Criado e mantido pelo veterano jornalista Luis Nassif, o Jornal GGN foi o primeiro órgão de imprensa a noticiar a criação de um Big Brother brasileiro pelo governo Bolsonaro. Entorpecida pela financialização da economia que foi promovida por Paulo Guedes e agradecida pelas verbas de publicidade que recebeu do governo do capitão genocida, a grande imprensa fingiu não ver o que estava acontecendo, demorou a reconhecer a importância do escândalo da farra da espionagem e, por fim, tentou levar o crédito por um furo que não deu.
Em 10/06-2024 o STF realizou audiência pública com especialistas para debater o uso de softwares espiões. A audiência ocorreu em atenção ao despacho proferido pelo Ministro Cristiano Zanin nos autos da ADPF 1143, ação convertida na ADO 84/DF.
A questão jurídica relevante foi magnificamente delimitada na petição inicial da ação e pode ser resumida numa frase lapidar da PGR que a subscreveu:
“O ponto central da controvérsia que a presente ação cinge-se ao uso secreto e abusivo desses softwares e ferramentas, sem autorização judicial, tampouco limites ou salvaguardas, de forma contrária à tutela do interesse público e aos deveres de proteção dos direitos fundamentais, que se impõem em um Estado de direito.”
Em razão do dever de respeito ao princípio da legalidade imposto aos agentes públicos pela Constituição Cidadã, o Estado brasileiro não é dual. Os órgãos públicos brasileiros e seus servidores civis e militares não têm a prerrogativa de escolher agir dentro da Lei em alguns e fora dela em outros.
Correta, portanto, a posição da PGR. Softwares espiões como aqueles que foram mencionados na ADPF 1143 (ADO 84/DF) devem ser utilizados apenas com autorização judicial prévia e supervisão posterior do Judiciário. Por sua própria natureza, esses softwares são projetados para possibilitar a infiltração sorrateira nos computadores, smartphones, tabletes dos cidadãos que utilizam a internet. Isso só pode ocorrer mediante a violação da privacidade constitucionalmente outorgada aos cidadãos. Além disso, nunca é demais mencionar aqui que a espionagem virtual gera dados e proporciona a coleta de dados pessoais sensíveis. Esses dados obviamente não podem ficar exclusivamente à disposição dos agentes ou dos órgãos públicos que utilizam softwares espiões como se a eles não se aplicassem as regras da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.
Desde que surgiu a internet passou por diversos estágios. No princípio ela era acessada por uma quantidade pequena de pessoas que, via de regra, se limitavam a compartilhar ideias, textos e eventualmente imagens. À medida que se expandiu seguindo o rastro da popularização e do barateamento dos computadores pessoais, a rede mundial de computadores começou a incorporar mais e mais coisas do mundo real (museus, bibliotecas, órgãos públicos, comércio on line, jornais e revistas, entretenimento, redes sociais, etc...).
À medida que o mundo real migrava para o virtual duas coisas aconteceram: a primeira foi a discussão acerca da aplicação ou não das normas jurídicas estatais às relações e eventualmente aos crimes cometidos na internet ou por intermédio dela; a segundo foi a captura e utilização da rede mundial de computadores por agências de inteligência.
Em pouco tempo os Judiciários de diversos países começaram a cristalizar o entendimento de que a internet não é terra de ninguém. As legislações nacionais se aplicam aos fatos juridicamente relevantes que ocorrem no mundo virtual. A imensa estrutura de espionagem organizada pela NSA com ajuda das Big Techs norte-americanas foi furada por Edward Snowden. Em consequência desse escândalo novas legislações começaram a ser debatidas e aprovadas para garantir a privacidade dos cidadãos no mundo virtual.
Nos parágrafos anteriores, foi esboçado de maneira bastante rudimentar o contexto que precedeu a criação, aquisição e utilização dos novos softwares espiões. Agora convém discutir a especificidade do caso brasileiro noticiado em primeira mão pelo Jornal GGN.
Nunca é demais lembrar que os softwares mencionados pela PGR foram comprados durante a gestão de Jair Bolsonaro e predominantemente usados para espionar os adversários políticos do capitão autocrata que gostava de proclamar “Eu sou a constituição!” Se tivessem sido utilizados regularmente pelo Estado com a supervisão do Judiciário, referidos softwares poderiam ter impedido a Intentona Bolsonarista de 08 de janeiro de 2023. Isso obviamente não aconteceu. Em razão das predileções políticas de diversos agentes da ABIN e dos serviços de inteligência das Forças Armadas, nós podemos supor que durante e depois da eleição de Lula os softwares espiões foram empregados para um propósito muito mais sórdido: espionar os agentes públicos encarregados de impedir um golpe de estado.
É evidente, portanto, que o objeto da ADPF 1143 (ADO 84/DF) não se limita à preservação dos direitos constitucionais outorgados aos cidadãos brasileiros. A aquisição e utilização de softwares espiões sem autorização judicial prévia e supervisão posterior do Judiciário coloca em risco o regime político brasileiro. A médio e longo prazos, a farra da espionagem controlada pela extrema direita comprometerá o Sistema Constitucional democrático do país levando-o a mergulhar numa ditadura insana, belicosa, violenta, racista e inimiga de qualquer princípio civilizatório básico. Esse é um excelente argumento para o STF colocar um ponto final no Big Brother bolsonarista.
Apenas para ilustrar o grau de paranoia obscurantista em que Bolsonaro estava mergulhando o Brasil com ajuda dos lacaios dele que operavam softwares de espionagem, um dado pessoal pode ser acrescentado à presente. Em 10/05/2022, cansado de ser importunado pelo regime bolsonarista, o autor deste artigo protocolou no STF a Reclamação 53.318. O pedido foi indeferido e ao final o próprio autor foi criminalizado em razão de ter manifestado sua indignação de maneira veemente. Ao que parece, a Suprema Corte brasileira somente se sensibilizou com o que estava acontecendo quando os próprios Ministros dela perceberam que eles também eram espionados ilegalmente.
Antes tarde do que nunca. Devemos aguardar ansiosos a solução final da ADPF 1143 (ADO 84/DF). Seria bom se o STF a julgasse em sessão presencial televisionada pela TV Justiça. A população brasileira precisa ter consciência do perigo que o bolsonarismo representou e representa para o país. O capitão golpista tentou compensar sua falta de apoio eleitoral e popular com espionagem em massa e intimação dos defensores da democracia. Isso não é normal, nem tampouco pode ser considerado admissível.