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O arroz da discórdia

Agenda 07/06/2024 às 07:32

Produtores de arroz lucraram com a revogação da legislação que garantia estoques reguladores. Agora, querem impedir o governo de importar arroz para garantir preços estáveis, priorizando os lucros dos produtores em detrimento dos consumidores.

Durante o governo Bolsonaro, os produtores de arroz fizeram a festa. O governo revogou toda a legislação que garantia a existência de estoques reguladores e liberou a exportação do produto. O efeito foi um aumento significativo das exportações brasileiras de arroz para os EUA e a explosão dos preços do produto nas gôndolas dos supermercados brasileiros.

Tudo isso obviamente foi contabilizado como lucro pelos produtores e exportadores. Eles realmente não se importam com a fome do povo brasileiro. Isso explica o ódio que eles manifestam contra a importação de arroz decidida pelo governo Lula. Eles provavelmente acreditavam que poderiam inflar os preços do produto em virtude da quebra da safra de arroz no Rio Grande do Sul.

Felizmente o TRF-4 revogou a decisão de um juiz de primeira instância que havia proibido o governo federal de leiloar arroz importado. A questão da importação do produto, porém, também foi levada pela CNA ao STF através da ADI 7664, distribuída para o Ministro André Mendonça.

Na sua petição, a CNA formulou os seguintes pedidos:

(1) o conhecimento da presente Ação Direta de Inconstitucionalidade, por cumprimento das exigências do art. 3º, da Lei nº 9.868, de 10.11.1999, e observância da jurisprudência do STF;

(2) a concessão de medida cautelar pelo relator, ad referendum do Plenário do Supremo Tribunal Federal, com base no art. 10, § 3º, da Lei nº 9.868, de 10.11.1999, para suspender de imediato a realização da Compra Pública nº 047/2024 (planejada pela CONAB/MDA para ocorrer no próximo dia 06.06.2024) até julgamento final da presente ADI pelo STF, bem como de todo e qualquer leilão de compra de arroz estrangeiro até o julgamento final desta ação;”

(3) a solicitação de informações ao Presidente da República, ao Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), ao Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), ao Ministério da Fazenda (MF) e ao Comitê-Executivo de Gestão da Câmara de Comércio Exterior, editores dos atos normativos questionados;

(4) a intimação do Advogado-Geral da União (AGU) e do ProcuradorGeral da República (PGR), nos termos do art. 10, § 1º, da Lei nº 9.868, de 10.11.1999;

(5) ao final, o julgamento pela integral procedência da presente Ação Direta de Inconstitucionalidade com a declaração de inconstitucionalidade integral (i) da Medida Provisória nº 1.217, de 9 de maio de 2024; (ii) da Medida Provisória nº 1.224, de 24 de maio de 2024; (iii) da Portaria Interministerial MDA/MAPA/MF nº 3, de 14.05.2024, (iv) da Portaria Interministerial MDA/MAPA/MF nº 4, de 28.05.2024; e (v) da Resolução GECEX nº 593, de 20 de maio de 2024.”

O Ministro André Mendonça indeferiu o pedido de liminar e mandou intimar as autoridades que deverão se manifestar nos autos. Segundo ele, na ADI 7664 “...não se vislumbra, neste primeiro exame, prejuízo ou perecimento imediatos, apto a inviabilizar a colheita prévia das manifestações de praxe. Frise-se, inclusive, que a realização do leilão, por si só, não configura qualquer óbice à sua ulterior sindicabilidade judicial.” Apesar de correta, referida decisão provavelmente vai enfurecer os produtores de arroz que pretendiam impedir o governo de preservar a estabilidade dos preços do produto.

A petição da CNA, que mais parece um daqueles bilhetinhos que os judeus enfiam nas frestas do Muro das Lamentações tentando convencer Jeová a fazer ou deixar de fazer alguma coisa que eles desejam, resume-se à um amontoado de argumentos falaciosos. No fundo a CNA quer impedir o governo brasileiro de governar, de cumprir sua missão constitucional de assegurar a segurança alimentar dos brasileiros. Felizmente essa pretensão foi rejeitada por André Mendonça, algo que certamente o fará ser tratado como traidor pela quadrilha bolsonarista “pró lucros à qualquer custo”.

