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Aplicação da teoria da imputação objetiva ao caso do estupro da jovem abandonada desacordada na calçada por motorista

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O motorista tem dever de cuidado com a vítima inconsciente? Deve responder pelo crime de estupro de vulnerável ou pelo abandono de incapaz?

Resumo: Este artigo discute o incidente de estupro envolvendo a jovem que foi abandonada desacordada no passeio de sua por um motorista de aplicativo em Belo Horizonte. O tema é importante em função da atual discussão sobre o episódio, especialmente em relação à conduta do motorista que deu causa ao estupro. Assim, analisou-se a possibilidade da aplicação da Teoria da Imputação Objetiva de Roxin para apurar a responsabilidade criminal do motorista. O objetivo geral verificou se o motorista pode responder objetivamente pelo crime de estupro. Para tal, foi abordada a teoria, constatada a teoria adotada pelo Código Penal e o entendimento do Superior Tribunal de Justiça. Realizou-se a apreciação dos crimes de estupro e estupro de vulnerável. O estudo de caso tratou do dever de cuidado e da aplicação da teoria à conduta do motorista. Por meio da metodologia estudo de caso e pesquisa bibliográfica obteve à conclusão de que o motorista não poder responder de forma objetiva pelo crime de estupro. Porque o risco criado e concretizado pela sua conduta gerou um resultado típico diverso.

Palavras-chave: Abandono. Estupro. Responsabilidade criminal. Teoria Imputação Objetiva.


1. INTRODUÇÃO

O presente artigo versa sobre o estudo do caso conhecido como estupro de BH, sob a ótica da aplicabilidade da teoria da imputação objetiva. Em 30/07/2023, uma mulher de 22 anos foi vítima de estupro depois de ter sido deixada desacordada no passeio de sua casa por um motorista de aplicativo. Este tema é relevante devido à discussão atual do caso, na esfera jurídica, social e moral, especialmente em relação às condutas que contribuíram para o resultado. Por esse motivo, optou-se em delimitar o tema e discorrer acerca da responsabilidade criminal do motorista.

Diante do exposto, surgiu o seguinte problema: a possibilidade da aplicação da teoria da imputação objetiva nesse caso, e consequentemente a responsabilização penal do motorista pelo crime de estupro de vulnerável. É possível perceber alguns desdobramentos jurídicos em torno desta questão como o dever de agir do motorista; a divergência da doutrina sobre a imputação do resultado nos casos de crimes omissivos impróprios.

Conforme a teoria da imputação objetiva, a hipótese inicial é no sentido de que a teoria tem aplicação no caso pelo fato da conduta ter produzido um risco juridicamente proibido. Mas, para chegar à resposta definitiva é necessária uma análise mais profunda dos objetivos gerais e específicos, e assim: explicar a teoria da imputação objetiva; verificar qual é a teoria adotada pelo Código Penal; avistar qual é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça; identificar quem pode ser considerado vulnerável no crime do artigo 217-A do Código Penal, a fim de compreender melhor o caso e fazer o estudo.

No que concerne à metodologia, optou-se pelo estudo de caso, e pesquisa bibliográfica, a partir da análise de suas implicações no âmbito do Direito Penal, à luz da teoria da imputação objetiva. Para isto, foi feito o estudo documental através de matérias jornalísticas, uma vez que as investigações e a ação tramitam em segredo de justiça, bem como revisão literária dos autores Cezar R. Bitencourt, Guilherme de S. Nucci, Luís Greco, dentre outros especialistas no tema, leis e jurisprudências. Foi empregada a abordagem qualitativa, pois ela visa analisar, descrever e compreender o fenômeno de forma mais aprofundada, e o método dedutivo, devido ao estudo contemplar a aplicação ou não da teoria no caso eleito.

