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A liberdade de expressão e o discurso do ódio frente a intolerância religiosa.

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3. NOÇÕES GERAIS E O ESTUDO DO CASO

3.1. Noções gerais sobre intolerância religiosa

Um dos temas mais comentados da atualidade diz respeito a intolerância religiosa e a sua utilização em busca de poder. A religião não é fato novo, ela existe desde os primórdios da sociedade, ainda quando esta acreditava que todos os acontecimetos eram gerados pela decisão dos Deuses, e logo depois simbolizando, em muitos períodos, o poder dos grandes reis e da própria Igreja, dando margem para diversos abusos contra a liberdade da população, que eram obrigados a seguir e acreditar tudo que era dito pelos representantes do Estado naquela época. Nada era discutido, e todas as outras religiões que não se adequavam ao habitual começaram a sofrer retaliações, ocorrendo desde já a tão debatida intolerância religiosa.

Com o decorrer da história, o surgimento dos institutos jurídicos e aprimoramento do Estado e de suas funções, a religião passou a ser observada como algo intrínseco a cada indivíduo, precisando ser respeitada e protegida pelo próprio Estado, já que esta está inteiramente ligada ao conceito da dignidade da pessoa humana, princípio este, protegido pelo governo em forma de direitos humanos, tanto em âmbito nacional quanto no internacional. Após todos esses acontecimentos, dentre eles o rompimento do Estado com o poder da Igreja, surge a ideia da liberdade religiosa, sendo esta concedida aos indivíduos para que estes possam seguir e acreditar naquilo em que escolherem como mais adequado aos seus conceitos.

Mas apesar dos indivíduos serem livres pra seguirem a religião que desejarem, alguns grupos de pessoas se mostraram intoleráveis com esta ideia, propagando discursos terríveis em relação àqueles que não seguiam o antigo tradicional. Sabemos que intolerância é uma atitude caracterizada pela falta de de habilidade e vontade em reconhecer e respeitar as diferenças entre crenças e opiniões. Em suma, podemos afirmar que intolerar significa a falta de interesse e capacidade de aceitar pontos de vistas diferentes. Em contrapartida, tolerar também não significa aceitar ou acreditar em todas as coisas, em simples palavras significa respeitar. 94

O tema aqui abordado diz respeito a Intolerância Religiosa, e englobando em seu conceito amplo, se caracteriza pelo desrespeito à liberdade de expressão, incluindo proibição de uso das vestimentas, de rituais públicos, agressões físicas e a monumentos religiosos, além do uso indevido dos símbolos religiosos de outra religião com o fim de desmerecer, condenar ou mesmo demonizar a mesma. 95 Em verdade, a intolerância religiosa é caracterizada pelo discurso do ódio (crime de ódio), ferindo a liberdade de expressão e em consequência a dignidade humana, pois ao impedir que alguém utilize de um direito comum a todos por causa da crença que possui (ou não possui, no caso dos ateus), fere seu direito de expressão da fé, e em decorrencia fere a sua personalidade.

Salienta-se que o crime de ódio é crime coletivo, com uma violência direcionada a determinado grupo social com características específicas. Corriqueiramente, o agressor escolhe as vítimas de acordo com seus preconceitos, colocando-se de maneira hostil contra o agir e o ser de determinado grupo. O que é mais chocante é que esse tipo de crime ocorre contra indivíduos que historicamente e socialmente sofrem notórias discriminações, são as chamadas minorias sociais.96

Em algumas situações específicas, pode ser difícil reconhecer esse tipo de violência, já que ela pode se manifestar através de agressões explícitas ou através de discriminação discreta, mas suas manifestações mais comuns são as agressões físicas, torturas, ameaças, comentários e insultos preconceituosos, desprezo e perserguição. Ocorrências destas violências são comuns, e atentam contra a valorização da diversidade social, afetando as relações sociais, sendo corriqueiro que as vítimas se sintam desvalorizadas e vulneráveis.97

Para freiar essas ocorrências alguns institutos e organizações tem elaborado documentos e declarações para assegurar a liberdade e a igualdade entre os povos. A primeira, e já citada anteriormente, é a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que assegura a paridade entre todos os indivíduos, independente do grupo social ou do modo de ser e agrir, admitindo que todo ser humano tem o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de manifestar a religião.98 Vejamos:

Artigo 18° Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.

Artigo 19° Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e idéias por qualquer meio de expressão.

