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Atualidades da saidinha temporária: da ressocialização a irretroatividade da Lei nº 14.843/24

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Agenda 31/05/2024 às 15:35

A derrubada dos vetos da lei que extinguiu a saidinha temporária de condenados gera conflito entre a segurança da sociedade e a necessidade de ressocialização.

Resumo: O presente texto tem por objetivo precípuo analisar a repercussão da Lei da Saidinha Temporária no ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo, acerca da extinção do benefício, em razão da derrubada dos vetos presidenciais e da irretroatividade da lei nº 14.843, de 2024.

Palavras-chave: Execução penal; benefícios; processuais; saidinha; temporária; extinção; ressocialização.


INTRODUÇÃO

Com a afirmação de que as leis, via de regra, têm por objetivo a regulamentação de eventos futuros, cabe ressaltar que as normas servem justamente para reger as relações jurídicas, fruto de fatos sociais havidos na sociedade. Assim, com esse pensamento declarado de amor a ordem, de construção da cultura da paz, de apreço a harmonia social, é possível afirmar que leis são criadas e revogados em virtude da dinamicidade temporal e evolutiva das relações sociais.

Nesse sentido, importa reconhecer que recentemente o instituto do benefício da saidinha temporária de presos durante a pretensão executória estatal, criado pela Lei de Execução Penal, mas atualmente extinto, foi e continua sendo assunto que tem mexido com a sociedade brasileira, dividindo opiniões e promovendo acirradas discussões sociais e jurídicas.

Em razão de fatos gravíssimos geralmente ocorridos com presos beneficiários da saidinha temporária que recebem o referido benefício e não retornam ao sistema prisional ou que durante o período praticam novos fatos criminosos, o instituto da saidinha temporária passou a receber inúmeras críticas de políticos, especialistas, e da própria sociedade, quanto a sua permanência no ordenamento jurídico pátrio, sendo a matéria enfrentada pela lei nº 14.843, de 2024, que entrou em vigor no dia 11 de abril de 2024.

A ideia central da norma era extinguir de vez o referido instituto, mas a parte que tratava especificamente sobre a sua extinção do benefício foi vetada pelo presidente da república, restando a proibição tão somente para autores de crimes hediondos ou praticados com violência ou grande ameaça a pessoa.

Acontece, que no dia 28 de maio de 2024, o Congresso Nacional, por maioria esmagadora, derrubou o veto presidencial, restabelecendo a ideia original do texto do Projeto de lei, para extinguir definitivamente do sistema legal, o instituto do benefício processual, afastado, doravante, das normas de execução penal no Brasil.

Doravante, a única hipótese de cabimento da saidinha temporária reside na necessidade de o condenado participar de cursos profissionalizantes por tempo limitado ao entendimento do juiz.


1. DA IRRETROATIVIDADE DA LEI DA SAIDINHA TEMPORÁRIA

E de sabença no meio jurídico que a Carta Magna define como direito fundamental a irretroatividade da lei penal, como regra, sendo que somente retroage se for da beneficiar o réu, conforme dicção do artigo 5º, inciso XL da CF/88.

Desse modo fica a indagação. A lei nº 14.843, de 2024 retroage para alcançar as execuções penais em curso?

A LEP define um rol de incidentes de execução penal, em seu artigo 66, inciso I, dentre os quais aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado.

Por sua vez, a Súmula 611 do STF aduz que:

Transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções a aplicação de lei mais benigna.

Em decisão recente, de 28 de maio de 2024, o ministro ANDRÉ MENDONÇA do STF, firmou entendimento em sede de HC 240.770, em razão de Processo oriundo da Comarca de Ipatinga/MG, a saber:

1. Trata-se de habeas corpus impetrado contra decisão, proferida no Superior Tribunal de Justiça, pela qual o Ministro Relator indeferiu liminarmente o Habeas Corpus nº 909.393/MG (e-doc. 8).

