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Povos originários e a problemática do marco temporal na demarcação territorial.

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Agenda 22/05/2024 às 15:15

6. A SUPERAÇÃO DO MARCO TEMPORAL NO RE N. 1.017.365/SC

No julgamento do Recurso Extraordinário n. 1.017.365/SC, relatado pelo Min. Edson Fachin, conclui-se que a proteção constitucional aos “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988 e da configuração do renitente esbulho como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição.

Analisada a trajetória constitucional da tutela da posse indígena, o relator compreendeu que:

“a Constituição vigente não representa um marco para aquisição de direitos possessórios por parte das comunidades indígenas, e sim um continuum, uma sequência da proteção já assegurada pelas constituições desde 1934, e que agora, num contexto de Estado Democrático de Direito, ganham os índios novas garantias e condições de efetividade para o exercício de seus direitos territoriais, mas que não tiveram início apenas em 05 de outubro de 1998.” (FACHIN, Edson. RE N. 1.017.65/SC, 2023).

Ainda, ressaltou que a teoria do marco temporal deixa insolúveis algumas questões fundamentais para a qualificação da posse indígena, como a titularidade da área objeto da eventual discussão. Isso porque, nos termos do artigo 21 do Estatuto do Índio, “as terras espontânea e definitivamente abandonadas por comunidade indígena ou grupo tribal reverterão, por proposta do órgão federal de assistência ao índio e mediante ato declaratório do Poder Executivo, à posse e ao domínio pleno da União.”

Desse modo, a aplicação da teoria do marco temporal sem a verificação da presença indígena na data de 05 de outubro de 1988 na área considerada não é suficiente para apontar que a terra não é indígena. É preciso, antes de tudo, questionar de quem é a titularidade da área, que deve ser revertida ao patrimônio público federal, vez que a usucapião de terra pública é vedada por nosso ordenamento jurídico.

O impasse surge quando da conclusão que terra indígena não é terra devoluta. Assim, as terras não podem ter ingressado no patrimônio estadual e, por isso, não podem ser legitimamente transferidas ao patrimônio privado.

Ademais, a teoria do marco temporal ignora a situação dos índios isolados – aqueles que se refugiaram em áreas remotas e não mantêm contato regular ou significativo com a sociedade dos colonizadores8. Estando completamente alienados do modo de vida ocidental, de que modo serão feitas as provas de que essas comunidades estavam nas áreas que ocupam em 05 de outubro de 1988? Nas palavras do relator:

“Nada obstante, entender-se que a Constituição solidificou a questão ao eleger um marco temporal objetivo para a atribuição do direito fundamental a grupo étnico significa fechar-lhes uma vez mais a porta para o exercício completo e digno de todos os direitos inerentes à cidadania.” (FACHIN, Edson. RE N. 1.017.65/SC, 2023).

Nesse sentido, fixou-se a nova tese de repercussão geral (Tema 1.031 — definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena à luz das regras dispostas no artigo 231 do texto constitucional), com as seguintes conclusões:

“I - a demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena;

II - a posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos índios, das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e das necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, nos termos do §1º do artigo 231 do texto constitucional;

III - a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988, porquanto não há fundamento no estabelecimento de qualquer marco temporal;

IV - a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da configuração do renitente esbulho como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição.

V - o laudo antropológico realizado nos termos do Decreto nº 1.776/1996 é elemento fundamental para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada, de acordo com seus usos, costumes e tradições;

VI - o redimensionamento de terra indígena não é vedado em caso de descumprimento dos elementos contidos no artigo 231 da Constituição da República, por meio de procedimento demarcatório nos termos nas normas de regência

VII – as terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos índios o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes;

VIII – as terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis;

IX – são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a posse, o domínio ou a ocupação das terras de ocupação tradicional indígena, ou a exploração das riquezas do solo, rios e lagos nelas existentes, não assistindo ao particular direito à indenização ou ação em face da União pela circunstância da caracterização da área como indígena, ressalvado o direito à indenização das benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé;

X – há compatibilidade entre a ocupação tradicional das terras indígenas e a tutela constitucional ao meio ambiente.”

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7. A PROBLEMÁTICA DO EFEITO BACKLASH NA TEMÁTICA DOS POVOS ORIGINÁRIOS

No dia 20 de outubro de 2023 foi promulgada a Lei n. 14.701, que estabeleceu o marco temporal e a desoneração. Antes do julgamento do RE 1.017.365/SC, analisava-se no Senado Federal a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal paralisar o julgamento, a fim de permitir a devida discussão sobre o tema.

