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Desapropriação de áreas produtivas segundo o STF

Agenda 24/05/2024 às 08:56

O Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3865, proposta pela Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil – CNA, onde questionava algumas expressões de artigos da Lei da Reforma Agrária, os artigos 6o. e 9o. da Lei Federal no. 8.629/1993, tratando da propriedade produtiva e o cumprimento da função social.

É necessário relembrar o que é a função social da propriedade e se este conceito é subjetivo ou possui critérios objetivos.

A função social da propriedade é um princípio previsto na Constituição Federal de 1988, que vem de uma legislação ainda mais antiga, o Estatuto da Terra, de 1964, que determina que a propriedade deve cumprir uma função social, ou seja, não pode ser utilizada de forma que prejudique a coletividade e o meio ambiente, um conceito que engloba utilização da terra, preservação do meio ambiente, desenvolvimento socioeconômico e observância dos direitos dos trabalhadores.

Este princípio traz critérios objetivos, cuja verificação é de competência exclusiva do Poder Público, por meio de vistoria em processos administrativos do INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária que, por sua vez, utiliza critérios de avaliação previstos em lei, solicita documentos e informações, oferecendo oportunidade de defesa aos proprietários, podendo resultar em desapropriação do imóvel rural improdutivo para sua destinação à reforma agrária.

Os critérios já comentados compõem o grau de eficiência e o grau de utilização do imóvel rural, medindo seu desempenho em relação à capacidade produtiva e uso da área disponível, informações que posteriormente são disponibilizadas nos cadastros fundiários e constam no Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR) de cada imóvel rural, documento emitido pelo INCRA que se complementa com licenças ambientais, pagamentos de impostos, relatórios de vistoria e laudos técnicos etc.

No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3865, o Supremo Tribunal Federal decidiu que propriedades rurais produtivas que descumpram a função social estão passíveis de desapropriação para reforma agrária, onde o relator Ministro Edson Fachin considerou que o artigo 184 da Constituição Federal autoriza a desapropriação por interesse social do imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social.

Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei. [...]

A interpretação para correta, porém foi feita de maneira isolada e desconexa com os demais dispositivos da própria Constituição Federal, já que no artigo seguinte, o artigo 185, inciso II e seu parágrafo único, orientam o seguinte:

Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária:

I - a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra;

II - a propriedade produtiva.

Parágrafo único. A lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos à sua função social.

A idealização da reforma agrária, diferentemente do que se apresenta em atuais discussões ideológicas deturpadas não é simplesmente a distribuição de terras, por uma utópica busca por distribuição igualitária de terras entre pessoas, saibam utilizá-la ou não.

A reforma agrária surgiu com o propósito de aumento de produção, consequentemente, o abastecimento alimentar, motivo pelo qual foi dado tratamento especial à propriedade produtiva, o que se comprova pelas doutrinas agraristas ao afirmar tratamento especial que só pode consistir num regime jurídico mais benéfico do que o previsto para as propriedades tidas por não satisfatoriamente produtivas.

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Se a ideia fosse de desapropriação de imóvel produtivo que não cumprisse sua função social, não haveria qualquer necessidade ou sentido na redação do artigo 185, inciso II e seu parágrafo único da Constituição Federal.

A legislação interpretada pelo Ministro Relator já foi regulamentada em 1993 pelo artigo 6º da Lei da Reforma Agrária (Lei Federal nº 8.629/1993) ao esclarecer o seguinte:

Art. 6º Considera-se propriedade produtiva aquela que, explorada econômica e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização da terra e de eficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão federal competente.

Os demais parágrafos e inciso deste mesmo artigo orientam que o grau de utilização da terra deverá ser igual ou superior a 80% (oitenta por cento), calculado pela relação percentual entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel; e que o grau de eficiência na exploração da terra deverá ser igual ou superior a 100% (cem por cento) de acordo com a sistemática delimitada em seus incisos.

Art. 6º [...]

§ 1º O grau de utilização da terra, para efeito do caput deste artigo, deverá ser igual ou superior a 80% (oitenta por cento), calculado pela relação percentual entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel.

§ 2º O grau de eficiência na exploração da terra deverá ser igual ou superior a 100% (cem por cento), e será obtido de acordo com a seguinte sistemática:

I - para os produtos vegetais, divide-se a quantidade colhida de cada produto pelos respectivos índices de rendimento estabelecidos pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea;

II - para a exploração pecuária, divide-se o número total de Unidades Animais (UA) do rebanho, pelo índice de lotação estabelecido pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea;

III - a soma dos resultados obtidos na forma dos incisos I e II deste artigo, dividida pela área efetivamente utilizada e multiplicada por 100 (cem), determina o grau de eficiência na exploração.

§ 3º Considera-se efetivamente utilizadas:

I - as áreas plantadas com produtos vegetais;

II - as áreas de pastagens nativas e plantadas, observado o índice de lotação por zona de pecuária, fixado pelo Poder Executivo;

III - as áreas de exploração extrativa vegetal ou florestal, observados os índices de rendimento estabelecidos pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea, e a legislação ambiental;

IV - as áreas de exploração de florestas nativas, de acordo com plano de exploração e nas condições estabelecidas pelo órgão federal competente;

V - as áreas sob processos técnicos de formação ou recuperação de pastagens ou de culturas permanentes, tecnicamente conduzidas e devidamente comprovadas, mediante documentação e Anotação de Responsabilidade Técnica.

§ 4º No caso de consórcio ou intercalação de culturas, considera-se efetivamente utilizada a área total do consórcio ou intercalação.

§ 5º No caso de mais de um cultivo no ano, com um ou mais produtos, no mesmo espaço, considera-se efetivamente utilizada a maior área usada no ano considerado.

