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Crime de omissão de socorro.

Divergências interpretativas e observações críticas

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Agenda 06/03/2008 às 00:00

Considerável parcela da doutrina garante haver crime de homicídio na fria e deliberada intenção de se alcançar a morte de um desafeto através da conduta omissiva de socorro.

Sumário: 1. Introdução. 2. Estrutura jurídica. 2.1. Crime omissivo. 2.2. Elemento subjetivo. 2.3. Sujeito ativo. 2.4. Consumação e tentativa. 2.5. Natureza do risco e modo de execução. 2.6. Sujeito passivo. 2.7. Delito de trânsito. 2.8. Estatuto do idoso. 3.Omissão de socorro qualificada. 3.1. Crime preterdoloso. 3.2.Indiferença: dolo ou preterdolo. 3.3. O passado no presente. 3.4. Observações crítico-metodológicas. 3.5. Síntese conciliatória.


1. Introdução

Século 21. Março de 2008. Mais de sessenta e seis anos de vigência do Código Penal. No entanto, persistem as divergências interpretativas em torno do crime de omissão de socorro (CP, art.135). Divergências que se perpetuam com nitidez em seu tópico mais controvertido: a estrutura jurídica da forma qualificada.

Percebem-se novos rumos nessa matéria. Considerável parcela da doutrina mais recente, compreendendo a importância de uma exegese lógico-sistemática do Código, se afasta do discurso habitual dos penalistas e volta a limitar os resultados de dano do parágrafo único (lesão grave e morte) a uma exclusiva conexão com o dolo de perigo. E garante haver crime de homicídio na fria e deliberada intenção de se alcançar a morte de um desafeto através da conduta omissiva de socorro. Dispensa, portanto, a exigência de vínculo específico entre autor e vítima.

Renovo, assim, sem prejuízo de acréscimos e atualizações que reputo relevantes, o teor de artigo publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais n.º 34, São Paulo: RT, abr./jun. 2001. Elaboro minuciosa análise dogmática da lei (CP, art. 135) e procedo a constantes observações de caráter crítico com vistas à desobstrução dos obstáculos que encobrem a percepção das múltiplas faces do direito penal.


2.Estrutura jurídica.

Eis o dispositivo legal:

"Art. 135. Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo de vida; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública: Pena – detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.

Parágrafo único. A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte".

Estamos diante de um típico delito de omissão. Além da explicitude de sua própria rubrica, o art. 135. prevê claramente uma abstenção de conduta positiva: deixar de prestar assistência. Inexiste outro modo de praticá-lo a não ser através de uma inação, de um não-fazer aquilo que está sendo exigido pela norma, ou seja, o socorro a quem dele necessita, nas circunstâncias descritas em lei. Trata-se de um crime puramente omissivo (omissivo próprio).

Portanto, não pode ser confundido com a classe dos delitos que, embora também admitam no tipo uma conduta omissiva, são praticados em regra através de uma ação, de um proceder ativo, militante, como no caso das lesões corporais e do homicídio (delitos impropriamente omissivos; delitos comissivos-omissivos).

Contudo, como se verá oportunamente, não é fácil delimitar as fronteiras entre a omissão de socorro qualificada pela morte (art. 135, parágrafo único) e os crimes de homicídio doloso ou preterdoloso (arts. 121. e 129, § 3º ), permanecendo a dificuldade em relação à lesão corporal grave ou gravíssima (art. 129, §§ 1º e 2º) em confronto com a omissão de socorro seguida de lesão corporal grave.

Em última instância, o assunto fica entregue às idiossincrasias do intérprete com poder decisório. É este, numa visão realista do direito, que reescreve normativamente o delito, ao impor sua marca ou personalidade a uma categoria jurídica ainda hoje imaginada como propriedade exclusiva do legislador formal (CF, art. 5º, XXXIX).

2.1.Elemento subjetivo

De acordo com o parágrafo único do art. 18. não pode haver nenhuma dúvida de que o crime do art. 135. só existe na forma dolosa. E mais: pelo exame, em conjunto, dos arts. 130. a 136, e confronto com outros dispositivos (por exemplo, arts. 121. e 129), esse dolo é de perigo, exclusivamente de perigo. O elemento subjetivo, adverte-se na própria Exposição de Motivos, "é a vontade consciente referida exclusivamente à produção do perigo. A ocorrência do dano não se compreende na volição ou dolo do agente, pois, do contrário, não haveria por que distinguir entre tais crimes e a tentativa de crime de dano" (item 43).