Para tanto, o artigo foi divido em três seções: a primeira seção abordou o conceito e os critérios da teoria, constatou a teoria adotada pelo Código Penal e o entendimento do Superior Tribunal de Justiça. Já a segunda seção fez uma breve consideração sobre a cultura do estupro e analisou os elementos e características dos crimes de estupro e estupro de vulnerável. E a terceira seção estudou o caso, apreciou o dever de cuidado e a aplicação da teoria à conduta do motorista.


2. TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA

Inicialmente, o propósito desta seção é explicar a teoria da imputação objetiva. Por essa razão, as ideias foram distribuídas da seguinte maneira: no primeiro tópico será abordada a teoria da imputação objetiva segundo Claus Roxin trazendo o conceito e seus critérios normativos. O segundo tópico verifica e expõe a teoria empregada pelo Código Penal brasileiro. E, por fim, o objetivo do terceiro tópico é mostrar o entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre a teoria elaborada por Roxin.

2.1. TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA SEGUNDO CLAUS ROXIN

Quando se fala em teoria da imputação objetiva o entendimento inicial é de que uma pessoa pode responder objetivamente por um crime no qual sua conduta originou o resultado. Todavia, o principal intuito dessa teoria é a apuração dos elementos normativos para, então, verificar a possibilidade de responsabilidade criminal.

A obra dos autores Junqueira e Figueiredo traz o conceito da teoria criada pelo alemão Claus Roxin, uns dos penalistas mais renomado na atualidade:

Na explicação do próprio Roxin em sua forma mais simplificada a teoria da imputação objetiva diz que um resultado causado pelo agente só deve ser imputado como sua obra se preencher o tipo objetivo unicamente quando o comportamento do autor cria um risco não permitido para o objeto da ação; quando o risco se realiza no resultado concreto e quando o resultado alcançado se encontra dentro do âmbito de proteção do tipo (Estudos de direito penal, p. 104). (Roxin, 2006, p. 104. apud Junqueira e Figueiredo, 2024, p. 119)

Como se pode notar, Roxin aponta que a imputação objetiva depende da presença de três requisitos essenciais na conduta do agente: a criação de um risco proibido; que o risco promova o resultado; e o resultado venha alcançar o tipo penal.

Nessa concepção afirma Bitencourt (2024, p. 163), que a teoria de Roxin tem por base o risco permitido. Um risco permitido é aquele aceito pela sociedade, que atende às regras de convívio e não gera dano ao outro. Dessarte, havendo a criação de um risco permitido não se admite a imputação objetiva.

Outro fato importante é que a teoria somente terá cabimento nos crimes materiais, sendo necessária a concretização do resultado, logo, “[...] a imputação objetiva é de antemão impossível nos delitos comissivos se o autor não causou o resultado[...]” (Roxin, 1997, p. 345. apud Junqueira e Figueiredo, 2024, p. 119). Dessa forma, após essas considerações preliminares, serão analisados os critérios.

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a) criação de um risco não permitido ou proibido

A conduta deve ser vista pela sociedade como algo reprovável, precisa também ter criado perigo ao bem jurídico de outrem para ser reputada como juridicamente relevante e não estar enquadrada no risco permitido. No entendimento de Bitencourt (2024, p. 164), “[...] se trata de uma conduta perigosa, idônea para a produção de um resultado típico, não coberta pelo risco permitido. [...]”. Isso quer dizer, não é qualquer risco causado que irá apresentar um perigo expressivo a ponto de configurar o primeiro critério para a imputação. Assim, condutas que afastam a criação de risco proibido por gerarem risco irrelevante, ou risco permitido, até mesmo a diminuição do risco, são tidas por excludentes da imputação objetiva, de acordo com a teoria.