E a segunda, a Declaração de Princípio Sobre a Tolerância, criada pela UNESCO, em sua vigésima oitava reunião na conferência geral, apesar de tratar sobre tolerância como um todo, também traz sobre o tema religião. Em suma, os Estados membros das Nações Unidas descrevem sobre o tema por entender ser importante para a dignidade humana e principalmente pelos abusos cometidos na seguda guerra mundial. Já em seu preâmbulo airma que o direito a escolha da fé é um direito fundamental do homem, devendo ser visto sempre com base na tolerância e para viver em paz com seus iguais. Através de seus 06 (seis) artigos busca elencar princípios que sirvam de base para toda estrutura em relação ao tema. Já em seu artigo, expõe o conceito de tolerância:99

Artigo 1º - Significado da tolerância

1.1 A tolerância é o respeito, a aceitação e a apreço da riqueza e da diversidade das culturas de nosso mundo, de nossos modos de expressão e de nossas maneiras de exprimir nossa qualidade de seres humanos. É fomentada pelo conhecimento, a abertura de espírito, a comunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e de crença. A tolerância é a harmonia na diferença. Não só é um dever de ordem ética; é igualmente uma necessidade política e jurídica. A tolerância é uma virtude que torna a paz possível e contribui para substituir uma cultura de guerra por uma cultura de paz.

1.2 A tolerância não é concessão, condescendência, indulgência. A tolerância é, antes de tudo, uma atitude ativa fundada no reconhecimento dos direitos universais da pessoa humana e das liberdades fundamentais do outro. Em nenhum caso a tolerância poderia ser invocada para justificar lesões a esses valores fundamentais. A tolerância deve ser praticada pelos indivíduos, pelos grupos e pelo Estado.

1.3 A tolerância é o sustentáculo dos direitos humanos, do pluralismo (inclusive o pluralismo cultural), da democracia e do Estado de Direito. Implica a rejeição do dogmatismo e do absolutismo e fortalece as normas enunciadas nos instrumentos internacionais relativos aos direitos humanos.

1.4 Em consonância ao respeito dos direitos humanos, praticar a tolerância não significa tolerar a injustiça social, nem renunciar às próprias convicções, nem fazer concessões a respeito. A prática da tolerância significa que toda pessoa tem a livre escolha de suas convicções e aceita que o outro desfrute da mesma liberdade. Significa aceitar o fato de que os seres humanos, que se caracterizam naturalmente pela diversidade de seu aspecto físico, de sua situação, de seu modo de expressar-se, de seus comportamentos e de seus valores, têm o direito de viver em paz e de ser tais como são. Significa também que ninguém deve impor suas opiniões a outrem.

Dentre outras disposições, relata o papel do Estado diante a tolerância, um papel proativo no sentido de garantia e proteção desse direito humano fundamental. Porém a disposição que mais chama atenção, é quando a Declaração, em seu artigo 4º remete que “a educação é meio mais eficaz de prevenir a intolerância”100. É certo que a educação ensina aos indivíduos seus direitos e suas liberdades, assegurando o respeito e incentivando a vontade de proteger os direitos e as liberdades dos outros, e é por esta razão que devem existir políticas e programas de educação que possam contribuir para o desenvolvimento e compreensão da tolerância entre os povos.

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Ademais, com o fim de mobilizar a opinão pública e dar mais visibilidade ao tema, a Declaração estabeleceu o dia 16 de Novembro de cada ano como o Dia Internacional da Tolerância.101

Por fim, apesar da tentativa demasiada de proteção, eexistem problemas ideológicos, de carater da representação da fé das pessoas, que estão sobre o domínio do que a maioria impõe à minoria. Nesse ponto, a intervenção do Estado no plano educacional se torna fundamental, focando nos documentos jurídicos e garantindo o pleno exercício e visibilidade das minorias étnicas.102

3.2. O Charlie Hebdo

O Charlie Hebdo é um jornal satírico, processado semanalmente no Estado da França. Em seu conteúdo ilustra e publica crônicas e relatórios sobre política, economia e a sociedade francesa, mas também age com cunho investigativo com publicações de reportagens de cunho estrangeiro ou em àreas como as seitas, de extrema- direita, Catolicismo, Islamismo, Judaísmo ou cultural. Por outro lado, o editorial satiriza com o Partido Comunista Frânces, com o catolicismo conservador, a hierarquia judaica, e até mesmo com o terrorismo islâmico.103

Em 1960, George Bernier, conhecido como o Professeur Choron, e François Cavanna lançam uma revista mensal satírica intitulada Hara-Kiri, com tendências cínicas e licenciosa. O primeiro, exercia as funções de direito de publicação enquanto o segundo era o editor. A equipe do editorial ainda incliía Roland Topor, Fred, Reiser, Georges Wolinski, Gebé e Cabu, Sépia (pseudónimo de Cavanna), Siné, dentre outros.104

Em 1969, a equipe decide passar a produzir uma publicação semanal tratando de termas e acontecimentos da atualidade, lançando em Fevereiro o Hari- Kiri Hebdo, que posteriormente foi renomeado para L’Hebdo Hara-Kiri em Maio do mesmo ano.