2. Consta dos autos (e-doc. 7), e em consulta ao Sistema Eletrônico de Execução Unificado, que o paciente cumpre pena definitiva pela prática do crime do art. 157, § 2º-A, inc. I, do Código Penal (roubo com emprego de arma de fogo), cometido em 04/02/2020. Em decisão proferida em 26/10/2023, o Juízo da Execução Penal autorizou o desempenho de trabalho externo (e-doc. 4) e, em 14/11/2023, a saída temporária (e-doc. 3). Diante da alteração trazida pela Lei nº 14.843, de 2024, instado a se manifestar, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais, inicialmente, apresentou parecer pela revogação dos benefícios, para, posteriormente, ser favorável à manutenção (e-doc. 5), tendo o Magistrado revogado ambos os benefícios e indeferido o pedido de prisão domiciliar, em 25/04/2024 (e-doc. 10).

3. Inconformada, a defesa impetrou habeas corpus no Tribunal de Justiça, tendo o Desembargador Relator indeferido o pedido liminar (e doc. 9). Contra essa decisão, formalizou-se o habeas corpus no STJ.

4. Neste habeas corpus, o impetrante sustenta a irretroatividade de lei penal mais gravosa, fazendo o paciente jus às saídas temporárias e ao trabalho externo nos termos da redação anterior da Lei de Execução Penal. Argumenta o risco de perder a vaga de trabalho lícito e formal que vinha desempenhando por autorização judicial prévia. Defende a existência de constrangimento ilegal capaz de superar o óbice do enunciado nº 691 da Súmula do STF.

5. Requer, no âmbito liminar e no mérito, a suspensão dos efeitos da decisão que revogou os benefícios. 6. Em consulta ao site do TJMG, verifica-se que o Colegiado não conheceu do Habeas Corpus nº 1.0000.24.222260-2/000, em 15/05/2024, vencida a 1ª vogal, que concedia a ordem de ofício.

Na decisão do ministro ANDRÉ MENDONÇA, há destaque nos seguintes pontos:

Este habeas corpus volta-se contra decisão individual de Ministro do Superior Tribunal de Justiça. Inexistindo pronunciamento colegiado do STJ, não compete ao Supremo Tribunal Federal examinar a questão de direito versada na impetração (CRFB, art. 102, inc. I, al. “i”). O caso é de habeas corpus substitutivo de agravo regimental, cabível na origem. Nesse sentido: HC nº 115.659/PR, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, j. 02/04/2013, p. 25/04/2013; HC nº 199.029-AgR/MA, Rel. Min. Edson Fachin, Segunda Turma, j. 16/04/2021, p. 29/04/2021; HC nº 197.645 AgR/RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, j. 07/04/2021, p. 16/04/2021.

Acrescente-se que as questões suscitadas neste habeas corpus nem sequer passaram pelo crivo das instâncias antecedentes. No ato apontado como coator, o Ministro Relator, sem adentrar a matéria de fundo, limitou-se a afirmar a ausência de ilegalidade manifesta e a inviabilidade de superação do entendimento consolidado no verbete nº 691 da Súmula do STF, uma vez que a controvérsia ainda não fora analisada pelo Tribunal de Justiça. A atuação originária desta Suprema Corte acarretaria supressão de instância e ampliação indevida da competência prevista no art. 102. da CRFB. Assim decidiram o Plenário e ambas as Turmas: HC nº 109.430-AgR/DF (Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, j. 10/04/2014, p. 13/08/2014); HC nº 164.535-AgR/RJ (Rel. Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, j. 17/03/2020, p. 20/04/2020); HC nº 163.568/RS (Rel. Min. Marco Aurélio, Red. do Acórdão Min. Rosa Weber, Primeira Turma, j. 13/08/2019, p. 30/08/2019).

O ministro ANDRÉ MENDONÇA destaca a decisão do TJMG, lançando alguns fundamentos:

Ao julgar o habeas corpus, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais entendeu ser matéria afeta ao Juízo de Execução Penal e objeto de agravo de execução, deixando de conhecê-lo pelo princípio da unirrecorribilidade das decisões judiciais. Em voto divergente vencido, a Desembargadora 1ª vogal concedeu a ordem, de ofício, por reconhecer que a Lei nº 14.483, de 2024, configurava novatio in pejus. Destaco passagem pertinente:

“Cediço é que a Constituição Federal proíbe expressamente a retroatividade de lei mais gravosa por força do disposto no art. 5º, inciso XL: "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu", com a finalidade de primar pela segurança jurídica, assegurando a estabilidade das relações já perfectibilizadas. Em que pese a irretroatividade não ser uma proibição constitucional absoluta, a norma penal está adstrita à retroatividade mais benéfica ao réu, inclusive quanto às matérias de execução da pena, nos termos da súmula 611 do STF: "Transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções a aplicação de lei mais benigna".