b) realização do risco não permitido no resultado

No ponto de vista de Roxin é crucial a verificação da realização do risco proibido no resultado. Após a criação desse risco pode suceder que o próprio agente ou inclusive um terceiro impeça o seu cumprimento. Por isso, as condutas que criaram o risco proibido, mas não efetivaram o perigo criado pela conduta ou inexistiu a realização do risco não permitido, também se tornam excludentes da imputação. Consoante a afirmação dos autores Figueiredo e Junqueira (2024, p. 123) “[...] A ação gera para o bem jurídico um risco determinado. Só é resultado imputável a concretização desse risco determinado. [...]”. Para a conduta ser a responsável pelo resultado, deve tanto originar certo risco quanto materializá-lo.

c) resultado incluído no alcance do tipo

O terceiro critério proposto por Roxin é o resultado produzido estar contido no alcance do tipo penal, ou seja, obrigatoriamente o efeito do perigo criado pela conduta deve resultar em um tipo, crime ou contravenção penal. Caso o agente com sua conduta criasse o risco não permitido de ofender a integridade física de alguém e esse risco se realizasse, lesionado de forma permanente um membro do corpo, essa lesão tem previsão em algum tipo penal? Sim, a conduta corresponde ao crime de lesão corporal grave, artigo 129, § 1.º, inciso III, do Código Penal. Isto significa o alcance do tipo. De modo igual, a conduta que contém os três critérios admite a imputação objetiva do resultado. Se o risco proibido não se concretizar em resultado típico, afasta-se a imputação objetiva e a tipicidade.

Luís Greco (2014, p. 137) ressalta que quando o resultado do tipo decorrer de contribuições posteriores de terceiros acontece a exclusão da imputação nos casos de culpa grave ou dolo de terceiro. Embora uma conduta crie certo risco proibido e ela venha a se concretizar em resultado típico por dolo de terceiro, não há que se falar em responsabilização criminal, porque o dolo de terceiro no resultado é excludente de imputação objetiva.

Ante o exposto, percebe-se a importância da teoria da imputação objetiva elaborada por Roxin, em razão da previsão de três critérios normativos nos quais permitem um juízo de valor mais profundo para a apreciação da imputação. Também foi constatado que após o preenchimento dos requisitos objetivos será analisada a imputação subjetiva, existência de dolo ou culpa, para, somente assim o agente responder criminalmente.

2.2. TEORIA UTILIZADA PELO CÓDIGO PENAL

Em relação à causalidade, o Código Penal optou pela utilização da teoria da equivalência dos antecedentes com base no artigo 13 caput, (Brasil, 1940): “O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”. Para que haja a imputação do crime a conduta do agente, ação ou omissão, tem que ter promovido resultado.

A constatação acima manifesta-se pelo nexo causal, em outros termos, é a conexão existente entre conduta e o resultado. Deve-se apurar as condutas que antecederam o resultado e verificar se elas são imprescindíveis para a existência deste, caso não seja, rompe-se o nexo causal e inexiste a imputação.

Nesse contexto, segundo a explicação Nucci (2023, p. 381) na teoria da equivalência dos antecedentes “forma-se o nexo causal levando-se em consideração todas as condutas anteriores ao resultado sem as quais este não ocorreria”. Nota-se que essa teoria possui lacunas, uma vez que não estabelece critérios normativos para aferir quais condutas são relevantes para a criação do resultado, assim, serão consideradas todas. Por essa razão é criticada pela doutrina por permitir o regresso ao infinito.

Ao que se percebe, no contexto atual a teoria adotada pelo Código Penal está defasada e outras teorias têm sido desenvolvidas para aprimorar e corrigir suas falhas, como é o caso da teoria da imputação objetiva criada para preencher as lacunas da teoria da equivalência dos antecedentes.

Por esse motivo, diante de sua repercussão e relevância jurídica está em tramitação no Senado Federal o Projeto de Lei n.º 236 de 2012 para reformar o Código Penal e introduzir a teoria da imputação objetiva no parágrafo único do artigo 14: “o resultado exigido somente é imputado a quem lhe der causa e se decorrer da criação ou incremento do risco tipicamente relevante, dentro do alcance do tipo”, (Brasil, 2012). Caso seja aprovado, irá trazer critérios normativos para serem utilizados na comprovação do nexo de causalidade.

