penal foi editado com a proclamação da República, mas, por possuir diversas lacunas, foi complementado pela Consolidação das Leis Penais, esta promulgada apenas em 1932. Ambos continuaram com a categorização feminina, entretanto, no crime de estupro, cominaram a mesma pena para as mulheres virgens ou não, apesar de ter a exigência de que fosse honesta.20

O Código Penal atualmente vigente, promulgado em 1940, já sofreu algumas modificações até o momento presente. No início da década, na relação dos crimes sexuais, ele trazia crime de estupro, posse sexual mediante fraude, crime de sedução e de rapto. A classificação das mulheres só foi completamente retirada do ordenamento jurídico brasileiro em 2005. Isso porque, como é sabido, a doutrina faz parte das fontes do Direito e muitas das visões doutrinárias ainda insistiam na caracterização da mulher honesta e da prostituta, por exemplo.21 Outrossim, somente em 2009, com a Lei 12.015, que a lógica da tutela dos costumes trazida pelo Código foi substituída pela tutela da dignidade sexual.22

Pelo examinado acima, fica evidente o papel que a legislação penal desempenha na estereotipização do gênero feminino, como quando garante diferentes tratamentos dependendo do status atribuído à vítima, fato que determina como as mulheres devem agir dentro de um padrão restrito imposto pela sociedade patriarcal para serem merecedoras da proteção do Estado.23 A própria Lei Maria da Penha em uma certa medida continua perpetuando esses estereótipos, dessa vez como vítima de violência doméstica, classificando a mulher como frágil, passiva, incapaz, que deve ser protegida inclusive de si mesma para que não desista da punição jurídica.24 Esta última característica se mostra pelo fato das ações penais dos crimes previstos na Lei Maria da Penha serem públicas incondicionadas25.

Atualmente, o crime de estupro, que com a Lei 12.015/2009 se uniu ao crime de atentado violento ao pudor, está previsto no artigo 213, do Código Penal, da seguinte forma:

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:

Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

§ 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.

§ 2º Se da conduta resulta morte:

Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos BRASIL.26

Ademais, também traz a tipificação do crime de estupro de vulnerável no art. 217-A, CP, que atribui uma pena de reclusão de 8 (oito) a 15 (quinze) anos para quem tiver conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (quatorze) anos, ou com quem não tem o necessário discernimento para a prática do ato, seja por enfermidade ou deficiência mental, ou com quem, por qualquer motivo, não possa oferecer resistência. Igualmente, tem a lesão corporal grave (pena de reclusão de 10 a 20 anos) e o resultado morte (pena de reclusão de 12 a 30 anos) como causas de aumento. Vale ressaltar que para a configuração desses crimes não importa o consentimento da vítima ou se anteriormente já tinha tido relações sexuais.

A legislação mais recente consagra a liberdade e a dignidade sexual como os bens jurídicos protegidos pelo tipo penal, que pode ter como sujeito ativo ou passivo tanto homens quanto mulheres. A penetração não é necessária para a classificação do delito, basta ter a prática do ato libidinoso.27 O ordenamento jurídico pátrio admite a tentativa desse crime, desde que o ato seja frustrado antes de sua execução.

Não obstante os avanços legislativos acerca do crime de estupro, o cunho punitivista presente nos tipos penais não é suficiente para reprimir os atos violentos. Isso se confirma com a análise do Anuário Brasileiro de Segurança Pública disponibilizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública28: em 2020, foram 66.348 vítimas de estupro e de estupro de vulnerável, isto significa que a cada 8 minutos, uma pessoa era vítima do crime de estupro. Salienta-se que 58,8% das vítimas tinham, no máximo, treze anos e que 85,7% pertenciam ao sexo feminino. Vale recordar que esse valor não engloba os crimes de estupro ocorridos e não notificados, fato que acontece por diversos motivos, os quais serão posteriormente destacados.

Isso denota que se, por um lado, o direito penal tem funções declaradas de prevenção geral, com o objetivo de desestimular a sociedade a cometer crimes partindo da aplicação de penas, essa não se concretiza, de fato, na realidade. O crime de estupro possui complexidades - como a já mencionada revitimização e também a baixa capacidade de resolução das agências investigativas - que tornam essa estratégia apenas parcialmente bem-sucedida.

Por isso, é preciso ir além das definições jurídicas para entender o que atores sociais múltiplos têm a dizer sobre o estupro.

2.2. Definição social: a cultura do estupro

A expressão “cultura do estupro” começou a ser utilizada em 1970 pelas feministas norte-americanas, quando iniciaram um movimento antiestupro no país para denunciar violências. Contudo, ela só ganhou maior visibilidade no Brasil em 2016, após um estupro coletivo, ocorrido no Rio de Janeiro, contra uma adolescente de 16 anos.29 Susan Brownmiller, conhecida ativista feminista, afirma existir uma cultura norte-americana que apoia o estupro, por aceitar a sexualidade masculina como naturalmente agressiva e a feminina como passiva e delicada.30 Isso revela a criação de uma relação estreita entre a sexualidade e a violência.