A Lei 14.843/2024 trata de novatio legis in pejus porquanto prevê que "Não terá direito à saída temporária de que trata o caput deste artigo ou a trabalho externo sem vigilância direta o condenado que cumpre pena por praticar crime hediondo ou com violência ou grave ameaça contra pessoa". Assim, a fim de se assegurar a irretroatividade da lei penal mais gravosa ao condenado (artigo 5º, XL, CF), a norma só deve ser aplicada às execuções formadas após o advento do diploma legal.

Não se olvida que, a partir das informações fornecidas da Unidade Prisional, possam ser os benefícios suspensos por decisão fundamentada do juízo da execução. Mas, configura constrangimento ilegal à garantia constitucional mencionada a aplicação, ex officio, de norma penal mais gravosa, alterando o status libertatis do apenado.” (consulta ao andamento processual no site do TJMG).

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Acerca do princípio da retroatividade penal, o referido ministro destaca:

O Direito Penal orienta-se pelos princípios fundamentais da legalidade e da anterioridade, segundo os quais não há crime nem pena sem prévia cominação legal, ou seja, em regra a norma penal deve ser anterior, não retroagindo a fatos pretéritos, salvo se benéfica ao acusado. Segundo o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica (CRFB, art. 5º, inc. XL, e art. 2º, parágrafo único, do CP), a lei posterior que, de qualquer modo, favoreça o agente, deve ser aplicada a fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado. Ocorrido o fenômeno, consoante o verbete nº 611 da Súmula do STF, a competência para aplicação da lei mais benigna será do juízo da execução.

Na parte dispositiva, o ministro ANDRÉ MENDONÇA arrebata:

Assim, entendo pela impossibilidade de retroação da Lei nº 14.836, de 2024, no que toca à limitação aos institutos da saída temporária e trabalho externo para alcançar aqueles que cumprem pena por crime hediondo ou com violência ou grave ameaça contra pessoa — no qual se enquadra o crime de roubo —, cometido anteriormente à sua edição, porquanto mais grave (lex gravior). Impõe-se, nesse caso, a manutenção dos benefícios usufruídos pelo paciente, ante concessão fundamentada na redação anterior da Lei nº 7.210, de 1984, com alteração da Lei nº 13.964, de 2019. Ante o exposto, não conheço do habeas corpus, porém, concedo a ordem, de ofício, nos termos do art. 192. do RISTF, para determinar a manutenção dos benefícios de saídas temporárias e trabalho externo originalmente concedidos no Processo nº 4400307-66.2020.8.13.0134, da Vara de Execuções Penais, de Cartas Precatórias Criminais e do Tribunal do Júri da Comarca de Ipatinga/MG.


3. A EXTINÇÃO DA SAIDINHA TEMPORÁRIA E A RESSOCIALIZACÃO DO CONDENADO

Muito tem se questionado sobre a extinção do benefício da saidinha temporária. Para alguns especialistas, a extinção da medida afetará, sobremaneira, a ressocialização dos condenados.

Outra parte da sociedade jurídica e do povo em geral, entende que esse benefício processual tem trazido mais consequências maléficas que benéficas.

Por se tratar de tema altamente controvertido, pretende-se abordar os itens abaixo para melhor situar a questão em testilha.

3.1. Teoria da pena

A doutrina brasileira aborda as funções da pena em duas principais teorias. A teoria absoluta e a relativa. A primeira entende que a pena tem função unicamente retributiva. Já a teoria relativa propugna pela função preventiva, advogando a prevenção geral e especial.

Ambas podem ser GERAL OU ESPECIAL, POSITIVA OU NEGATIVA. A teoria da PREVENÇÃO GERAL NEGATIVA exerce função de intimação ou coação social. Assim, para esta teoria, quando se aplica uma pena ao condenado, todos os membros da sociedade se sentem indiretamente ameaçados. Se alguém pratica um delito e é exemplarmente punido, existe um recado direto para os demais membros da sociedade. Olha, aqui a lei existe e funciona. Não se trata apenas de um pedaço de papel, frio e inerte. Se alguém cometer um delito ele será inexoravelmente responsabilizado.