Assim como o agente não quer matar ou ferir na hipótese do art. 132. ou nas hipóteses de abandono de incapaz (arts. 133. e 134), também não quer matar ou ferir quando deixa dolosamente de prestar socorro. Ele tem apenas consciência da importância de sua ajuda – ajuda essa que evitaria, em tese, a continuidade ou agravação do perigo à vida ou saúde da vítima – e, mesmo assim, se omite, mas com dolo de perigo, direto ou eventual.

Há, de início, em outrem, uma situação de risco sem vínculo algum com o comportamento anterior do omitente. Diante desse quadro, claramente percebido, nega-se o sujeito a dar assistência ao periclitante.

Surge ou persiste, em conseqüência, como que atrelado à omissão, um resultado de perigo que materializa o delito, consumando-o. É isso, no máximo, que o omitente quer (dolo direto) ou aceita (dolo eventual): o perigo. O dolo de homicídio se encontra totalmente deslocado na espécie, à semelhança do que se passa com todos os delitos de periclitação da vida e da saúde. Até mesmo os arts. 130, parágrafo único, e 131, em que se vislumbra o dolo de dano à saúde, se mostram francamente incompatíveis com o a intenção homicida. Lugar de resultado morte e dolo de homicídio é o art. 121. e parágrafos, capítulo dos crimes contra a vida, em que se inclui o art. 123. (infanticídio).

Os penalistas, aliás, quando analisam o dolo do art. 135, caput, mencionam com tranqüilidade o perigo, nada mais que o perigo, em termos de subjetividade inerente à omissão. Tanto que, em havendo morte, apontam de imediato sua natureza culposa, indicativa de crime preterdoloso: dolo de perigo (omissão) e culpa quanto ao evento letal (art. 135, parágrafo único). O dolo de perigo corresponde à culpa consciente de dano, se este ocorre na seqüência dos acontecimentos.

Alguns se arrependem dessa doutrina, pois afastam a figura do homicídio e lesão corporal se não preexiste da parte do omitente o que chamam de específico dever de agir (CP, art. 13, § 2º). Desnorteados, porque não admitem o risco de impunidade, buscam em seguida o abrigo do parágrafo único do art. 135, até então reservado, como vimos, a eventos meramente culposos.

Não houvesse esse recurso estratégico, de forçada interpretação extensiva do art. 135, parágrafo único, em aparente prejuízo para o réu, o omitente seria acomodado ao caput do art. 135. Pior ainda: seria considerado inocente de qualquer delito, por falha do próprio Código. Assim, diferentemente do que se fez com os demais artigos do Capítulo (arts. 130, 131, 132, 133, 134 e 136), o art. 135. recebeu de presente o dolo de matar.

Quem efetuou esse presente? O intérprete! Como fica, então, o princípio constitucional da reserva legal dos crimes? Resposta: esse princípio só funciona quando corresponde, na hipótese, às expectativas ideológicas de um intérprete que disponha de efetiva liberdade e poder decisório.

Se as penas da forma qualificada, de tão ridículas, já constituem um incentivo ao delito, imagine-se uma omissão de socorro seguida de morte, com dolo de homicídio, sendo punida com detenção de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa! Em linguagem atualizada, de infrações penais de menor potencial ofensivo (Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995; Lei 10.259, de 12 de julho de 2001), seria o mesmo que deferir ao Estado o direito de tripudiar sobre a vida, a integridade física e a dignidade de vítimas indefesas e, por extensão, de seus familiares.

Esse tripúdio, aliás, ou pelo menos essa fria indiferença, permanecem visíveis mesmo quando se apela, como alternativa, mas em afronta à lógica do sistema, para a forma qualificada da omissão de socorro (art. 135, parágrafo único). Como explicar aos parentes da vítima que sua morte, ainda que abertamente desejada e confessada pelo réu – que poderia, sem dificuldades, evitá-la – constitui evento antijurídico punível, em tese, com a ridícula pena de 3 a 18 meses de detenção, ou multa? Com que estado de espírito identificar a deformidade permanente, a cegueira total, a tetraplegia, a perda ou mutilação de braços e pernas – alvo e objeto da intenção do omitente! – como infração penal de somenos importância, equiparada às contravenções penais?