Em contrapartida, existe um debate que questiona a utilização da palavra “cultura” na expressão, visto que, na sua literalidade, expressa um conjunto complexo, entre outros fatores, de costumes de uma sociedade.31 Por isso, existe o risco de que expressão acabe causando o efeito contrário, classificando o estupro como um acontecimento social inevitável.

Retomando, a cultura do estupro está presente na sociedade por estimular e instigar o comportamento agressivo dos homens nas relações sexuais, taxando-o como natural.32 Dessa forma, principalmente as relações heterossexuais acabam por se relacionar à sexualidade do estupro.

Tudo isso fica evidente quando se entende a intimidação que os homens empregam sobre as mulheres, mantendo-as sempre em um lugar de medo. O sistema acaba legitimando esse comportamento ao, reiteradas vezes, questionar a vítima sobre se ela tem certeza de que foi um estupro, se realmente teve uso de violência ou até mesmo se ela tentou resistir ao ato.33 É notório o despreparo das agências policiais e jurídicas como um todo para lidar com esses delitos e, principalmente, com suas vítimas.

Para esclarecer isso, analisa-se os cinco “mitos do estupro” (rape myths), elaborados por Martha Burt, que foram consolidados na sociedade para justificar a agressão, tornando mais fácil a negação do estupro:

  1. A acusação do estupro é refutada quando a vítima conhece o agressor;

  2. Agressor afirma que a mulher queria a relação, então não foi estupro;

  3. O estupro aparece quando a relação sexual é possível, como em festas e encontros;

  4. Acreditar que qualquer mulher em sã consciência tem plena capacidade de resistir ao ato;

  5. Não é culpa do homem, pois é um instinto natural não conseguir resistir a uma mulher de vestido.

Tais mitos reforçam a ideia de que o crime de estupro é aquele que acontece a noite, numa rua deserta, cometido por um homem desconhecido e assustador, que está armado e utiliza-se da violência extrema para estuprar sua vítima.34 Essa definição do estupro diminui ao extremo sua abrangência, excluindo inúmeros crimes que são cometidos por algum conhecido da vítima, muitas vezes no âmbito familiar e sem o emprego de armas. Simplesmente ignora que o fato de que o não consentimento da mulher é suficiente para classificar o ato como agressão sexual e que, muitas vezes, o agressor será um homem comum, com valores e princípios e que “nunca cometeria uma atrocidade dessas”.

Mais uma vez, quem sofre as consequências é a mulher. Não bastasse ter sofrido a violência em si, ela é desacreditada, maltratada, culpada, criticada e menosprezada35 – em outras palavras, submetida a uma “sublógica da honestidade”. O sistema penal não apoia suas vítimas, foi feito por homens e para atender unicamente aos seus interesses, o que torna compreensível a baixa notificação dos crimes de estupro.

A legislação continua na função de controlar a sexualidade feminina, punindo as “desviantes”, sendo a criminalização do aborto um exemplo claro disso, e vinculando a relação sexual da mulher somente à reprodução humana.36 A própria doutrina e o Poder Judiciário validam os questionamentos dos mencionados rape myths, quando legitimam a importância do comportamento da vítima, sobre a reação que teve no momento, o local que estava e a roupa que estava usando, analisando se a mulher teve atitudes que favoreceram o acontecimento da agressão.

Toda a atmosfera criada em volta desse crime pela legislação, pelo sistema judiciário e por seus integrantes, em vez de encorajarem suas vítimas a denunciar e perseguir uma responsabilização do agressor, desincentivam mulheres a tomarem tal atitude. É estarrecedor atestar que elas preferem ficar em silêncio, sofrendo sozinhas e perpetuando o dano psicológico e, algumas vezes, físico ao qual foram submetidas, do que falar sobre o ocorrido e serem obrigadas a reviver a situação de novo. As mulheres vitimadas muitas vezes precisam relatar o crime para várias pessoas diferentes, ou se veem obrigadas a acusarem um homem por quem todos têm apreço. O processo judicial significa que elas terão suas vozes tomadas pelo judiciário, passando por diversas situações extremamente difíceis para finalmente chegarem no momento da responsabilização do acusado e serem desacreditadas, taxadas de mentirosas e exageradas.

Em suma, a cultura do estupro legitima valores masculinos de controle, dominação, insensibilidade, competitividade, agressão e raiva37, e valores femininos de passividade e submissão. Isso gera uma visão desvalorizada e inferior do sexo feminino, o que leva aos homens a necessidade de exercerem o controle sobre as mulheres, recorrendo a violência que é aceita, fácil, possível e útil a eles,38 como uma forma de curarem suas próprias dores. Com isso, conclui-se que ambos são submetidos a papéis sociais prejudiciais aos seus próprios desenvolvimentos plenos de subjetividade, sexualidade e liberdade.

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