3. Omissão de socorro qualificada
De acordo com a lei (Código Penal, art. 135, parágrafo único), a pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte. Como se apresenta a estrutura desse delito em sua forma qualificada?
3.1. Crime preterdoloso
Já toquei no assunto na introdução e no item relacionado com o elemento subjetivo do art. 135. Deixei bem claro que se está diante de um delito que reclama, com exclusividade, o dolo de perigo. Assim, se da omissão de socorro advém lesão corporal de natureza grave, ou advém a morte, há de se concluir que esses eventos não podem ser imputados a título de dolo, mas de culpa. O art. 135, parágrafo único, traduz inquestionavelmente um crime preterdoloso.
Nunca houve no Código o menor indício de que a intenção de ferir ou matar seria compatível com a despretensiosa figura da omissão de socorro qualificada. O título do Capítulo III (Da periclitação da vida e da saúde); o exame lógico-sistemático dos artigos nele inseridos (130 a 136); o confronto com os capítulos anteriores (crimes contra a vida; das lesões corporais); a consulta à Exposição de Motivos (n.° 43); por fim, indagações de ordem ética, de justiça, de bom senso, de política criminal – tudo, em suma, conduzia à certeza de que a intenção de ferir ou de matar não cabia nos estreitos limites de um delito modestíssimo, apenado com multa alternativa!
Houve dolo de ferir, de matar? Serenamente, sem nenhuma dificuldade exegética, os autores, em regra, apontavam a solução correta: arts. 129. e 121.
Diferente era a conclusão quando eles analisavam os resultados de dano (lesão grave ou morte) do parágrafo único do art. 135. Ensinava Bento de Faria: "Esses resultados, não devendo ser intencionais, não modificam a natureza do crime, que permanece o mesmo, apenas punido com maior severidade, ficando demonstrada a relação de causalidade entre esses fatos e a omissão de socorro" (ob. cit., p. 133). Mais adiante: se, porém, "ficar provado o propósito da realização daqueles eventos, o crime será o previsto nos arts. 121. ou 129 "(ibidem).
Para Aníbal Bruno, o crime do art. 135. é "crime de perigo, mas da omissão do agente pode resultar lesão corporal ou mesmo a morte, o que aumentará o índice da pena, mas se a lesão sobrevém e o omitente admitiu que ela ocorresse, aceitando esse risco, há crime de dano por dolo eventual" (ob. cit., p. 254).
Também Frederico Marques: "O crime de omissão de socorro, como o próprio nomen juris o está indicando, é infração penal omissiva. Trata-se, ao demais, de crime de perigo, e não de crime de dano. Quem se omitisse ou se quedasse inerte, com o fim de causar dano à incolumidade física da vítima, estaria cometendo ou crime contra a integridade corporal desta, ou crime de homicídio, ou então, tentativa de morte" (Tratado de direito penal, v. 4, p. 333/334).
Indicava Jorge Severiano Ribeiro como um dos requisitos do crime de omissão de socorro a "ausência de intenção de lesar a pessoa" (Código penal comentado, v. 3,, p. 178). Era essa, também, a opinião de Nélson Hungria (ob. cit., v. 5, p. 381. e 445).
3.2. Indiferença: dolo ou preterdolo.
Nem todos concordavam. João Bernardino Gonzaga, a par de outros motivos, aduzia que um crime omissivo puro não poderia, em absoluto, ser transformado em comissivo por omissão. Se tal acontecesse, na hipótese descrita pelo art. 135, parágrafo único, a punição por homicídio "repousaria na exclusiva direção do pensamento; ou melhor, o castigo teria por base um simples desejo, contrariando assim a velha parêmia, ainda em vigor, de que statuti puniunt factum et non animum" (ob. cit., p. 183).
A punição por homicídio, no entanto, se ancorava na estrutura do próprio Código: arts. 121. ou 129 c/c arts. 11. (atual art. 13) e 15 (atual art. 18). A opção pelo art. 135, parágrafo único, é que se apoiava, data venia, na "exclusiva direção do pensamento", quer dizer, no pensamento ideológico do intérprete. Era este que transformava a lei a seu talante, ainda que santificado pelas boas intenções.