Mendonça, todavia, não poderia trair o texto da constituição. A ordem econômica brasileira é baseada na livre concorrência como diz a CNA, mas não apenas nela. No Brasil, o Estado pode e deve garantir “a defesa do consumidor” (art. 170, V, da CF/88).

É fato notório que a catástrofe do Rio Grande do Sul comprometeu a safra de arroz gaúcho. Esse fato expõe os consumidores brasileiros a uma alta de preços que beneficiará apenas os produtores de grãos, os atravessadores e especuladores.

Nesse contexto, impedir o Estado de importar arroz para garantir a estabilidade dos preços de arroz é apenas uma maneira que a CNA encontrou de maximizar os lucros dos empresários com prejuízo dos consumidores brasileiros. Ninguém pode impedir os produtores de arroz de querer aumentar seus lucros, mas o Estado não deve ser impedido de proteger os interesses da população brasileira cuja segurança alimentar depende do consumo de arroz a preço de mercado não distorcido por uma calamidade pública.

A decisão do relator está correta e provavelmente será mantida em caso de recurso. O enriquecimento sem causa não é apenas imoral, ele é ilegal (art. 884, do Código Civil). O enriquecimento por causa de uma catástrofe ambiental que provoca aumento dos preços de um produto que ficou escasso (e cuja escassez poderia ser suprida pelo Estado mediante importação) não é apenas imoral. Isso também é inconstitucional, pois nesse caso o enriquecimento dos produtores rurais e dos atravessadores acarretaria o empobrecimento de milhões de brasileiros, muitos dos quais já estão em situação miserável.

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Erradicar a pobreza é um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3°, III, da CF/88). Se atender o pedido da CNA quando julgar o mérito da ação o STF maximizará o lucro dos produtores de arroz, mas isso só poderá ser feito mediante a acintosa violação do texto constitucional. O STF é guardião da Constituição Cidadã ou um defensor do neoliberalismo imoderado defendido pelo autor da ADI 7664? Esta é a questão que os Ministros da Suprema Corte precisam responder ao julgar a presente ação.

A saúde é um direito de todos e um dever do Estado (art. 196, da CF/88). É cediço que as pessoas famintas ficam mais expostas às doenças. Portanto, se o relator do caso comentado concedesse a liminar pretendida seria previsível tanto o aumento do preço do arroz quanto o recrudescimento da insegurança alimentar dos brasileiros com reflexos quase imediatos no Sistema Único de Saúde.

A CNA pagaria a despesa excedente que o SUS terá com dezenas ou centenas de milhares de pacientes frágeis e desnutridos que terão que ser socorridos pelo Estado caso a ação seja julgada procedente? A resposta é não. E aqui chegamos à última questão que merece ser debatida em relação à referida ADI.

O autor da ação não instruiu a petição inicial com um compromisso escrito assinado por todos os produtores de arroz brasileiros dizendo que os preços atuais do produto serão mantidos apesar da quebra da safra gaúcha de arroz. Esse documento seria essencial para o STF considerar plausível o argumento de que a importação estatal do produto é realmente desnecessária. Sem esse documento nos autos, os produtores adquirem o privilégio de aumentar o preço do produto após a liminar ser concedida ou a ação ser julgada procedente. Nesse caso, os cidadãos prejudicados não poderiam fazer nada porque a Suprema Corte foi induzida a cometer uma injustiça sem que os beneficiários dela (a CNA e os produtores de arroz) pudessem ser responsabilizados pelos abusos cometidos.

Tudo bem pesado, a ação ajuizada pela CNA não para em pé. Ela nasceu morta e deve ser rapidamente enterrada. E o Ministro André Mendonça fez bem ao indeferir a liminar demonstrando fidelidade ao texto da Constituição Cidadã.

Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Fábio Oliveira. O arroz da discórdia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7646, 7 jun. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/109714. Acesso em: 22 nov. 2024.

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