2.3. ENTENDIMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA SOBRE A TEORIA

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem aceitado a teoria da imputação objetiva elaborada por Roxin, e aplicado os critérios para fundamentar suas decisões, como se pode observar nesses dois julgados recentes a seguir:

Habeas Corpus de n.º 704.718 de São Paulo, (Brasil, 2023):

[...] Nem mesmo a aplicação da teoria da imputação objetiva, mencionada pela zelosa Defesa, conduziria a outra conclusão. Como se sabe, “[p]ara a teoria da imputação objetiva, o resultado de uma conduta humana somente pode ser objetivamente imputado a seu autor quando tenha criado a um bem jurídico uma situação de risco juridicamente proibido (não permitido) e tal risco se tenha concretizado em um resultado típico” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: Parte geral: arts. 1. a 120. 27. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 161). Nos limites cognitivos possibilitados na via do habeas corpus, parece evidente que, ao dirigirem suas ações contra vítima idosa (um senhor de 84 anos) e usarem de exacerbada violência, os Pacientes criaram, sim, um risco juridicamente proibido – conclusão contrária seria impensável à luz do ordenamento jurídico brasileiro. Esse risco, concretizou-se em um resultado típico previsto justamente no tipo imputado aos Réus (art. 157, § 3.º, inciso II, do Código Penal) [...].

(HC n. 704.718/SP, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 16/5/2023, DJe de 23/5/2023.)

A decisão proferida acima evidencia a aplicação da teoria para atribuir a imputação objetiva quando há a criação de um risco não permitido pelo Ordenamento Jurídico e ele se concretiza no resultado, tal como observado neste caso específico de latrocínio contra uma idosa.

Por outro lado, no Habeas Corpus de n.º 900.720 do Maranhão, a decisão foi a não imputação objetiva por inexistir os critérios da teoria, (Brasil, 2024):

[...] Destaca que os fatos imputados ao paciente são atípicos, uma vez que “se a própria beneficiária abriu mão da proteção que lhe foi conferida, não há razão para a responsabilização criminal daquele que descumpriu a ordem judicial” (fl. 17), não havendo, assim, a criação ou o implemento de um risco relevante, nos termos do que preceitua a teoria da imputação objetiva. [...]

(HC n. 900.720, Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Dje de 05/04/2024.)

O Tribunal identifica as características importantes de serem analisadas no caso concreto e utiliza seus elementos objetivos para a imputação. Assim, cada caso deve ser apreciado para verificar a possibilidade de sua aplicação tal como tem procedido o STJ.

Diante do exposto, a teoria da imputação objetiva é um conceito doutrinário moderno que está ganhando força no Brasil, dado que, é utilizada atualmente pelos Tribunais para fundamentar suas decisões.


3. ESTUPRO

A finalidade dessa seção é abordar o tema estupro. No primeiro tópico será feita uma breve consideração sobre a cultura do estupro para a compreensão posterior do caso. O próximo tópico abordará a análise dos elementos que compõem o crime de estupro conforme descrito no artigo 213 do Código Penal. E o terceiro tópico tem por objetivo especificar as pessoas consideradas vulneráveis conforme o artigo 217-A do referido Código.

3.1. CULTURA DO ESTUPRO

A cultura do estupro ocorre desde a formação da sociedade, mas, em pleno século XXI é pouca discutida. Teve início com o patriarcado, no qual homem era o detentor de poder e a mulher um mero objeto, sem ter o direito de dizer não a qualquer violência sexual.

Essa situação começou a mudar com igualdade de direitos e deveres entre os gêneros estabelecidos no artigo 5.º da Constituição Federal de 1988. Contudo, ainda existe forte estigmatização da mulher, vítima que passa a ser ré, e, com isso, prevalece o constrangimento e o medo de denunciar.