Eminentes penalistas, sobretudo nas últimas décadas do século 20, diante do risco de erro judiciário, ou de perseguição política dos órgãos estatais (delegado de polícia, promotor de justiça, juiz de direito) contra os autores de crimes de dano praticados por omissão, também diminuíram o campo de incidência dos arts. 121. e 129 do Código Penal e, de quebra, ampliaram os limites do art. 135, parágrafo único. "Autor de crime comissivo por omissão só pode ser quem esteja em estreita relação com o bem jurídico tutelado, de modo a considerar-se garante da não superveniência do resultado. Trata-se, pois, de crime próprio" (Heleno Fragoso, Lições de direito penal: a nova parte geral, p. 242).
Em termos atualizados, essa autoria própria, exclusivista, estaria compreendida nas alíneas a, b e c do parágrafo 2º do art. 13, que dogmatiza a omissão relevante. Assim, não havendo qualquer vínculo prévio entre o omitente e o periclitante (paternidade, contrato, aceitação do encargo, provocação do perigo etc.), segue-se a impossibilidade jurídica, na conduta omissiva, das figuras delituosas correspondentes: lesão corporal e homicídio. Como prêmio de consolação, mas à revelia do sistema, indica-se a forma qualificada do art. 135, parágrafo único.
Dentre outros, além de João Bernardino Gonzaga e Heleno Fragoso, negam firmemente a figura do homicídio: João José Leal, Direito penal geral, p. 226; Francisco de Assis Toledo, Princípios básicos de direito penal, p.118; Miguel Reale Júnior, Parte geral do Código Penal: nova interpretação, p. 48; Júlio Fabbrini Mirabete, Manual de direito penal, v. 2, p. 138; Juarez Tavares, As controvérsias em torno dos crimes omissivos, p. 78. e 86/87; Flávio Augusto Monteiro de Barros, ob. cit., p. 16. e 147; Rogério Greco, Curso de direito penal, v. 2, p. 422).
Monteiro de Barros, contrariando o próprio Heleno Fragoso, que liderou, no Brasil, a corrente limitativa, chega a enxergar omissão de socorro qualificada e não homicídio doloso, se o motorista atropela sem culpa a sua vítima e, identificando-a como seu inimigo, deixa propositadamente de socorrê-la, na esperança de que morra. Explica Monteiro de Barros: "Com o devido respeito, o dever jurídico específico de agir, emanado do art. 13, § 2°, c, só tem incidência quando o perigo é causado ao menos culposamente. Desse modo, no exemplo figurado, o agente responderá apenas pelo delito de omissão de socorro, malgrado o dolo de matar"(p. 147).
Fico a imaginar a hipótese de exímio nadador que, sem culpa, concorre para que uma criança de 3 ou 4 anos de idade caia nas águas de uma piscina de adultos. O nadador, verificando tratar-se do filho de seu inimigo, deixa sumariamente de socorrê-lo, pois aceita e quer o desenlace fatal, que ocorre. De modo semelhante, a hipótese de um motorista de táxi. Este, surpreendido sem culpa por uma criança que, correndo, invade a pista, quebra-lhe a perna em decorrência do impacto, havendo ainda perda de sangue em outras partes do corpo. O taxista desce do automóvel, cruza os braços e assiste, sadicamente, ao sofrimento da pobre vítima. Depois segue em frente, antegozando o prazer de vê-la morta. A criança morre, fato que não ocorreria se fossem tomadas as providências cabíveis, todas elas ao alcance do motorista.
Em ambos os casos: omissão de socorro qualificada, aduziria Monteiro de Barros, e isso, conforme reconhece, "malgrado o dolo de matar".
Essa distinção interpretativa quanto à letra c nos conduz, mais uma vez, ao cerne da hermenêutica jurídica, de seus limites como instrumento de acesso à verdade objetiva do sistema legal. O intérprete com poder decisório, dispondo de suficiente liberdade, acaba impondo sua vontade ideológica a todo e qualquer texto normativo. O direito penal, em última instância, não se resolve com a lei, e sim, com a lei tal como a enxerga o jurisconsulto – a lei em suas múltiplas e contraditórias aparências.