Por sua vez, a teoria da PREVENÇÃO GERAL POSITIVA consiste no senso comum de todos, que voluntariamente, decidem em cumprir as leis vigentes, por entenderem que o comando normativo existe para ser cumprido, em prol da construção da harmonia social.

Entende-se por PREVENÇÃO ESPECIAL NEGATIVA, o fato de a imposição da pena privativa de liberdade impor o cárcere, e logo a neutralização do autor é um fator de prevenção especial, por entender que a sua neutralização o impede de reproduzir condutas criminosas, ao menos no espaço de onde foi retirado.

Por último a PREVENÇÃO ESPECIAL POSITIVA, para a qual, a pena tem função de ressocialização, sendo, portanto, integrativa, eis que busca emendar o criminoso, restaurando-o para viver em sociedade, de forma obediente e cumpridor das normas sociais.

O Código Penal brasileiro adotou expressamente a Teoria Mista ou Eclética, também chamada de UNIFICADORA DA PENA, e o fez, na parte final do artigo 59 do CP, in verbis:

Art. 59. - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.

3.2. Regras Internacionais de cumprimento de penas não privativas de liberdade

O Brasil possui nos dias atuais a terceira maior população prisional do mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e da China. Segundo dados de pesquisas em fontes abertas, o país hoje possui uma população carcerária de aproximadamente 852 mil presos, entre detentos cumprindo penas no sistema convencional e recolhidos em prisões domiciliares, com ou sem monitoração eletrônica. Diante da comprovada falência da pena de prisão, alguns Regras Internacionais têm estimulado a substituição das penas privativas de liberdade por penas alternativas. Nesse sentido aparecem as Regras de Tóquio, Regras de Mandela e Regras de Bangkok.

As REGRAS DE TÓQUIO, conhecidas por REGRAS MÍNIMAS PADRÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A ELABORAÇÃO DE MEDIDAS NÃO PRIVATIVAS DE LIBERDADE.

Logo em sua parte exordial, há a previsão dos princípios fundamentais, buscando, sobretudo, assegurar o equilíbrio adequado entre os direitos dos infratores, os direitos das vítimas e a preocupação da sociedade com a segurança pública e a prevenção do crime e a promoção dos direitos humanos, a saber:

I . Princípios Gerais

1. Objetivos fundamentais

1.1. Estas Regras Mínimas Padrão enunciam uma série de princípios básicos que visam promover o uso de medidas não privativas de liberdade, assim como garantias mínimas para os indivíduos submetidos a medidas substitutivas ao aprisionamento.

1.2. Estas Regras visam promover o envolvimento e a participação da coletividade no processo da justiça criminal, especificamente no tratamento dos infratores, assim como desenvolver nestes o sentido de responsabilidade para com a sociedade.

1.3. A aplicação destas Regras deve levar em consideração a situação política, econômica, social e cultural de cada país e os fins e objetivos de seu sistema de justiça criminal.

1.4. Ao aplicar as Regras, os Estados-Membros devem se esforçar para assegurar o equilíbrio adequado entre os direitos dos infratores, os direitos das vítimas e a preocupação da sociedade com a segurança pública e a prevenção do crime.

1.5. Os Estados-Membros devem desenvolver em seus sistemas jurídicos medidas não privativas de liberdade para proporcionar outras opções e assim reduzir a utilização do encarceramento e racionalizar as políticas de justiça criminal, levando em consideração a observância aos direitos humanos, as exigências da justiça social e as necessidades de reabilitação dos infratores.

As Regras de Tóquio demonstram a necessidade de o sistema de justiça criminal assegurar a maior flexibilidade, compatível com a natureza e a gravidade da infração, com a personalidade e os antecedentes do infrator e com a proteção da sociedade, e ainda para evitar o recurso desnecessário ao encarceramento, o sistema de justiça criminal deverá oferecer uma grande variedade de medidas não privativas de liberdade, desde medidas tomadas na fase pré-julgamento até as da fase pós-sentença. O número e as espécies de medidas não privativas de liberdade disponíveis devem ser determinados de modo que seja ainda possível a fixação coerente da pena

