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Aplicação da teoria da imputação objetiva ao caso do estupro da jovem abandonada desacordada na calçada por motorista

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4. ESTUDO DO CASO

O estupro da jovem abandonada desacordada na calçada por motorista de aplicativo em Belo Horizonte causou grande repercussão em Minas Gerais, como também comoveu o Brasil. Segundo fontes do Estado de Minas, na madrugada do dia 30 de julho de 2023, ao sair de um show de pagode no estádio do Mineirão, o amigo da jovem solicitou uma corrida por aplicativo para levá-la até sua casa. Todavia, ao chegar no endereço, ela estava desacordada. O motorista saiu do carro e tentou contato com o irmão da jovem, mas ninguém atendeu o interfone, aguardou um tempo e como nenhum familiar apareceu retirou ela do carro e a colocou na calçada com a ajuda de motociclista que passava no local. Minutos depois, um homem veio na direção da mulher que estava sozinha a coloca em suas costas e caminha até um campo de futebol, com a finalidade de praticar o estupro.

4.1. AS CONDUTAS QUE PRECEDERAM O CRIME

O estupro sobreveio de outras condutas penalmente relevantes cometidas anteriormente por pessoas diferentes: amigo, motorista, motociclista e homem suspeito de cometer o crime.

A primeira delas envolve o amigo da jovem que contratou um motorista de aplicativo para levá-la até sua residência e compartilhou a viagem com o seu irmão. Sabe-se que houve ingestão de álcool pela vítima e no momento que o carro chegou ao local do embarque, as imagens das câmeras de segurança do local mostram o amigo conduzindo a jovem até a entrada no veículo. O Ministério Público interpretou essa conduta como omissão de socorro, fazendo a denúncia deste, conforme o artigo 135 do Código Penal, (Brasil, 1940):

Art. 135. – Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública:

Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

Observa-se que a conduta é omissiva não dar assistência ou não acionar a autoridade competente com o objetivo de socorrer as pessoas citadas acima, que necessitem de ajuda. Nucci (2023, p. 205) expressa essa perspectiva:

“[...] A ordem de utilização dos núcleos é bem clara: em primeiro lugar, podendo fazê-lo sem risco pessoal, deve o sujeito prestar socorro à vítima; não conseguindo prestar a assistência necessária ou estando em risco pessoal, deve chamar a autoridade pública [...]”.

Em razão disso, a conduta do amigo não se enquadra ao tipo penal porque no momento em que ele despede da amiga ela estava passando bem e não apresentava nenhum risco iminente e grave de encontro à sua vida ou saúde.

A segunda está relacionada com as ações do motorista. Ao chegar no local de destino, percebe-se algo incomum, pois a jovem não desce do carro. O motorista sai do carro e vai até a casa dela interfonar, volta para o interior do veículo. Chama outra vez e sem conseguir retorno pede ajuda a um motociclista e os dois retiram a mulher do veículo e a colocam na calçada desacordada. Ele interfona mais uma vez, e sem resposta abandona sua passageira. Em decorrência dessas ações, o motociclista foi denunciado pelo crime de omissão de socorro, com base no artigo 135, enquanto o motorista foi denunciado por estupro de vulnerável por omissão imprópria, de acordo com o artigo 217-A, ambos do Código Penal.

Nessa ocasião a jovem precisava de socorro, mais precisamente, ser levada ao hospital porque já tinha perdido os sentidos. Tanto é que ao ser carregada de cabeça para baixo não demonstra nenhuma reação.

A terceira conduta e a mais repulsiva foi do agente que cometeu o estupro, pelo fato da vítima não ter condições de oferecer resistência o crime é o estupro de vulnerável, com a pena maior devido o estado em que se encontrava a jovem.

O processo tramita em segredo de justiça, nos termos do artigo 234-A do Código Penal, uma vez que o seu objetivo é averiguar crimes contra a dignidade sexual e preservar a intimidade da vítima. Sendo assim, as informações do caso são obtidas através da mídia. De acordo com fatos divulgados pelo G1 que teve acesso à decisão da 10.ª Vara Penal de Belo Horizonte, o amigo e o motociclista foram denunciados por omissão de socorro. Na medida em que o amigo foi inocentado e o motociclista responde o processo em outro estado. O autor do estupro recebeu uma condenação de 10 anos, 8 meses e 10 dias.

Por outro lado, o motorista denunciado pelo estupro de vulnerável por omissão imprópria foi absolvido do crime, pelo juiz entender que a sua conduta alcançou o tipo penal previsto no artigo 133 do referido Código abandono de incapaz. (Brasil, 1940): “abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono”. Analisando a conduta significa deixar sozinho, desamparado, sem a assistência apropriada. Isto é, a vontade e a consciência de abandonar a pessoa que está debaixo de sua proteção, podendo ser cuidado, guarda, vigilância ou autoridade. É indispensável a incapacidade de defender-se dos perigos iminentes (Nucci, 2023, p. 198).