Também a letra a do § 2° do art. 13. fica sujeita a eventuais idiossincrasias do exegeta. Ali se consigna que o dever de agir incumbe a quem tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância. Como vimos, a última corrente, benéfica para com os acusados, restringe a incidência da norma aos delitos comissivos por omissão, e sempre no pressuposto de um específico dever de agir, de um vínculo personalizado entre o omitente e o periclitante, inconfundível com o dever genérico de socorrer, válido para qualquer pessoa. Dá-se ao texto uma interpretação restritiva: qualquer lei, menos a lei penal. Por exemplo, menos o art. 135. do Código Penal, que acabaria reivindicando, com exclusividade, o enquadramento jurídico-penal de resultados culposos ou dolosos, indistintamente.
Contudo, é pouco falar em especial dever de evitar o resultado, a lembrar, quanto ao sujeito, seu "papel de garantidor". É que permanece uma certa vagueza na lição doutrinária referente a esse papel. Para Roberto Cezar Bitencourt, não praticam omissão de socorro qualificada, mas homicídio, os médicos que se negam "a atender determinado paciente em perigo de vida, e que em virtude dessa omissão venha a morrer". Esclarece que diferentemente do que se afirma na mídia (e eu acrescento: na jurisprudência!) o crime que os médicos praticam "não é omissão de socorro, mas homicídio, ainda que culposo, porque o médico tem essa especial função de garantir a não-superveniência de um resultado letal, e esse dever lhe é imposto por lei" (Manual de direito penal: parte geral. São Paulo: RT, 1997, p. 203).
Trocando em miúdos, o diploma de médico e inscrição no órgão de classe, independentemente de qualquer outro detalhe (por exemplo, a aceitação prévia do encargo, a pedido do doente ou de seus familiares, ou o desempenho da função de plantonista de instituição hospitalar), remetem a omissão de socorro, em havendo morte, para o art. 121, § 3°. Motivo: o dever de agir imposto por lei (art. 13, § 2°, a). A grande maioria dos autores, nada obstante, prefere a hipótese da alínea b, que exigiria do médico (ou, se for o caso, do enfermeiro) que ele houvesse, de algum modo, e com antecedência, assumido a responsabilidade de impedir o resultado. Dentre outros: Edmundo José de Bastos Júnior, Código penal em exemplos práticos, p. 52; João José Leal, ob. cit., p. 229; Jair Leonardo Lopes, Curso de direito penal: parte geral, p. 114; Edmundo Oliveira, Comentários ao código penal: parte geral, p.187; Fernando de Almeida Pedroso, Direito penal: parte geral,, p. 115; Ney Moura Teles, Direito penal: parte geral, p. 215.
Portanto, nem ao menos o enquadramento nesta ou naquela corrente hermenêutico-dogmática constitui garantia de que, no caso concreto, ainda que banal, se alcance a desejável uniformidade interpretativa.
3.3. O passado no presente
Acontece que nem todos concordam com a exegese restritiva, mesmo após a vigência da nova Parte Geral, de 1984. Quer dizer, há quem faça eco às lições mais antigas – por exemplo, às lições de Aníbal Bruno, Bento de Faria e Frederico Marques.
Romeu de Almeida Salles Júnior, incluindo a "norma jurídica civil ou penal"(grifos meus) como fonte da obrigação de cuidado, proteção ou vigilância (art. 13. § 2°, a), e falando em preterdolo na hipótese do art. 135, parágrafo único, parece indicar, na hipótese de dolo quanto ao resultado mais grave, as figuras delituosas correspondentes: homicídio e lesão corporal (ob. cit., p.23 e 373).
Mayrink da Costa se mostra mais explícito: "Se houver o animus necandi ou laedendi, as figuras típicas são dos arts. 121. e 129, CP" (ob. cit., p. 208).
Ouçamos Ariosvaldo de Campos Pires: "Evidente que, se os resultados que qualificam os crimes foram queridos, ao menos eventualmente, outras serão as infrações: homicídio doloso e lesão grave dolosa"(Compêndio de direito penal: parte especial, p. 87).