Todavia, o pronunciamento judicial se deu em 27 de setembro de 2023, antecedendo a promulgação da referida lei, que contou com diversos vetos presidenciais, majoritariamente derrubados pelo Congresso Nacional. Uma das principais razões para a imposição dos vetos foi a latente inconstitucionalidade dos dispositivos que fixaram o marco temporal9, uma vez que a tese já havia sido declarada inconstitucional pela Corte Superior. Tal fenômeno é chamado, pela doutrina e pela jurisprudência, de “Efeito Backlash”, que nas palavras de Júnior Nunes (2018, p. 88-89), citando Sérgio Victor (2015, p. 206):

“[...] A palavra backlash pode ser traduzida como uma forte reação por um grande número de pessoas a uma mudança ou evento recente, no âmbito social, político ou jurídico. Assim, o efeito backlash nada mais é do que uma forte reação, exercida pela sociedade ou por outro Poder a um ato (lei, decisão judicial, ato administrativo etc.) do poder público. No caso do ativismo judicial, como afirma George Marmelstein, “[...] o efeito backlash é uma espécie de efeito colateral das decisões judiciais em questões polêmicas, decorrente de uma reação do poder político contra a pretensão do poder jurídico de controlá-lo”. Nas palavras do brilhante professor de Harvard Cass Sunstein, o efeito backlash é uma “intensa e sustentada rejeição pública a uma decisão judicial, acompanhada de medidas agressivas para resistir a essa decisão e remover a sua força legal”.

Mais preocupante do que a falta de consenso entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, é a insegurança jurídica nas temáticas referentes aos povos originários. É sabido que as decisões emanadas pelo Supremo Tribunal Federal não vinculam o Poder Legislativo, que poderá propor uma nova legislação em oposição total ao que fora decidido. Os diferentes entendimentos acerca do tema parecem não ser mais objeto de discussão, mas sim de imposição de poder sobre poder. A finalidade não está mais em chegar a um consenso técnico e razoável – luta-se pela imposição de uma ideologia, ainda que contrário ao interesse público e maléfico às minorias.

Por trás de uma reação legislativa que cerceia drasticamente os direitos dos povos originários, preserva-se um recôndito etnocídio, consistente na imposição forçada de um processo de aculturação a uma cultura por outra mais poderosa, conduzindo à destruição dos valores sociais e morais tradicionais. É, portanto, a ação que promove a destruição dos índios pelos não-índios.10 A gólgota ocupada pelos povos originários vem da incúria perpetrada pelos não-índios durante séculos. Infelizmente, a problemática está longe de seu termo.


8. CONCLUSÃO

Nota-se, diante do exposto, que a tese do marco temporal, fixada pelo Supremo Tribunal Federal no Caso Raposa Serra do Sol em 2014 e utilizada diversas vezes como parâmetro de julgamento em outras ações similares, deu azo para que, quase dez anos depois, o Congresso Nacional confirmasse tal retrocesso por meio de lei.

Entretanto, com objetivo de coarctar o expansionismo do latente etnocídio perpetrado pelos congressistas, o Supremo Tribunal Federal, em 2023, declarou a inconstitucionalidade do marco temporal, afastando a data de 05 de outubro de 1988 como marco de ocupação de terras e o renitente esbulho para legitimar a posse, consagrando um grande avanço para os povos originários.

Conforme muito bem aponta de José Afonso da Silva (2016, p.10), se há um marco temporal a ser firmado, seria o de 30 de julho de 1611, data da Carta Régia promulgada por Felipe III, na qual foram reconhecidos os direitos originários dos índios sobre as terras e, em sede constitucional, 16 de julho de 1934 – data da promulgação da Constituição de 1934 – a primeira a reconhecer o direito originário dos indígenas às suas terras tradicionalmente ocupadas.

Porém, a problemática está muito longe de seu fim e a intenção do presente artigo não consiste em esgotar a temática ou achar uma solução, mas sim, alertar a sociedade para esse conflito entre os poderes que possui o condão de extirpar os direitos ora conquistados pelos povos originários.

O chamado “efeito backlash”, também conhecido como reação legislativa, está sendo amplamente utilizado nos embates ideológicos entre o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional, e o questionamento que deve ser feito é: em até que ponto essa reação acontece em prol do povo, por meio de seus representantes, ou pelo mero capricho de sustentar ideologias que exterminam determinados grupos?

Como bem colocou o Min. Edson Fachin no julgamento do RE N. 1.017.365/SC, o contexto social e político jamais espelhou a proteção das terras e do próprio modo de vida indígena; ao revés, é fato notório as condições graves e de por vezes trágicas nas quais, até os dias atuais, vivem os índios em nosso país.


REFERÊNCIAS

BARBOSA, Samuel. Usos da história na definição dos direitos territoriais indígenas no Brasil. In: CUNHA, Manuela Carneiro 88 Em elaboração RE 1017365 / SC da; BARBOSA, Samuel (orgs). Direito dos povos indígenas em disputa. São Paulo: Editora Unesp, 2018, p. 133.

Disponível em <https://www.politize.com.br/etnocentrismo/> Acesso em: 18/03/2024.

Disponível em https://www.politize.com.br/descobrimento-do-brasil/. Acesso em: 10/02/2024.

Disponível em: <Backlash e tensões entre Legislativo e Judiciário no marco temporal das terras indígenas (conjur.com.br)> Acesso em: 18/03/2024.

Disponível em: <brasildefato.com.br> Acesso em: 18/03/2024.

Disponível em: <Nova lei sobre terras indígenas é sancionada com veto ao marco temporal - Notícias - Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br)> Acesso em: 10/03/2024.