Sobre o instituto da prisão preventiva, as referidas regras trazem importantes disposições legais, segundo a qual, a prisão preventiva como medida de último recurso. Dispõe que a prisão preventiva deve ser uma medida de último recurso nos procedimentos penais, com a devida consideração ao inquérito referente à infração presumida e à proteção da sociedade e da vítima. As medidas substitutivas da prisão pré-julgamento devem ser utilizadas o mais cedo possível. A prisão pré-julgamento não deve durar mais do que o tempo necessário para atingir os objetivos enunciados e deve ser administrada com humanidade e respeito à dignidade da pessoa. O infrator deve ter o direito de recorrer, em caso de prisão pré-julgamento, a uma autoridade judiciária ou qualquer outra autoridade independente.

As REGRAS DE MANDELA, conhecidas por Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos são formadas por 122 regras, tratando desde os princípios básicos até pessoas presas ou detidas sem acusação.

Assim, a Regra nº 1, estabelece que todos os reclusos devem ser tratados com o respeito inerente ao valor e dignidade do ser humano. Nenhum recluso deverá ser submetido a tortura ou outras penas ou a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes e deverá ser protegido de tais atos, não sendo estes justificáveis em qualquer circunstância. A segurança dos reclusos, do pessoal do sistema prisional, dos prestadores de serviço e dos visitantes deve ser sempre assegurada.

A Regra 74 diz respeito ao pessoal do estabelecimento prisional. Assim, a administração prisional deve selecionar cuidadosamente o pessoal de todas as categorias, dado que é da sua integridade, humanidade, aptidões pessoais e capacidades profissionais que depende a boa gestão dos estabelecimentos prisionais. A administração prisional deve esforçar-se permanentemente por sus citar e manter no espírito do pessoal e da opinião pública a convicção de que esta missão representa um serviço social de grande importância; para o efeito, devem ser utilizados todos os meios adequados para esclarecer o público. Para a realização daqueles fins, os membros do pessoal devem desempenhar funções a tempo inteiro na qualidade de profissionais do sistema prisional, devem ter o estatuto de funcionários do Estado e ser-lhes garantida, por conseguinte, segurança no emprego dependente apenas de boa conduta, eficácia no trabalho e aptidão física. A remuneração deve ser suficiente para permitir recrutar e manter ao serviço homens e mulheres competentes; as regalias e as condições de emprego devem ser determinadas tendo em conta a natureza penosa do trabalho.

Ainda sobre o pessoal do estabelecimento prisional, a regra 75 recomenda que os funcionários devem possuir um nível de educação adequado e deve ser-lhes proporcionadas condições e meios para poderem exercer as suas funções de forma profissional. Devem frequentar, antes de entrar em funções, um curso de formação geral e específico, que deve refletir as melhores e mais modernas práticas, baseadas em dados empíricos, das ciências penais. Apenas os candidatos que ficarem aprovados nas provas teóricas e práticas devem ser admitidos no serviço prisional. Após a entrada em funções e ao longo da sua carreira, o pessoal deve conservar e melhorar os seus conhecimentos e competências profissionais, seguindo cursos de aperfeiçoamento organizados periodicamente.

A Regra 91 diz respeito ao tratamento dispensado às pessoas condenadas. Assim, o tratamento das pessoas condenadas a uma pena ou medida privativa de liberdade deve ter por objetivo, na medida em que o permitir a duração da condenação, criar nelas a vontade e as aptidões que as tornem capazes, após a sua libertação, de viver no respeito pela lei e de prover às suas necessidades. Este tratamento deve incentivar o respeito por si próprias e desenvolver o seu sentido da responsabilidade.

Por sua vez, as REGRAS DE BANGKOK dizem respeito às REGRAS DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O TRATAMENTO DE MULHERES PRESAS E MEDIDAS NÃO PRIVATIVAS DE LIBERDADE PARA MULHERES INFRATORAS e são previstas em 70 regras.

Logo na regra nº 01, a referidas regras definem que a fim de que o princípio de não discriminação, incorporado na regra 6 das Regras mínimas para o tratamento de reclusos, seja posto em prática, deve-se ter em consideração as distintas necessidades das mulheres presas na aplicação das Regras. A atenção a essas necessidades para atingir igualdade material entre os gêneros não deverá ser considerada discriminatória.