Jair Leonardo Lopes alude à hipótese de quem deixa de obedecer ao comando da norma do art. 135, concluindo que "se o omitente não presta socorro ao ferido por outrem, porque quer a morte da vítima (...) é evidente a intenção de concorrer, por omissão", para a prática do crime, ou seja, crime de homicídio (Curso de direito penal: parte geral, p. 173/174).
É clara a posição de Cezar Roberto Bitencourt: "É necessário que o dolo abranja somente a situação de perigo; o dolo de dano exclui o dolo de perigo e altera a natureza do crime. Assim, se o agente quiser a morte da vítima, responderá por homicídio" (Manual de direito penal: parte especial, v. 2, p. 290).
Mais recentemente, no mesmo diapasão: Adalberto de Camargo Aranha Filho (Direito penal: crimes contra a pessoa, p. 140); Edílson Mougenot Bonfim (Direito penal 2, p. 56/58); Ney Moura Teles. Direito penal: parte especial, v. 2, p. 244/245; Rogério Sanches Cunha (Direito penal: dos crimes contra a pessoa, p. 118).
As dificuldades, no entanto, permanecem. Victor Eduardo Rios Gonçalves, ao analisar o parágrafo único do art. 135, conclui que, em razão do montante da pena, "as qualificadoras são exclusivamente preterdolosas, ou seja, o resultado lesão grave ou morte deve ser culposo" (Dos crimes contra a pessoa, p. 77). No pressuposto óbvio de que o ilustre professor Rios Gonçalves conhece o significado básico de exclusivamente, segue-se de modo irretorquível que ele afasta da modesta forma qualificada do art. 135. a morte dolosa cometida mediante omissão de socorro.
Entretanto, não há nenhum indício de que encaminhe o leitor para a figura do homicídio doloso, quando examina as hipóteses legais de relevância causal da omissão (Direito penal: parte geral, p. 44/45). Em outra passagem, esse crime chega a ser descartado: "Suponha-se que um exímio nadador presencie a mãe lançar seu filho de tenra idade numa piscina e, sem qualquer risco pessoal, permite que a criança venha a falecer por afogamento. Não há falar em participação por omissão no crime de homicídio, pois não tinha o nadador o dever jurídico específico de impedir o evento". E arremata: "Todavia, como infringiu um dever genérico de assistência, responde por crime de omissão de socorro (CP, art. 135)" (p. 101).
Fernando Capez também alude a preterdolo, esclarecendo que "a omissão de socorro deve ser atribuída ao agente a título de dolo e o resultado agravador, a título de culpa" (Curso de direito penal, v. 2, p. 197). Ao tratar do homicídio, no entanto, procede a uma exegese diversificada (p. 7).
3.4.Observações crítico-metodológicas
Voltamos, assim, à estaca zero. E às conseqüências de sempre, no plano pedagógico. A divergência, que é séria, ilustra mais uma vez a tese do esgotamento da "moderna" dogmática. Nenhum penalista, nacional ou estrangeiro, descobriu até hoje a técnica hermenêutica universal, objetiva, desinteressada, capaz de sobrepujar-se a qualquer outra e neutralizar, de passagem, a subjetividade inerente ao labor exegético.
Em matéria de identificação ou descoberta do direito não bastam, portanto, as leis, que se somam a tantas outras e parecem contradizer-se no plano intra-sistemático. Não bastam as teorias ditas "ontológicas", porque lhes falta, em essência, o conteúdo imediato, o significado intrínseco absolutamente unívoco. Não bastam as evidências ou intuições de ordem racional, subjetivas, já que elas se anulam entre si, no choque ideológico das preferências ocasionais. Se assim não fosse, os bons penalistas não deveriam divergir em questões fundamentais e muito menos em torno de hipóteses corriqueiras do dia-a-dia forense. Mas eles divergem. E a explicação não pode continuar atrelada ao falacioso discurso do erro de uns e acerto de outros.