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Mesmo o crime sendo próprio e o tipo exigir dever de cuidado entre os sujeitos ativo e passivo, nesse caso, utilizando de analogia, resta comprovado o dever de vigilância por parte do motorista desde o momento em que a jovem entrou no carro. Esperava-se que ela saísse do veículo após ter chegado ao seu destino, não ser retirada à força e abandonada desfalecida na calçada incapaz de se defender. Logo, o entendimento do juiz é o mais apropriado ao caso.

4.2. DEVER DE CUIDADO DO MOTORISTA

No que diz respeito a atitude do motorista surge o confronto em torno do dever de agir, condição para a imputação do resultado no crime omissivo impróprio.

De acordo com os autores Junqueira e Figueiredo (2024, p. 103), no crime omissivo impróprio o agente responde pelo resultado de um crime comissivo por não fazer algo para o impedir, possuindo o dever de realizá-lo. Logo, o dever de agir intenta a evitabilidade do resultado material.

Ademais, assevera Bitencourt (2024, p. 155), que a omissão imprópria demanda três pressupostos de existência, são eles: a) poder agir; b) evitabilidade do resultado; e c) dever de impedir o resultado.

a) poder de agir: é a condição física de poder agir, sem colocar sua vida em risco. É óbvio que o motorista podia agir naquele momento. Quando voltou para o carro após interfonar na casa da jovem, ele tinha condições de deixá-la em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) mais próxima, ao invés de abandoná-la na calçada.

b) evitabilidade do resultado: é atuar de forma a evitar a concretização do resultado. É evidente que a omissão em relação ao estado da jovem e o abandono contribuíram para o estupro, sendo essenciais para a ocorrência do crime.

c) dever de agir: refere-se àqueles que possuem a obrigação legal de intervir para evitar um resultado, conhecidos como garantidores. Conforme prevê o artigo 13, § 2.º do Código Penal: pessoas dentre as quais a lei determina obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; aqueles que assumem a responsabilidade de impedir o resultado; e, aqueles que criaram o risco de o resultado ocorrer com seu comportamento anterior. A ação do motorista se enquadra nessa última categoria de garantidor, uma vez que seu comportamento prévio deu origem ao estupro.

Deste modo, a responsabilidade penal do garantidor está atrelada ao resultado no qual ele tinha o dever legal e condições físicas de evitar. Nessa concepção, assevera Bitencourt (2024, p. 157) que “a condição de garantidor são elementos constitutivos do tipo omissivo impróprio, que devem ser abrangidos pelo dolo. Por isso, o agente deve ter consciência da sua condição de garantidor da não ocorrência do resultado”. Por isso, para o motorista responder pelo estupro de vulnerável na omissão imprópria, teria que ter a plena consciência de estar como garantidor da jovem, e, mesmo sabendo, não agir a fim de impedir o resultado.

Contudo, entende-se que ele tinha o dever de cuidado, isso corresponde a zelar pela saúde e proteção da jovem, visto que, naquele momento, ela passou mal e ficou inconsciente dentro do seu veículo. Nesse entendimento, afirma Coutinho (2023): “[...] Logo, tal condição da vítima em se encontrar ‘incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono’, alçou e impôs ao motorista, o dever de cuidado”. Portanto, não restam dúvidas quanto ao dolo de abandono, e o seu dever de cuidado.

4.3. APLICAÇÃO DA TEORIA IMPUTAÇÃO OBJETIVA AO MOTORISTA

Na teoria da imputação objetiva de Roxin, já explicada, uma pessoa responderá objetivamente pela conduta que implementou um risco proibido, desde que esse risco se realize no resultado e alcance um tipo penal. Segundo Bitencourt (2024, p. 164):

Na concepção de Roxin, a teoria da imputação objetiva estabelece três requisitos básicos para a imputação objetiva do resultado, que representam, em realidade, três grandes grupos de problemas: a) a criação de um risco jurídico-penal relevante, não coberto pelo risco permitido; b) a realização desse risco no resultado; e c) que o resultado produzido entre no âmbito de proteção da norma penal.

Diante disso, passa-se a análise da conduta da motorista para a verificação dos três critérios da imputação objetiva do resultado e a possibilidade de sua aplicação.

a) criação de um risco não permitido ou proibido

Abandonar uma mulher desacordada, incapaz de se defender ou de oferecer resistência, na rua às 3 (três) horas da madrugada constitui a criação de risco não permitido. É uma conduta considerada perigosa, por causa da alta taxa de estupros ocorridos na cidade de Belo Horizonte, segundo Juliana Siqueira, (2023, O Tempo), entre janeiro e julho do ano de 2023, 294 pessoas foram vítimas do crime em BH.

Nessa acepção, Junqueira e Figueiredo (2024, p. 121) destacam que como o Direito Penal tem a função de proteger os bens jurídicos, somente tem cabimento a proibição de condutas perigosas, ou melhor, aquelas que criem ou aumentem o risco ao bem jurídico. Isso é basilar na confirmação do primeiro critério proposto por Roxin.