As regras 31, 32 e 33 dizem respeito à qualificação do pessoal destinado ao trabalho nos estabelecimentos penais. Assim, deverão ser elaborados e aplicados regulamentos e políticas claras sobre a conduta de funcionários/ as, com o intuito de prover a máxima proteção às mulheres presas contra todo tipo de violência física ou verbal motivada por razões de gênero, assim como abuso e assédio sexual. As servidoras mulheres do sistema penitenciário feminino deverão ter o mesmo acesso à capacitação que os servidores homens e todos os/as funcionários/as da administração de penitenciárias femininas receberão capacitação sobre questões de gênero e a proibição da discriminação e o assédio sexual. Todo funcionário/a designado para trabalhar com mulheres presas deverá receber treinamento sobre as necessidades específicas das mulheres e os direitos humanos das presas. Deverá ser oferecido treinamento básico aos/as funcionários/as das prisões sobre as principais questões relacionadas à saúde da mulher, além de medicina básica e primeiros-socorros. Onde crianças puderem acompanhar suas mães na prisão, os/as funcionários/as também serão sensibilizados sobre as necessidades de desenvolvimento das crianças e será oferecido treinamento básico sobre atenção à saúde da criança para que respondam com prontidão a emergências.

3.3. Medidas de ressocialização e direito premial

As leis penais, processuais e de execução penal no Brasil preveem diversas medidas despenalizadoras e concessivas de inúmeros benefícios processuais.

A legislação penal e processual penal prevê vários institutos despenalizadores, a exemplo da suspensão condicional da pena, artigo 77 do CP, e suspensão condicional do processo, artigo 89 da Lei nº 9.099 de 1995. Ainda prevê a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos, artigo 43 do CP, em casos de condenação a pena não superior a 04 anos, nos crimes praticados sem violência ou grave ameaça a pessoa.

Recentemente, o pacote anticrimes trouxe expressa modalidade do chamado direito penal negocial, insculpido no artigo 28-A do Código de Processo Penal; assim, o instituto do Acordo de Não persecução criminal, a saber:

Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:

I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;

II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;

III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46. do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);

IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45. do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal) a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou

V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

Como medidas de ressocialização, é possível citar ainda na legislação penal, processual e na Lei de Execução penal, os institutos do trabalho dos presos, da previsão dos regimes de progressão de cumprimento da pena, art. 112. da LEP, do livramento condicional da pena, artigo 83 do CP, a temática da remição da pena, art. 126. da LEP, podendo ser remição pelo trabalho, estudos, leitura de obras literárias, e se a execução da penal for em Minas Gerais, ainda existe o instituto das férias dos presos a teor do artigo 59 da Lei nº 11.404, de 1994.

A Lei nº 12.404, de 2011 operou diversas modificações no Código de Processo Penal, notadamente, quando introduziu nove medidas cautelares alternativas da prisão no artigo 319 do CPP, desde o comparecimento periódico em juízo até a monitoração eletrônica, a saber:

Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão:

I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades;

II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;

III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;

IV - proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução;

V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos;

VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais;

VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26. do Código Penal) e houver risco de reiteração;

VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial;

IX - monitoração eletrônica

3.4. A extinção da saidinha temporária afetará a ressocialização do condenado?

Em razão dos inúmeros outros benefícios processuais existentes no ordenamento jurídico pátrio, consoante item em epígrafe, não há indícios fortes e convincentes que a extinção da saidinha temporária deva prejudicar o processo de ressocialização dos condenados no Brasil, argumentos que serão pormenorizados expostos nas reflexões finais deste ensaio.