Só em 1970, com a morte de Charles de Gaulle, Presidente da República Francesa, militar e dirigente da resistência durante a ocupação alemã, o L’ Hebdo Hara- Kiri estampa na primeira folha uma caricatura com a manchete “Bal Tragique à Colombey: 1 mort”105. Após a pblicação, em nome do governo frances, Raymond Marcellin, com aval do Presidente da República Gerorges Pompidou, proibiu publicações do jornal. 106

Para contornar a situação os editores lançaram um novo jornal, porém com o mesmo objetivo, o Charlie Hebdo, e surpreendentemente com a mesma manchete (anexo 1). Alguns contribuintes não retornaram ao jornal, mas houve novos membros que incluiu Delfeil de Ton, Pierre Fournier e Willem.107

No mais, para conservar uma independência total, tentou sobreviver sem colaboração acionária de industriais e sem a subvenção do estado francês.

3.2.1. O embate com o islamismo

O problema do Charlie com os islamistas iniciaram em 2002 quando um dos colaboradores publicou um artigo sobre o livro de Oriana Fallaci, La Rage et l’ orguei, falando sobre a coragem intelectual da escritoria que protesta contra o islamismo assasino e, ao mesmo tempo, denuncia a denegação da opinão européia diante do problema, já que tanto a Itália quanto a França não condenam explicitamente o fato de que o Islã é que ataca o Ocidente e não o inverso.108

Em 2006, Charlie Hebdo reproduziu algumas caricaturas de Maomé publicadas pelo jornal dinamarquês Jyllands Posten. As caricaturas se acrescentaram aos desenhos humorísticos feitos pelos editores da casa. Após essa edição o editorial passou a sofrer fortes perseguiões organizadas pela Grande Mosquée de Paris e pela União das Organizações Islâmicas da França, porém, o Ministério da Cultura resolve apoiar os jornalistas, homenageando-os como atores da liberdade. Logo após essas publicações, as embaixadas dinamarquesas sofreram atos de violência por parte de extremistas islâmicos, e temendo a mesma reação contra o jornal francês, a polícia foi mobilizada para proteger a sede da redação do Charlie Hebdo.109

Mas só em 2011, com a publicação de alguns cartoons, dentre eles uma representação de Maomé em sua capa dizendo “ 100 chibatadas se você não morrer de rir” (anexo 2), edição que recebeu nome especial, fazendo menção às leis islâmicas, intitulada de Sharia Hebdo, e tendo Maomé como editor convidado, que a situação ficou de fato tensa, quando a sede foi vítima de um incêncio provocado por um coquetel molotov, e o site do jornal teve sua página substitída por uma foto de Meca e de trechos do Coran. Neste dia, a edição se esgotou em poucas horas, e políticos sairam em defesa da liberdade de expressão dos jornalistas.110

Em relação ao ataque de 2011, não tiveram vítimas, mas o jornal revidou em forma de humor, publicando uma nova charge, estampando um mulcumano beijando um cartunista do Hebdo, com a mensagem junto ao desenho: “o amor é mais forte que o ódio” (anexo 3).

Apesar do ataque, o jonal volta a publicar charges satirizando o profeta Maomé no ano de 2012. E a partir deste ano, as charges sobre Maomé começam a ser publicadas com mais regularidade, aumentando a revolta das associações mulçulmanas francesas e internacionais. Enquanto isso, o governo francês ainda demonstrava apoio a liberdade de expressão.111

Em 2013, outro ataque acontece, mas desta vez, apenas no site da internet, que foi atacado por hackers no mesmo dia em que foi publicada a história em quadrinhos sobre Maomé, pelo próprio jornal.112

Nos ultimos anos, o Charlie Hebdo estava indo a falência, mas nunca deixou de ser irreverente e audacioso. No dia 7 de janeiro de 2015, novamente o mundo estava com olhos voltados para França, desta vez, com a notícia de um novo ataque ao jornal que deixou mortos e feridos. Os fundamentalistas islâmicos atacaram a sede do editorial, como forma de protesto pelas charges, matando, no mínimo, 12 pessoas, entre os quais Charb, Cabu, Honoré, Tignos Wolinski (cartunistas do Jornal) além de cinco pessoas feridas de forma grave113. Do dia de seu surgimento até o atentado de 2015 foram inúmeras polêmicas em torno do jornal e do seu tema preferido, o islãmismo.