Disponível em: https://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action&co_obra=17424 Acesso em: 18/03/2024.

Disponível em: https://g1.globo.com/pernambuco/vestibular-e-educacao/noticia/2013/10/descobrimento-foi-na-verdade-uma-invasao-terra-dos-indios.html

MIRANDA, Comentários à Constituição de 1946, vol. V, 1953, p. 335/336.

NUNES JÚNIOR, Curso de Direito Constitucional, 2ª ed., 2018, p. 88-89

RE 183188, Relator(a): CELSO DE MELLO, Primeira Turma, julgado em 10/12/1996, DJ 14-02-1997 PP-01988 EMENT VOL-01857-02 PP-00272)

ROCHA, Everardo Pereira Guimarães. O que é etnocentrismo?. Col. Primeiros Passos. 5. Ed. São Paulo: Brasiliense, 1988

SANTANA, Carolina. Direitos territoriais indígenas e o marco temporal: o STF contra a Constituição. Índios direitos originários e territorialidade. 2018. Editora Anpr.

SILVA, José Afonso da. Parecer jurídico. 2016. P. 10. Disponível em: <https://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/documentos-e-publicacoes/artigos/docs_artigos/jose-afonso-da-silva-parecer-maio2016-1.pdf>. Acesso em: 18/03/2024.

SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Dos Índios. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lênio Luiz; MENDES, Gilmar Ferreira. Comentários à Constituição do Brasil. 2.ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 2252

SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Dos Índios. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lênio Luiz; MENDES, Gilmar Ferreira. Comentários à Constituição do Brasil. 2.ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 2256

SOUZA, Wanessa de. As Grandes Navegações e o Descobrimento do Brasil. Universidade Federal de Minas Gerais, Minas Gerais.

VICTOR, Sérgio A. F. (Diálogo institucional e controle de constitucionalidade, 2015, p. 206)

VITORELLI, Edílson. Estatuto do Índio: Lei 6.001/1973. 3.ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 189

VITORELLI, Edilson. Estatuto do Índio: Lei 6.001/1973. 4.ed. Salvador: JusPODIVM, 2018, p. 177-178


Notas

2 A palavra etnocentrismo é um conceito que vem dos radicais “etno” (etnia) e “centrismo” (centro), portanto, etnocentrismo é o ato de julgar a cultura do outro baseado na sua própria crenças, moral, leis, costumes e hábitos. Os europeus acreditavam que a cultura europeia era a certa e que todas as outras culturas deveriam compartilhar dos mesmos valores. ROCHA, Everardo Pereira Guimarães. O que é etnocentrismo?. Col. Primeiros Passos. 5. Ed. São Paulo: Brasiliense, 1988.

3 SANTANA, Carolina. Direitos territoriais indígenas e o marco temporal: o STF contra a Constituição.

4 (Petição n. 3.388. ED, relator o ministro ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 23/10/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJE-023 DIVULG 3-2-2014 PUBLIC 4-2-2014).

5 STF. Segunda Turma. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 29.087/DF, decisão em 16 set. 2014. Inteiro teor do acórdão. Extrato de Ata: p. 71-73

6 Nesse sentido, assim se manifestou o STF no agravo regimental ao acórdão no Recurso Extraordinário com Agravo n. 803.642: “Também não pode servir de comprovação de ‘esbulho renitente’ a sustentação desenvolvida no voto-vista proferido no julgamento do acórdão recorrido, no sentido de que os índios Terena pleitearam junto aos órgãos públicos, desde o início do século XX, a demarcação das terras do chamado Limão Verde, nas quais se inclui a Fazenda Santa Bárbara. Destacou-se, nesse propósito (a) a missiva enviada em 1966 ao Serviço de Proteção ao Índio; (b) o requerimento apresentado em 1970 por um vereador Terena à Câmara Municipal, cuja aprovação foi comunicada ao Presidente da Funai, através de ofício, naquele mesmo ano; e (c) cartas enviadas entre 1982 e 1984, pelo Cacique Amâncio Gabriel, à Presidência da Funai. Essas manifestações formais, esparsas ao longo de várias décadas, podem representar um anseio de uma futura demarcação ou de ocupação da área; não, porém, a existência de uma efetiva situação de esbulho possessório atual”.

7 STF, 2014, relatora a ministra Cármen Lúcia.

8 Novo grupo indígena isolado é identificado na | Direitos Humanos (brasildefato.com.br

Sobre a autora
Beatriz Bullo

Delegada de Polícia do Estado de São Paulo. Possui graduação em Direito pela Universidade Santa Cecília (2020), especialização em Direito Processual Civil (2021), em Direito do Consumidor (2022) e em Direitos Humanos (2022). Foi advogada (2020-2023) e professora de Direito Penal Parte Geral, Direito Penal Parte Especial, Legislação Penal Especial e Ética Profissional da Faculdade de São Vicente/UNIBR (2022-2024).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Beatriz Bullo. Povos originários e a problemática do marco temporal na demarcação territorial.: O etnocídio recôndito do possível efeito backlash. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7630, 22 mai. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/108748. Acesso em: 5 nov. 2024.

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