Devido à cultura do estupro quem sofre a agressão acaba responsável por algo que, na verdade não cometeu. A sociedade tende a culpar a vítima pelo abuso sofrido, dizendo “ela provocou, estava usando roupas curtas”. O que muitos não compreendem é que a culpa não é da vítima, mas do agressor.

Portanto, essa percepção machista da realidade tem que ser mudada, visto que, além da violência física, ocorre a violência moral e psicológica, bem mais difíceis de serem curadas.

3.2. CRIME DE ESTUPRO DO ARTIGO 213 DO CÓDIGO PENAL

O Código Penal em seu artigo 213 prevê o crime de estupro e faz menção a seguinte conduta incriminadora, (Brasil, 1940):

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:

Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

§ 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.

§ 2º Se da conduta resulta morte:

Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.

O estupro é um crime comissivo, o tipo penal requer uma ação de constranger uma pessoa a praticar conjunção carnal, ou ato libidinoso, forçados ou sem o consentimento. É importante salientar que se trata da prática da conjunção carnal, que consiste na introdução total ou parcial do pênis na vagina, sendo dispensável a consumação do ato sexual. Já o ato libidinoso poder ser a masturbação feita na vítima ou o agente forçar a vítima fazer nele, passar a mão em partes do corpo, ou da forma mais agressiva o coito anal, ou oral. Por se tratar de crime material a conduta incriminadora deve se concretizar no resultado, e, consequentemente, se comprova por meio de prova pericial.

Segundo Bitencourt (2023, p. 32), “[...] O bem jurídico protegido, a partir da redação determinada pela Lei n. 12.015/2009, é a liberdade sexual da mulher e do homem”. Nota-se que o bem jurídico tutelado é a liberdade sexual, isso é, o direito de escolher com quem se tem relação sexual, poder falar sim ou não e ser respeitado pelo parceiro ou cônjuge.

Outro componente relevante do crime é o elemento subjetivo dolo. “É o dolo. Não existe a forma culposa. Há, também, a presença do elemento subjetivo específico, consistente na finalidade de obter a conjunção carnal ou outro ato libidinoso, satisfazendo a lascívia [...]” (Nucci, 2023, p. 13). Portanto, não existe a previsão da culpa. O tipo exige o dolo, isto é, ter a consciência de que estupro é crime e a vontade de realizá-lo, bem como a finalidade destinada em atingir o prazer sexual.

Quanto a pena, esta pode variar de seis a dez anos de reclusão. Contudo, as qualificadoras estabelecidas nos § § 1.º e 2.º têm a função de agravar a pena. Como ocorre quando a vítima tem entre quatorze e dezoito anos incompletos e nos casos em que a conduta acarreta lesão corporal grave a pena é de oito a doze anos de reclusão. E em caso de óbito da vítima, a pena é aumentada para doze a trinta anos.

Perante o exposto, observa-se que o estupro é considerado o crime contra a dignidade sexual mais grave, por isso é hediondo de acordo com o artigo 1. °, inciso V, da Lei n.º 8.072/1990.

3.3. QUEM PODE SER CONSIDERADO VULNERÁVEL NO CRIME DO ARTIGO 217-A DO CÓDIGO PENAL

O crime de estupro de vulnerável, estabelecido no artigo 217-A do Código Penal descreve a pessoa apontada como vulnerável, isto é, aquela que requer proteção. Com o propósito de compreender sobre a vulnerabilidade de que se trata o crime, Pereira Júnior (2021, p. 1888) apresenta o relevante conceito do autor Prado:

A vulnerabilidade, seja em razão da idade, seja em razão do estado ou condição da pessoa, diz respeito a sua capacidade de reagir a intervenções de terceiros quando no exercício de sua sexualidade. É dizer: o sujeito passivo é caracterizado como vulnerável quando é ou esta suscetível à ação de quem pretende intervir em sua liberdade sexual, de modo a lesioná-la.