Mesmo após os ataques, os editores sobreviventes comunicaram que as publicações irão continuar. A edição da semana seguinte, publicado no horário habitual, teve uma tiragem de 8 milhões de cópias, muito superior a tiragem habitual. 114

3.2.2. O ataque de 2015

No dia 07 de janeiro de 2015, por volta das 11h 30min no horário local, a sede do jornal Charlie Hebdo é atacada por dois homens encapuzados e armados, deixando 12 mortos e 20 feridos. Testemunhas relatam que os assassinos propagavam frases com saudações a Deus/Allah enquanto disparavam contra os editores do jornal.115

Naquele dia fatídico, a capa estampada no Charlie Hebdo mostrava uma caricatura de Michel Houellebecq, escritor do livro SOUMISSION, retratando a França em 2022, com um mulçumano eleito presidente do país. Um dos desenhos presentes nessa edição era intitulado “Ainda nenhum ataque terrorista na França”, mostrando um Jihadista armado dizendo “Espere...podemos enviar os nossos melhores desejos para o Ano Novo até o final do mês de Janeiro”. Já no Facebook, minutos antes do ataque, foi postada uma outra caricatura com o texto: “Depois do Ano Novo: Al-Baghdadi também. E sobretudo a saúde”.116 (anexo 4 e 5)

No momento do atentado ocorria uma reunião entre os membros do editorial. Os assassinos entraram, procuraram os membros da equipe, disparando tiros na cabeça das vítimas.117

Na saída do prédio, cruzaram com os policiais que faziam a segurança de um dos cartunistas. Os atiradores saíram gritando: “Vingamos o profeta Maomé. Matamos Charlie Hebdo”. Os terroristas fugiram em um carro e dirigiram até a estação do metrô, onde roubaram um outro veículo, na fuga, atropelaram um pedestre e atiraram contra a polícia.118

Mas qual a razão do ataque? O que é evidente é que este ataque foi gerado pela repulsa e pelo ódio pelas caricaturas da revista. Estas pessoas que protagonizaram o ataque fazem parte de grupos extremistas da cultura islã, inclusive, dias depois a Al- Qaeda reinvidicou a autoria do ataque contra o editorial, declarando vingança contra as charges publicadas.119

Do ataque resultaram 12 vítimas, duas vítimas eram policiais que faziam a segurança do local. Das outras 10, oito eram cartunistas, sendo Charb – Stéphane Charbonnier, Cabu- Jean Cabut, Tignous – Bernard Verlhac, Honoré – Phillipe Honoré e Georges Wolinski, o economista Bernard Maris, a colunista e psicanalista Elsa Cayat e o corrector Mustapha Ourrad, e os outros dois eram o editor Michel Renaud, convidado por Cabu, e Frédéric Boisseau, empregado da Sodexo que trabalhava no local. Apenas 3 pessoas que estavam na reunião sairam ilesas (dois membros da equipe, Sigolène Vinson e Laurent Léger, e Gerard Gaillard, um convidado que acompanhava Michel Renaud).120

Os responsáveis pelos ataques, os irmãos Saïd Kouachi e Chérif Kouachi, foram identificados pelos policiais como principais suspeitos do ataque ao jornal. Logo após o ataque, a polícia vasculhou a região achando um documento de identidade de um dos suspeitos, dentro do carro roubado utilizado para a fuga.121

No dia 8 de janeiro, um dia após o ataque, na cidade de Montangy, os suspeitos assaltaram um posto de gasolina, e na fuga, ao trocarem de carro, ao interceptar um motorista que passava na via local, foram reconhecidos pela vítima que comunicou o fato a polícia. Finalmente, em 9 de janeiro, na área proxima à comuna de Dammartin-em- Goële, próximo ao aeroporto de Charles de Gaulle, e após uma troca de tiros, os irmãos Kouachi fugiram para uma gráfica local, mas não sabiam que um funcionário da gráfica permanecia dentro do estabelecimento, mantendo contato com a polícia e passando informações valiosas sobre a posição dos terroristas.122