§ 6º Para os produtos que não tenham índices de rendimentos fixados, adotar-se-á a área utilizada com esses produtos, com resultado do cálculo previsto no inciso I do § 2º deste artigo.

§ 7º Não perderá a qualificação de propriedade produtiva o imóvel que, por razões de força maior, caso fortuito ou de renovação de pastagens tecnicamente conduzida, devidamente comprovados pelo órgão competente, deixar de apresentar, no ano respectivo, os graus de eficiência na exploração, exigidos para a espécie.

§ 8º São garantidos os incentivos fiscais referentes ao Imposto Territorial Rural relacionados com os graus de utilização e de eficiência na exploração, conforme o disposto no art. 49 da Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964.

Importante também comentar que devem ser devidamente cadastradas aquelas áreas “não aproveitáveis” da propriedade rural, assim consideradas pelo artigo 10 da mesma Lei da Reforma Agrária:

Art. 10. Para efeito do que dispõe esta lei, consideram-se não aproveitáveis:

I - as áreas ocupadas por construções e instalações, excetuadas aquelas destinadas a fins produtivos, como estufas, viveiros, sementeiros, tanques de reprodução e criação de peixes e outros semelhantes;

II - as áreas comprovadamente imprestáveis para qualquer tipo de exploração agrícola, pecuária, florestal ou extrativa vegetal;

III - as áreas sob efetiva exploração mineral;

IV - as áreas de efetiva preservação permanente e demais áreas protegidas por legislação relativa à conservação dos recursos naturais e à preservação do meio ambiente.

V - as áreas com remanescentes de vegetação nativa efetivamente conservada não protegidas pela legislação ambiental e não submetidas a exploração nos termos do inciso IV do § 3º do art. 6º desta Lei.

Portanto, é uma ousada inovação do STF, demandando cada vez mais cautela do produtor rural com relação ao preenchimento dos cadastros obrigatórios e fundiários de seu imóvel rural, para efetivamente garantir que não seja surpreendido com uma possível desapropriação para reforma agrária em interpretações equivocadas e transversais.

A própria Lei da Reforma Agrária, em seguida, traz algumas garantias para não permitir desapropriação de imóveis produtivos que estejam cumprindo cronograma estabelecido por técnico profissional habilitado e responsável.

Art. 7º Não será passível de desapropriação, para fins de reforma agrária, o imóvel que comprove estar sendo objeto de implantação de projeto técnico que atenda aos seguintes requisitos:

I - seja elaborado por profissional legalmente habilitado e identificado;

II - esteja cumprindo o cronograma físico-financeiro originalmente previsto, não admitidas prorrogações dos prazos;

III - preveja que, no mínimo, 80% (oitenta por cento) da área total aproveitável do imóvel seja efetivamente utilizada em, no máximo, 3 (três) anos para as culturas anuais e 5 (cinco) anos para as culturas permanentes;

IV - haja sido aprovado pelo órgão federal competente, na forma estabelecida em regulamento, no mínimo seis meses antes da comunicação de que tratam os §§ 2o e 3o do art. 2o.

Parágrafo único. Os prazos previstos no inciso III deste artigo poderão ser prorrogados em até 50% (cinquenta por cento), desde que o projeto receba, anualmente, a aprovação do órgão competente para fiscalização e tenha sua implantação iniciada no prazo de 6 (seis) meses, contado de sua aprovação.

Portanto, mesmo que tal legislação não tenha acompanhado as atuais práticas agropecuárias e normativas técnicas, é interessante que o produtor rural faça o uso de projetos e cronogramas técnicos, registrando a produção realizada na propriedade, periodicamente registrando laudos técnicos, aumentando a segurança jurídica e deixando evidente que propriedades rurais devem buscar um nível de organização e profissionalização cada vez mais elevado.


Sobre o autor
Pedro Puttini Mendes

Advogado, Consultor Jurídico (OAB/MS 16.518, OAB/SC nº 57.644). Professor em Direito Agrário, Ambiental e Imobiliário. Sócio da P&M Advocacia Agrária, Ambiental e Imobiliária (OAB/MS nº 741). Comentarista de Direito Agrário para o Canal Rural. Colunista de direito aplicado ao agronegócio para a Scot Consultoria. Organizador e coautor de livros em direito agrário, ambiental e aplicado ao agronegócio. Membro fundador da União Brasileira da Advocacia Ambiental (UBAA), Membro Consultivo da Comissão de Direito Ambiental e da Comissão de Direito Agrário e do Agronegócio da OAB/SC. Foi Presidente da Comissão de Assuntos Agrários e Agronegócio da OAB/MS e membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB/MS entre 2013/2015. Doutorando em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental pela Universidade do Estado de Santa Catarina, Mestre em Desenvolvimento Local (2019) e Graduado em Direito (2008) pela Universidade Católica Dom Bosco. Pós-graduação em Direito Civil e Processo Civil pela Anhanguera (2011). Cursos de Extensão em Direito Agrário, Licenciamento Ambiental e Gestão Rural. PRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA: "Pantanal Sul-Mato-Grossense, legislação e desenvolvimento local" (Editora Dialética, 2021), "Agronegócio: direito e a interdisciplinaridade do setor" (Editora Thoth, 2019, 2ª ed / Editora Contemplar, 2018 1ª ed) e "O direito agrário nos 30 anos da Constituição de 1988" (Editora Thoth, 2018). Livros em coautoria: "Direito Ambiental e os 30 anos da Constituição de 1988" (editora Thoth, 2018); "Direito Aplicado ao Agronegócio: uma abordagem multidisciplinar" (Editora Thoth, 2018); "Constituição Estadual de Mato Grosso do Sul - explicada e comentada" (Editora do Senado, 2017).

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