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2.2. Sujeito ativo

O crime é comum, no que tange ao sujeito ativo. Qualquer pessoa pode praticá-lo, desde que, ciente da necessidade de socorro, e podendo agir "sem risco pessoal", deixa de prestar assistência ou de pedir "o socorro da autoridade pública".

Na grande maioria das vezes, a vítima é encontrada em situação de perigo. E na hipótese de o perigo ter sido provocado pelo próprio agente? Apesar das divergências, entendo que se ele age dolosamente — dolo de perigo — incide nas penas do art. 132, que absorve a omissão do art. 135, reputada como fato posterior impunível. Se o sujeito culposamente provoca o perigo ou procede sem nenhuma culpa e, na seqüência, dolosamente se omite (dolo de perigo), incide também nas penas do art. 132, de conformidade com o disposto no art. 13, § 2°, alínea c. Entretanto, se o perigo está associado a uma lesão corporal ou homicídio culposos, a omissão de socorro funciona como causa especial de aumento de pena (arts. 121, §§ 3º e 4º e 129, §§ 6º e 7º).

É claro que certos vínculos para com o ofendido podem alterar a figura delituosa correspondente (por exemplo, maus-tratos – art. 136. – mediante privação de cuidados indispensáveis; abandono subseqüente ao perigo – arts. 133. e 134; omissão de socorro, sem justa causa, a descendente ou ascendente gravemente enfermo – art. 244).

2.3.Consumação e tentativa.

Consuma-se o delito no momento da omissão, isto é, no momento em que o sujeito deliberadamente se nega a prestar o auxílio imposto por lei. Trata-se de crime instantâneo, embora não seja fácil, em teoria, determinar o tempo juridicamente relevante para o reconhecimento imediato da consumação. Se o sujeito está em dúvida quanto às circunstâncias e necessidade de socorro é claro que ainda não cometeu o delito. Tendo certeza, no entanto, da situação de perigo, e dolosamente se recusando, com sua inércia, a prestar a devida assistência, comete o crime, que se consuma automaticamente.

Parece haver consenso na doutrina: a omissão de socorro "não admite tentativa, pela impossibilidade de fracionar-se o processo executivo, com início de execução" (Heleno Fragoso, Lições de direito penal: parte especial, p.164). Em outras palavras, o resultado de perigo coincide com a própria omissão e, portanto, na lição de Magalhães Noronha, "ou o agente não socorre e dá-se a consumação, ou pode ainda socorrer e não se caracteriza a execução parcial do tipo" (Direito penal, v. 2, p. 97).

Insisto, contudo, na exigência de dolo e não de culpa. Se o sujeito, assustado com a situação da vítima, demora a assumir seu papel, como a estudar momentaneamente a melhor maneira de agir, não comete ainda o delito. O dolo envolve tanto a consciência da necessidade de socorro quanto da possibilidade física e psicológica de prestar assistência, sem risco pessoal e, mesmo, sem risco maior para a própria vítima. Na seqüência, consuma-se o delito com a omissão livremente desejada (dolo direto) ou aceita (dolo eventual).

2.4. Natureza do risco e modo de execução.

A lei menciona o risco pessoal como limite da obrigação de socorrer. Refere-se, pois, à vida e integridade física do omitente. Se o risco é de natureza patrimonial, e de pequena monta, não há como escapar do enquadramento típico. Quem se nega a prestar auxílio porque vai consumir gasolina ou sujar de sangue o banco de seu carro, ou deixar de realizar algum negócio, perdendo dinheiro, comete inapelavelmente o delito em pauta. Se o risco é de outra natureza (auto-incriminação delituosa; exposição paralela à desonra própria etc.) e se o perigo para a vítima se resume à saúde, não à própria vida, pode o omitente escudar-se na inexigibilidade de outra conduta, ou estado de necessidade (CP, art. 24).

O socorro prestado, se insuficiente, não elimina o dever de assistência de outras pessoas. Cada um, porém, responde por sua própria omissão (autoria colateral). Não é impossível o concurso de agentes: aquele que, de sua cadeira de rodas, induz outrem à conduta omissiva, que se concretiza, responde pelas penas correspondentes ao delito (CP, arts. 29. e 30).