A polícia foi ao local e tentou manter um dialogo com os suspeitos, tentando negociar uma evacuação segura. O cerco durou entre oito e nove horas, com pelo menos três explosões no prédio, e logo depois, mais tiros. A perseguição chegou ao fim quando os irmãos Kouachi trocaram tiros com a polícia sendo mortos no mesmo local.123

3.3. O Charlie Hebdo e a relação com a intolerancia religiosa

O Charlie Hebdo alega que suas publicações, apesar do conteúdo duvidoso, é mero exercício do direito da liberdade de expressão, mas até que ponto este direito deve ser limitado pelo direito da dignidade da pessoa humana, e claro, como exercer a liberdade de expressão sem ultrapassar a dignidade de outro indivíduo? Essa é uma questão que exige bom senso e ponderação de determinados valores, além um conhecimento da situação atual dos povos islâmicos dentro do território francês.

Obviamente a liberdade de expressão deve ser respeitada e preservada, até porque, como já foi dito anteriormente, diálogos são fundamentais para o reconhecimento de uma sociedade democrática, mas, esse direito individual não deve ser tido como superior aos direitos sociais coletivos.124

Atualmente na França vivem cerca de 6,2 milhões de muçulmanos, que na sua grande maioria são imigrantes das ex-colônias francesas, e que não estão inseridos igualmente na sociedade, sendo a grande maioria pobre, vítimas de esteriótipos e preconceitos. Neste contexto, com relação as charges do editorial, percebe-se o perigo e a tenção que gira em torno do assunto.125

Primeiramente, o ato do editorial remete a uma ideia de intolerância religiosa, já que na religião muçulmana existe princípios que diz que o profeta maomé não pode ser retratado de nenhuma forma. Na época das primeiras publicações do Charlie, as associações islâmicas decidiram processar a revista, mas, o Tribunal Francês que sempre prezou pela preservação da própria cultura, deu razões ao jornal. Esse ato do tribunal atrbuiu moral ao editorial, que intensificou as charges contra o islã e contra o cristianismo.126

As publicações do Charlie Hebdo eram voltadas sempre para coletividade, nunca foram específicas para os grupos extremistas, e sempre retratavam o povo de maneira ofensiva, normalmente portando armas ou fazendo alusões a violência, esteriotipando ainda mais esses indivíduos. E é neste contexto, mesmo que em tom de piada (como alegado inúmeras vezes pelos cartunistas), com a população já marginalizada, e em menor número, que as charges são publicadas, promovendo a islamofobia, pregando ódio e transmitindo o preconceito.127

Em contraponto às publicações do Charlie, surge a reação dos extremistas islãs. Seriam as publicações motivos para tamanha barbárie? Não. O que aconteceu no dia do ataque é inaceitável, a morte de pessoas jamais deve ser vista como solução a problemas sociais. Na verdade, se no momento das primeiras charges e das primeiras reações (neste caso, no momento da procura pela justiça francesa), o tribunal tivesse procurado punir o editorial, traçando uma linha que não deveria ser ultrapassada este fato poderia ter sido evitado.

A reação aplicada não tem só a ver com as charges, ela tem a ver com todo o contexto social, com as humilhações diárias, com a invisibilidade de identidade, e ainda com a política intervencionista dos países do Ocidente no Oriente Médio.128 Os franceses tem históricos já registrados contra os muçulmanos, desde o uso do véu em locais públicos, questão aqui já discutida, até o preconceito na hora de contratar alguém que seja crente desta religião.

O humor utilizado nas charges do Charlie Hebdo fazem parte de um senso duvidoso, já que respaldam ódio e ignorância sobre as comuniddes muçulmanas francesas e os povos àrabes. Se o objetivo dos periódicos era levantar um debate sobre o fundamentalismo islâmico, não é assim que se inicia, pois tudo o que foi feito com as publicações tratou apenas de atacar a religão e de provomer a islamofobia. As consequências deste tipo de humor, vão muito além da discriminação, pois agridem a legitimidade da religão, cessando a oportunidde de diálogo e colocando a sociedade em uma verdadeira guerra.129

É preciso ter em mente que existe uma diferença, apesar de sucinta, entre a liberdade de expressão e a opressão. No primeiro momento, existe a liberdade de manifestação do pensamento, limitada a partir do ponto que ferimos o espaço do outro (por exemplo, apologias ao crime ou uso de ideias que discriminem certos grupos de indivíduos). Já no segundo ponto, temos a ultrapassagem destes limites impostos à liberdade de expressão.130 Ao transpassar o outro, estamos ferindo a sua personalidade, seja de um indivíduo ou de uma coletividade, desconstituindo-o diante do meio em que vive e menosprezando a sua integridade humana.