Ter visão crítica, e aplicá-la na questão em exame, é perceber a relatividade das coisas, a interferência dos valores pessoais do exegeta na tarefa impossível de apontar caminhos e soluções uniformes, padronizados; é duvidar da pretensiosa "evolução" de uma dogmática entrecortada de avanços e recuos, eis que intrinsecamente contraditória e repetitiva em suas novas roupagens.
Com efeito, a dogmática de hoje valoriza a lei, por seu significado político, mas abomina – e com razão, em parte – o que se positivou legislativamente sobre os crimes hediondos; valoriza a lei, mas entrega o destino do réu, em última instância, nos crimes dolosos contra a vida, à soberania de um tribunal do júri autorizado a decidir contra ela (contra a lei), mesmo em detrimento de uma possível inocência do acusado e sem necessidade de fundamentação (CPP, arts. 464, 486 e 493); valoriza a lei, mas acata e dissemina soluções tópicas oportunistas, distanciadas das instruções do legislador; em suma, valoriza a lei, mas introduz, a cada instante, em seu vasto e culto repertório, os antídotos de ocasional e momentânea conveniência: analogia, costumes, política criminal, estruturas lógico-objetivas, bom senso, razão, eqüidade, justiça, progresso, adequação social.
Sempre foi assim, e é isso o que se passa igualmente com a solução que se pretende ancorada na lei e no direito quando se analisa o art. 135, parágrafo único. Apesar das aparências e da complicada sofisticação argumentativa, e sem embargo da sabedoria e cultura óbvias de eminentes jurisconsultos, o fato é que o direito penal, por sua natureza intrínseca, não cabe nos limites acanhados de nenhuma dogmática em particular. O direito penal, em sua imanente historicidade, exige muito mais do que seu ilusório confinamento a teorias ontológicas (por exemplo, finalismo da conduta; estruturas objetivas do crime ou da pena, etc.) ou a sistemas legais herméticos e hierarquizados, a partir da Constituição.
Façamos uma análise comparativa. A mãe que, por dificuldades econômicas, abandona perigosamente o filho de poucos meses no quintal de uma casa, de madrugada, na esperança de vê-lo recolhido no mesmo dia, incide nas penas do art. 133. Quais os limites punitivos da lei? Detenção de 6 meses a três anos, com acréscimo de 1/3, nos termos do § 2°, II, ainda que a criança não sofra nenhuma lesão corporal, por levíssima que seja. Aí está: punição muito mais severa do que aquela que se reserva para a omissão de socorro qualificada pela morte! E mais, se a criança morre (fato que será lamentado pela mãe, que desejava o melhor para o seu filho!), as penas se alteram drasticamente: mínimo de 5 anos e 4 meses (!) e máximo de 16 anos de reclusão (§§ 2° e 3°, II)!
Diante desse quadro, afirmar que o legislador, dois artigos após, e no mesmo capítulo, incluiu e misturou na forma qualificada (art. 135, parágrafo único), com total indiferença, culpa e dolo de lesão grave ou de homicídio, é transferir para o sistema aquilo que o sistema, em verdade, repele.
Pode-se concluir que nem sempre vale o que está escrito. Nem sempre valem os reforços explicativos da fonte produtora do diploma legal (no caso, item 43 da Exposição de Motivos). O que importa é a disposição ideológica do operador jurídico. Pesa, isto sim, o grau de liberdade que ele desfruta para, se for o caso, transferir para o objeto, uma vez reinterpretado, sua própria sensibilidade normativa. O problema não é de inteligência, mas de vontade. Explicando melhor, em linguagem contemporânea: também de inteligência, mas de inteligência emocional, que melhor canaliza ou predispõe a vontade de ação ou omissão de cada intérprete ou operador jurídico.
É preciso, no entanto, respeitar o ponto de vista contrário. Todo o arsenal retórico da corrente restritivista se concentra na razoável preocupação de impor limites objetivos ao poder punitivo do Estado. O § 2° do art. 13. representa uma opção normativa, e ela não surgiu abruptamente. O tema, que é complexo, já vinha sendo alvo de acalorados estudos e debates no mundo inteiro, inclusive no Brasil. O parágrafo em questão, mesmo não sendo obra perfeita, significa um avanço, um marco positivo, seja no que concerne ao conteúdo ético, seja no que tange à técnica legislativa. E entrou em vigor em 1984, bem depois da vigência da antiga Parte Geral (1942).