Sobre o autor
Jeferson Botelho Pereira

Jeferson Botelho Pereira. Ex-Secretário Adjunto de Justiça e Segurança Pública de MG, de 03/02/2021 a 23/11/2022. É Delegado Geral de Polícia Civil em Minas Gerais, aposentado. Ex-Superintendente de Investigações e Polícia Judiciária de Minas Gerais, no período de 19 de setembro de 2011 a 10 de fevereiro de 2015. Ex-Chefe do 2º Departamento de Polícia Civil de Minas Gerais, Ex-Delegado Regional de Governador Valadares, Ex-Delegado da Divisão de Tóxicos e Entorpecentes e Repressão a Homicídios em Teófilo Otoni/MG, Graduado em Direito pela Fundação Educacional Nordeste Mineiro - FENORD - Teófilo Otoni/MG, em 1991995. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Teoria Geral do Processo, Instituições de Direito Público e Privado, Legislação Especial, Direito Penal Avançado, Professor da Academia de Polícia Civil de Minas Gerais, Professor do Curso de Pós-Graduação de Direito Penal e Processo Penal da Faculdade Estácio de Sá, Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela FADIVALE em Governador Valadares/MG, Prof. do Curso de Pós-Graduação em Ciências Criminais e Segurança Pública, Faculdades Unificadas Doctum, Campus Teófilo Otoni, Professor do curso de Pós-Graduação da FADIVALE/MG, Professor da Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC-Teófilo Otoni. Especialização em Combate à corrupção, crime organizado e Antiterrorismo pela Vniversidad DSalamanca, Espanha, 40ª curso de Especialização em Direito. Mestrando em Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória/ES. Participação no 1º Estado Social, neoliberalismo e desenvolvimento social e econômico, Vniversidad DSalamanca, 19/01/2017, Espanha, 2017. Participação no 2º Taller Desenvolvimento social numa sociedade de Risco e as novas Ameaças aos Direitos Fundamentais, 24/01/2017, Vniversidad DSalamanca, Espanha, 2017. Participação no 3º Taller A solução de conflitos no âmbito do Direito Privado, 26/01/2017, Vniversidad DSalamanca, Espanha, 2017. Jornada Internacional Comjib-VSAL EL espaço jurídico ibero-americano: Oportunidades e Desafios Compartidos. Participação no Seminário A relação entre União Europeia e América Latina, em 23 de janeiro de 2017. Apresentação em Taller Avanco Social numa Sociedade de Risco e a proteção dos direitos fundamentais, celebrado em 24 de janeiro de 2017. Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad Del Museo Social Argentino, Buenos Aires – Argentina, autor do Livro Tráfico e Uso Ilícitos de Drogas: Atividade sindical complexa e ameaça transnacional, Editora JHMIZUNO, Participação no Livro: Lei nº 12.403/2011 na Prática - Alterações da Novel legislação e os Delegados de Polícia, Participação no Livro Comentários ao Projeto do Novo Código Penal PLS nº 236/2012, Editora Impetus, Participação no Livro Atividade Policial, 6ª Edição, Autor Rogério Greco, Coautor do Livro Manual de Processo Penal, 2015, 1ª Edição Editora D´Plácido, Autor do Livro Elementos do Direito Penal, 1ª edição, Editora D´Plácido, Belo Horizonte, 2016. Coautor do Livro RELEITURA DE CASOS CÉLEBRES. Julgamento complexo no Brasil. Editora Conhecimento - Belo Horizonte. Ano 2020. Autor do Livro VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. 2022. Editora Mizuno, São Paulo. articulista em Revistas Jurídicas, Professor em Cursos preparatórios para Concurso Público, palestrante em Seminários e Congressos. É advogado criminalista em Minas Gerais. OAB/MG. Condecorações: Medalha da Inconfidência Mineira em Ouro Preto em 2013, Conferida pelo Governo do Estado, Medalha de Mérito Legislativo da Assembléia Legislativa de Minas Gerais, 2013, Medalha Santos Drumont, Conferida pelo Governo do Estado de Minas Gerais, em 2013, Medalha Circuito das Águas, em 2014, Conferida Conselho da Medalha de São Lourenço/MG. Medalha Garimpeiro do ano de 2013, em Teófilo Otoni, Medalha Sesquicentenária em Teófilo Otoni. Medalha Imperador Dom Pedro II, do Corpo de Bombeiros, 29/08/2014, Medalha Gilberto Porto, Grau Ouro, pela Academia de Polícia Civil em Belo Horizonte - 2015, Medalha do Mérito Estudantil da UETO - União Estudantil de Teófilo Otoni, junho/2016, Título de Cidadão Honorário de Governador Valadares/MG, em 2012, Contagem/MG em 2013 e Belo Horizonte/MG, em 2013.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Jeferson Botelho. Atualidades da saidinha temporária: da ressocialização a irretroatividade da Lei nº 14.843/24. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7639, 31 mai. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/109609. Acesso em: 22 dez. 2024.

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