Normalmente, quando acontece algo como ocorreu com o Charlie Hebdo, as pessoas só pensam na liberdade de expressão em uma única direção, àquela dos cartunistas, que tem o direito de expressar o que pensa, de provocar, de em nome do humor fazer todas as coisas. Mas, na verdade, são duas vias. A outra, que poucos pensam, é a resposta que os ofendidos tem direito a dar. A crítica a determinadas piadas não é aceita, muitos caracterizam como cerceamento da liberdade de expressão, ora, se um indivíduo tem o direito de se manifestar, quem escuta, interpreta, ouve, recebe a manifestação tem ao menos o direito de se defender, colocando em pauta suas ideias e seus contrapontos.131 Talvez, se as pessoas se colocassem no lugar dos outros, passassem a perceber que estão agindo de forma errada.

Ocorre que o argumento de cerceamento da liberdade de expressão é bastante utilizado quando as ofensas se dão com grupos que não tem condições de reagir tamanha a vulnerabilidade social em que vivem. Isso quer dizer que este direito não se encontra constantemente ameaçado, mas todas as vezes que um grupo vulnerável se mostra ofendido com o discurso do opressor, estes se protegem alegando perseguição, revertendo toda a situação e se tornando as novas vítimas, como se eles fossem os oprimidos.132

A crítica religiosa se excedem (e esses são seus limites) quando desrespeitam e passam a impedir por alguma razão a liberdade de culto, quando justificam restrições à liberdade e identidade religiosa ou fortalecem esteriotipos e estimas generalizantes contra adeptos de determinada religião. Na aparente inofensividade das charges do Charlie Hebdo, existe uma vertente de etnocentrismo, com o sentimento de superioridade francês e de subalternizaçao do outro em relação à sua cultura133. A frança sempre foi conhecida pelos ideais etnocentristas, pela sua forte tendencia a menosprezar àqueles que não seguem seus dogmas, e estigamatizar os que não são adpetos a sua cultura.

Apesar de todo o etnocentrismo europeu, a sociedade é multicultural, livre, tolerante, e deve saber lidar com críticas, desde que não se retire a liberdade de contraargumentar, e sendo necessário não temer ir a justiça, caso venha a se sentir lesado e atingido em sua dignidade. A sociedade precisa tolerar críticas (escolhendo rebatê-las ou simplesmente ignorá-las) , e os críticos devem tolerar a liberdade religiosa134, esse poderia ser o preceito geral para uma sociedade pacífica.

Em todas as sociedades democráticas a liberdade de expressão deve ter seus limites, sejam eles pautados no interesse público ou nos direitos e respeito pelos outras pessoas. Respeitar os direitos e tolerar as diferenças é aceitar o indivíduo na integridade das suas convicções e não como a sociedade quer que ele seja.135

É claro que a punição pela morte dos jornalistas da Charlie tem que existir, os culpados devem sempre ser resposabilizados. Mas sempre é preciso ter em mente que os direitos terminam sempre onde os dos outros começam, e só assim é que se poderia viver pacificamente em uma democracia com tamanha pluradidade de culturas. O direito a liberdade de expressão ainda é muito imaturo nas sociedades atuais, as pessoas não tem o bom senso de escrever apenas o que conveniente, agredindo muitas vezes com palavras, desenhos, atitudes, e existem interpretações errôneas que pensam que os profissionais da area tem o direito de falar e escrever o que pensa, sem sofrer nenhuma consequência.136

Nesse contexto, os jornalistas erraram, mas também erraram os assassinos que executaram a sangue frio os responsáveis pelas charges. Para fechar, a liberdade de expressão poderia ser exercida com mais ternura, com menos agressão aos princípios básicos e respeito aos símbolos alheios.137

Sobre a autora
Vanessa Rodrigues de Albuquerque Moury Fernandes

Advogada formada pela Universidade Católica de Pernambuco, atuando desde 2016. Pós graduada pela Universidade do Vale de São Francisco - Direito e processo do trabalho. Pós graduada em Segurança Pública, pela Rede de Ensino da Faculdade Renato Saraiva.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDES, Vanessa Rodrigues Albuquerque Moury. A liberdade de expressão e o discurso do ódio frente a intolerância religiosa.: Estudo do caso: Charlie Hebdo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7641, 2 jun. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/109605. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado em 2015 ao Curso de Bacharelado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Rafael Baltar.

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