(Prado, 2011, p. 832. apud Pereira Júnior, 2021, p. 1888)

Assim, percebe-se a situação de vulnerabilidade na pessoa que não tem o discernimento, condição física ou psíquica para praticar ou se defender do ato sexual. O referido artigo 217-A elenca os sujeitos passíveis de serem reputados por vulneráveis, (Brasil 1940):

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

§1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. [...].

Em consonância ao disposto nota-se semelhança entre a conduta deste, com a do artigo 213, já examinada. Em suma, tal crime envolve a prática de atos de conjunção carnal ou libidinosos, porém a distinção está na condição da vítima. Deste modo, existem três grupos de pessoas vulneráveis, cada um com uma modalidade de vulnerabilidade, (Bitencourt, 2023, p. 66): a) menor de catorze anos, absoluta; b) pessoa portadora de enfermidade ou deficiência mental não possuidor de capacidade necessária para a prática do ato sexual, relativa; e c) aquele que por outra razão não pode apresentar qualquer tipo de resistência, por interpretação analógica.

a) menor de catorze anos

O tipo incriminador ressalta a qualidade da vítima de estupro devido à grave violação da liberdade e dignidade sexual do menor, aqui, de catorze anos. Todos os dias várias crianças são alvos desta crueldade, e, na maioria dos casos, dentro da própria casa por um familiar. É um abuso tão grave, uma vez que deixa sequelas físicas e mentais difíceis de serem tratadas. Por esse motivo o grau de vulnerabilidade é absoluto, não importando a concordância ou o histórico sexual da vítima, § 5.º, do artigo 217-A, do referido Código.

b) enfermo ou deficiente mental sem o discernimento para praticar o ato

O legislador foi pertinente ao especificar o sujeito passivo que se enquadra nesse tipo. Não será todo doente ou portador de deficiência mental que irá configurar vulnerável, somente aqueles sem discernimento para o ato sexual. Dado isso, verifica-se a existência de vulnerabilidade relativa consoante ao § 1.º, do artigo 217-A.

c) aquele que não pode oferecer resistência

Corresponde à pessoa que se encontre temporariamente vulnerável em virtude do uso de medicamento, ingestão de álcool ou de substâncias entorpecentes que tire seu estado de plena lucidez para consentir ou resistir a qualquer ato sexual cometido por terceiro. Em tais casos, é imprescindível a aferição do grau de incapacidade de resistência por meio de interpretação analógica do juiz. Assim, se for comprovada a incapacidade plena tem-se a vulnerabilidade absoluta e consequentemente o crime, caso contrário, de vulnerabilidade relativa afasta-se o crime.

Atualmente, o grau de incapacidade da pessoa que não está na condição de apresentar resistência tem originado muita discussão na esfera judicial porque o legislador deixou lacunas e requer o uso de analogia. Por isso, ocorrem situações nas quais existiu o estupro, mas devido à dificuldade da análise do grau de incapacidade, este não resta configurado.

Por esse motivo, encontra em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n.º 228/2023. Cujo objetivo é a alteração no artigo 213 do Código Penal visando esclarecer o conceito e elementos do crime de estupro. Se aprovado, o estupro passará a ser definido como “ato de constranger alguém a ter conjunção carnal em caso de aproveitamento de sua vulnerabilidade ou ausência de sentido que o impeça de consentir expressamente”, (Brasil, 2023). Sem dúvidas, contribuirá para a análise.

Em face de tudo o que foi abordado nessa seção, o estupro é um tema juridicamente relevante porque envolve várias vertentes, mas é fundamental a atuação do Estado na prevenção do crime, a fim de evitar novos casos.

Sobre as autoras
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Jacqueline Aparecida; SANTOS, Janaina Alencar. Aplicação da teoria da imputação objetiva ao caso do estupro da jovem abandonada desacordada na calçada por motorista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7631, 23 mai. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/109468. Acesso em: 18 out. 2024.

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