Bitencourt, (2024, p. 164) afirma que “[...] a criação de um risco jurídico-penal relevante, visa identificar se a conduta praticada pelo agente infringe alguma norma do convívio social, e pode ser valorada como tipicamente relevante”. Neste ponto demonstrado pelo autor, e, já visto, a conduta não deve ter aprovação da sociedade.

Diante do que foi exposto, a atitude do motorista gerou um risco proibido que é juridicamente significante para a integridade sexual da jovem. A condição em que se encontrava, incapaz, o horário do abandono, 3 horas da madrugada, e o local, onde acontece vários de casos de estupro contribuíram para a constituição do risco. Portanto, incide o primeiro critério nesse caso.

b) realização do risco não permitido no resultado

O segundo critério requer que o risco criado se realize no resultado, isto é, o abandono precisa resultar em um perigo concreto, que, no caso, foi o estupro. Sendo assim, “para que determinado resultado possa ser imputado à conduta como obra desta, é preciso que ele constitua exatamente a concretização do risco específico gerado pela ação”, (Junqueira e Figueiredo, 2024, p. 123), observando o nexo causal.

Tal noção vai ao encontro da percepção do autor Bitencourt, (2024, p. 164):

A responsabilidade pelo delito consumado deve ser inicialmente inferida pela constatação da relação de causalidade entre a conduta do agente e o resultado típico. Além disso, é necessário demonstrar se o resultado típico representa, precisamente, a realização do risco proibido criado ou incrementado pelo agente.

Ao avaliar a conduta do motorista, nota-se a existência do nexo de causalidade entre ela e o resultado. Se a jovem não tivesse sido deixada sozinha na calçada, sem condições de se defender, não teria sido estuprada pelo homem que andava na rua. Outra hipótese, é que se o motorista voltasse ao local antes do estuprador chegar o risco não teria se concretizado, afastando sua realização, mas, voltou tarde para impedi-lo.

O homem que passava pela rua poderia também ter socorrido a jovem, ao invés de estuprá-la, deste modo, o risco não teria se efetivado. No entanto, a conduta desse homem está enraizada na cultura do estupro. O fato de uma mulher estar sozinha, deitada na calçada de madrugada não quer dizer que um homem possa fazer com ela o que quiser, ou ter bebido e ficado naquela condição não a torna culpada do crime.

Diante disso, o abandono além de criar o risco foi essencial para cumprimento deste resultado, existindo também o segundo critério para a imputação objetiva.

c) resultado incluído no alcance do tipo

O risco produzido sucedeu em resultado inserido dentro da proteção do Direito Penal, é um tipo penal previsto no artigo 217-A, o crime de estupro de vulnerável. A conduta de abandonar produziu o risco e sua materialização, enquanto o resultado alcançado foi concebido por dolo de um terceiro, não exatamente ação do motorista.

Segundo Bitencourt (2024, p. 164), o terceiro critério imposto por Roxin: “trata-se de um limitador da imputação objetiva, que visa à interpretação restritiva dos tipos penais, de tal modo que, em determinados casos, seja possível negar a imputação do resultado, inclusive quando os outros dois requisitos estejam presentes”. É o que acontece no caso, o fato de o estupro ter sido cometido por um terceiro excluiu a imputação objetiva do motorista quanto ao crime de estupro de vulnerável. Embora sua conduta tenha preenchido os dois primeiros critérios, não alcançou o tipo penal em análise.

Por conseguinte, o terceiro critério adequa-se ao caso em estudo para imputar ao motorista outro tipo penal. Conforme expõem Junqueira e Figueiredo (2024, p. 125): “[...] havendo uma conduta que constitua a criação ou o aumento de um risco não aprovado e sobrevindo um resultado que constitua a exata concretização daquele risco não permitido, em tese, haveria com isso a imputação ao tipo objetivo”. Em tal caso, o tipo penal correto para imputação objetiva do resultado é o artigo 133 do referido Código, o crime de abandono de incapaz.

A teoria da imputação objetiva tem aplicação ao caso para afastar a responsabilização penal do motorista pelo crime de estupro de vulnerável por não atingir o terceiro critério desenvolvido por Roxin. Nota-se que a conduta do motorista alcança os dois primeiros critérios, mas o dolo do homem que cometeu o estupro exime a responsabilidade objetiva. Não obstante, o resultado da sua conduta configura o tipo penal abandono de incapaz, que por analogia impõe ao motorista o dever de cuidado. Portanto, ele deve ser responsabilizado objetivamente pelo crime previsto no artigo 133 do Código Penal.

Posteriormente, deve-se averiguar a imputação subjetiva que é a regra. Houve o dolo de abandono por parte do motorista, isto é, ele teve a consciência e a vontade de abandonar a jovem que estava incapaz de se defender dos riscos inerentes ao abandono. Esse caso também aferiu a responsabilização criminal por conduta dolosa.

Sobre as autoras
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Jacqueline Aparecida; SANTOS, Janaina Alencar. Aplicação da teoria da imputação objetiva ao caso do estupro da jovem abandonada desacordada na calçada por motorista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7631, 23 mai. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/109468. Acesso em: 18 dez. 2024.

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