REFLEXÕES FINAIS
O benefício da saidinha temporária sempre foi tema de acirradas discussões sociais e jurídicas no Brasil. Uma corrente defende que a medida faz parte do rol de ações voltadas para a ressocialização dos presos; uma parcela da sociedade critica severamente a concessão do benefício considerando o número de presos que não retorna após o término do período; uma outra corrente faz severas críticas ao instituto em razão dos crimes praticados pelos beneficiários da saidinha durante o prazo de concessão.
Sempre há notícias de crimes graves praticados por beneficiários durante a concessão da benesse processual, a exemplo da morte do Sargento Roger Dias durante a abordagem a um criminoso que estava com o benefício da saidinha temporária. O fato aconteceu no bairro Novo Aarão Reis, região norte de Belo Horizonte, em 05 de janeiro de 2024, tendo sido o militar assassinado com tiros à queima-roupa, crime que causou grande repercussão no Brasil, dado a perpetrada crueldade do crime.
Em função do crime que vitimou o policial em Belo Horizonte, foi proposto um Projeto de Lei visando a extinção do benefício da saidinha temporária, o que do movimento social restou na aprovação da Lei nº 14.843, de 11 de abril de 2024. Acontece que a parte que pretendia totalmente a extinção da saidinha temporária foi vetada pelo Presidente da República, cujas razões do veto se fundamentam, em síntese na possível inconstitucionalidade por afrontar o teor normativo do art. 226 da Constituição, que atribui ao Estado o dever de especial proteção da família, e contrariaria, ainda, segundo os argumentos lançados a racionalidade da resposta punitiva, a saber:
“O instituto da saída temporária está atrelado, exclusivamente, ao âmbito do regime semiaberto, no qual a projeção temporal de execução da pena exige, do Estado, atuação proativa para a obtenção do equilíbrio entre (i) a privação da liberdade de quem infringiu a lei penal (ação punitiva) e (ii) a sua progressiva reintegração (ação preventiva).
Destarte, a proposta de revogação do direito à visita familiar, enquanto modalidade de saída temporária, restringiria o direito do apenado ao convívio familiar, de modo a ocasionar o enfraquecimento dos laços afetivo-familiares que já são afetados pela própria situação de aprisionamento.
É basilar ponderar que, à luz dos delineamentos declarados pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF nº 347, a manutenção de visita esporádica à família minimiza as efeitos do cárcere e favorece o paulatino retorno ao convívio social. Tal medida não se dá por discricionariedade estatal, mas, sim, pela normatividade da Constituição, que, ao vedar o aprisionamento perpétuo, sinaliza, por via reflexa, a relevância da diligência pública no modo de regresso da população carcerária à sociedade.
Portanto, a proposta legislativa de revogação do inciso I do caput do art. 122. da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 - Lei de Execução Penal é inconstitucional por afrontar o teor normativo do art. 226. da Constituição, que atribui ao Estado o dever de especial proteção da família, e contrariaria, ainda, a racionalidade da resposta punitiva (...)”
Posteriormente, o Congresso Nacional, derrubou os vetos da Lei nº 14.843, de 2024, restabelecendo a ideia do projeto originário; neste caso, após a promulgação das partes vetadas, a saidinha temporária fica extinta definitivamente do sistema de execução penal, com a revogação do artigo 122 da LEP.
Durante a tramitação do Projeto de Lei das Saidinhas temporárias várias vozes se levantaram contra a extinção do benefício, sob alegação de prejuízo para o processo de ressocialização dos condenados no Brasil. A meu sentir, essa corrente não pode prosperar diante de uma infinidade de benefícios processuais existentes no ordenamento jurídico pátrio, a exemplo do regime progressivo de cumprimento da pena, as várias espécies de remição da pena, o livramento condicional da pena, a suspensão condicional da pena e do processo, a substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direito nas condenações não superiores a 04 anos, nos crimes praticados sem violência ou grave ameaça a pessoa, além de outras benesses processuais.