Além disso, não constitui nenhuma heresia jurídica sustentar, quanto ao resultado, uma interpretação restritiva (ou estrita) do art. 13, § 2°, letra a. O texto legal permite igualmente esse tipo de leitura. Uma leitura que, de seu turno – e há pouco toquei no assunto – já era advogada previamente como doutrina, como conceito ideológico a ser transposto para os códigos penais, no momento adequado.
Uma norma jurídica não implica necessariamente uma opção entre o bem e o mal. Não raro, essa opção se perfaz no contexto de valores de peso e conteúdo mais ou menos equivalentes. Não é fácil, por exemplo, equilibrar os interesses da vítima, de justiça material, e os interesses, em termos de segurança jurídica, de todo e qualquer cidadão em face do poder punitivo do Estado.
3.5.Síntese conciliatória
Dessa tensão de correntes antagônicas é possível que se chegue, de lege ferenda, a uma síntese conciliatória. De um lado, caso reconhecida a validade da tese limitativa: que se normatize radical aumento de pena para a omissão de socorro associada a dolo de dano. Acatada, no entanto, a outra corrente, de maior abrangência da norma, caberia tratamento diferenciado para o delito impropriamente omissivo, menos grave do que o delito praticado por uma conduta de ação.
Por que menos grave? Porque no crime comissivo é o próprio agente que desencadeia o processo de causação do resultado; um processo, portanto, ainda inexistente. Sem embargo das contestações e sutilezas filosóficas, só a conduta militante é capaz de provocar, no reino empírico da natureza, um resultado qualquer que se repute criminoso: inundação, incêndio, morte, lesões corporais, dentre outros. Quem mata é o autor das facadas, não aquele que nega socorro ao periclitante. Ambos, porém, podem nivelar-se no plano meramente normativo. No Brasil, por sinal, ação e omissão se encontram equiparadas de pleno direito. "Considera-se causa", reza o art. 13, "a ação ou a omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido". Clareza meridiana: uma e outra (ação e omissão) recebem a mesma conotação institucional.
Não importa se a omissão, na realidade das coisas, exerce papel coadjuvante de um processo causal já em andamento. O direito penal se constrói através de fatos normativos de caráter histórico, inventados e construídos pelo homem – e não de fatos da natureza aferidos ou interpretados na dinâmica de intrínsecas manifestações objetivas, previamente estabelecidas por uma espécie de legislador universal.
O legislador de carne e osso reescreve no âmbito dogmático a "causalidade" que entender cabível, ainda que faca referência, conforme a hipótese, à causalidade natural, própria das condutas comissivas. E o que conta para o penalista é essa reescritura soberana, independente por si mesma, assim como lhe interessa, de primeira mão, sem qualquer vínculo ontológico anterior, o mandamento legal da omissão relevante como causa. A omissão passa a ser causa – melhor dizendo, passa a ser considerada causa – porque assim ficou dito e registrado no art. 13. do Código Penal. E não há nada no sistema do Código que afaste explicitamente dos crimes propriamente omissivos a regra geral do art. 13, sobretudo quando sobrevenha resultado de dano (formas qualificadas).
Ainda assim, e exatamente por isso, é que faz sentido criticar essa equiparação normativa. E por duas razões: 1º) Não é justo punir, de modo idêntico, a quem dá causa diretamente a um resultado por um proceder ativo (facadas, tiros de revólver etc.) e a quem apenas se depara com uma situação preexistente de perigo e nada faz para evitar, na seqüência, o previsível evento lesivo. 2º) Não é justo equiparar, neste último caso, à omissão dolosamente voltada para o resultado de dano, a omissão tendente apenas ao perigo.
Conclusão: há que se encontrar, no futuro, uma fórmula conciliatória. As melhores leis são exatamente aquelas que, a par de sua clareza e coerência intra-sistemática, conduzem o intérprete a soluções previamente direcionadas pelo ideal de justiça, que exige, no mínimo, tratamento igualitário e conformidade com a escala de bens e valores de todos os membros do grupo social.