Em 28 de maio de 2024, o ministro ANDRÉ MENDONÇA decidiu monocraticamente em sede de HC nº 240.770, de Minas Gerais, por entender pela impossibilidade de retroação da Lei nº 14.836, de 2024, no que toca à limitação aos institutos da saída temporária e trabalho externo. No tocante à retroatividade da Lei, o referido ministro lança os fundamentos, segundo os quais “o Direito Penal orienta-se pelos princípios fundamentais da legalidade e da anterioridade, segundo os quais não há crime nem pena sem prévia cominação legal, ou seja, em regra a norma penal deve ser anterior, não retroagindo a fatos pretéritos, salvo se benéfica ao acusado. Segundo o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica (CRFB, art. 5º, inc. XL, e art. 2º, parágrafo único, do CP), a lei posterior que, de qualquer modo, favoreça o agente, deve ser aplicada a fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado. Ocorrido o fenômeno, consoante o verbete nº 611 da Súmula do STF, a competência para aplicação da lei mais benigna será do juízo da execução.”
Desta forma, o STF já sinaliza que a novíssima lei 14.843, de 2024 é hipótese de novatio legis in pejus, sendo, portanto, norma que agrava a situação dos condenados, não sendo aplicável a atual massa prisional que gira em torno de 852 mil presos. Independentemente da discussão de ser norma penal ou processual, a lei das saidinhas temporárias não é aplicável às execuções em andamento, o que poderia abstrair-se a contrário sensu do entendimento firmado da Súmula 611 do STF.
Extinto o benefício da saidinha temporária, em razão da derrubada dos vetos, a meu sentir nos próximos dias, algum partido político ou outra parte legitimada do artigo 103 da Carta Magna, deverá arguir a inconstitucionalidade da Lei nº 14.843, de 2024, a meu aviso, de forma indevida, sob alegação de que negar ou proibir a saidinha temporária é contrariar o princípio da individualização da pena e da dignidade da pessoa humana, consoante artigo 1º, inciso III, c/c artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição da República de 1988.
Arremata-se para afirmar convictamente que as saidinhas temporárias podem até possibilitar o retorno gradual do apenado ao seio social, familiar, facilitando a sua reintegração social; em contrapartida, se apenas um beneficiário da medida voltar a praticar novo crime contra a sociedade, voltar a transgredir as normas de boa convivência, e ameaçar a ordem social, tudo isso, já se torna medida prejudicial ao tecido social, motivo bastante para expurgar do sistema legal, algo que agride os interesses da coletividade. Quem determina a vontade da norma é a maioria volitiva da população e se a sociedade repudia normas permissivas, benevolentes e frouxas, fica bem claro que se o cidadão, expurgando seu lado agressivo, plenamente capaz, resolve de forma deliberada agredir as regras do pacto social, deve ele arcar com as consequências de sua conduta, assumir e suportar o ônus de seu comportamento desviante. Pensar diferente pode ser ato próprio do festejado modelo democrático, da inegociável liberdade de expressão, mas, totalmente divorciante da vontade da maioria da sociedade que não suporta mais viver dentro de um sistema de garantismo atrofiado e esquizofrênico que busca serena e hiperbolicamente proteger apenas o delinquente social como se ele fosse um coitado qualquer, com o nojento rótulo de vítima da própria sociedade. A prisão é justamente a consequência lógica e natural de quem fez mau uso da liberdade.
REFERÊNCIAS
BRASIL. STF – HC Nº 240.770/2024. Disponível em <https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2024/05/Mendonca-HC-irretroatividade-lei-saidinhas.pdf>. Acesso em 30 de maio de 2024.
REGRAS DE TÓQUIO. Disponível em <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/6ab7922434499259ffca0729122b2d38-2.pdf>. Acesso em 30 de maio de 2024.
REGRAS DE MANDELA. Disponível em <https://www.unodc.org/documents/justice-and-prison-reform/Nelson_Mandela_Rules-P-ebook.pdf>. Acesso em 30 de maio de 2024.
REGRAS DE BANGKOK. Disponível em <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/cd8bc11ffdcbc397c32eecdc40afbb74.pdf>. Acesso em 30 de maio de 2024.