E se o sujeito, sem condições de socorrer, deixa de pedir o auxílio da autoridade pública, porque seria inoperante, e deixa concomitantemente de solicitar o auxílio (este, sim, válido e eficiente) de pessoa ou instituição particular? Tem-se a impressão inicial de que não cometeria crime, por falha ou imprevisão do sistema. É que o texto parece limitar-se a dois comportamentos: assistência pessoal (e sem riscos) ou solicitação do auxílio da autoridade pública.

Prevalece, no entanto, o espírito da lei: o "risco pessoal" não se restringe à conduta diretamente voltada para a vítima. O "risco pessoal" é mais abrangente, porque vinculado a qualquer gesto capaz de resolver, por si só ou através de terceiros, o drama do sujeito passivo. É isso que se busca, aliás, na vida real, quando se encaminha a vítima para uma instituição hospitalar: a assistência de outrem, o socorro complementar de quem se mostraria habilitado para a tarefa.

Destarte, se o perigo de vida poderia ser estancado pelo socorro de hospital da rede privada, situado nas proximidades, e se alguém se nega terminantemente a utilizar seu telefone celular, ou dirigir-se até o local, para a solicitação de ajuda, comete o delito. Este consiste, basicamente, em "deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal". Se é desaconselhável, e até muitas vezes contra-indicado, por falta de conhecimentos técnicos, improvisar duvidoso auxílio a uma pessoa acidentada, não há nenhum risco ou contra-indicação no apelo a terceiros. Configura-se portanto o delito, uma vez que se deixa de prestar exatamente a devida assistência, nos limites das possibilidades de cada um. A propósito, se uma pessoa não pode sem o concurso de outra remover um objeto que, por acidente, comprime o corpo da vítima ferida, nem por isso escapa de enquadramento típico se dolosamente omite a sua cota de participação.

2.5. Sujeito passivo.

Complica-se a matéria quando se procura definir, com precisão técnica, o sujeito passivo da omissão de socorro.

A doutrina está dividida. A lei fala em criança abandonada ou extraviada, ou pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo. Entretanto, várias combinações são possíveis, na tentativa de resolução desse conhecido exemplo de ambigüidade normativa.

A primeira opção, que seria, dentre outros, a de Nélson Hungria (Comentários, v. 5, p. 441/442) e Galdino Siqueira (Tratado de direito penal: parte especial, p.147) parece fluir com naturalidade da pontuação gramatical constante do corpo do artigo: a) criança abandonada; b) criança extraviada; c) pessoa inválida, ao desamparo; d) pessoa inválida, em grave e iminente perigo; e) pessoa ferida, ao desamparo; f) pessoa ferida, em grave e iminente perigo.

Variante: a) criança abandonada; b) criança extraviada; c) pessoa inválida, ao desamparo; d) pessoa ferida, em grave e iminente perigo.

Criança abandonada é a criança entregue à própria sorte, afastada fisicamente do círculo de proteção de seus familiares ou responsáveis, qualquer que tenha sido o fim ou motivo de quem a deixou em tal situação. Criança extraviada é a criança perdida, sem que se cogite, no caso, de dolo de abandono, mas de possível negligência ou infortúnio pessoal daqueles que deveriam tê-la em sua vigilância ou companhia. O denominador comum do abandono ou extravio constitui o quadro de perigo à vida ou saúde inerente à incapacidade física e psicológica de autodefesa da criança.

Pergunta-se: qual a idade da criança, para os efeitos da lei penal?

O texto nada esclarece. Considerando que a lei, segundo a maioria dos autores, presume o perigo pelo simples fato do abandono ou extravio, como tal percebido pelo omitente, segue-se a cautela de uma idade que não deixe a menor dúvida, nas circunstâncias, quanto à necessidade de assistência. Em outras palavras, haja vista o considerável número de crianças que perambulam, nos grandes centros urbanos, pelas ruas, sob os olhares e indiferença dos adultos, dificilmente alguém escaparia de punição, em tese.

Um pouco, pois, de realismo: se a criança de 10 ou 11 anos de idade, por força do hábito, apesar do infortúnio, sabe defender-se dos riscos de ordem pessoal (riscos ligados à vida, saúde e integridade corporal), somente será vítima do crime do art. 135. se estiver efetivamente ao desamparo ou em grave e iminente perigo.

Como sempre, trata-se de matéria de fato, sendo certo que o índice de gravidade do perigo se mostra inversamente proporcional à idade da criança. "Não existe fixação de idade – assinala Romeu de Almeida Salles Júnior – de modo que ''criança'', para a lei, é aquela que não pode ainda se defender, dependendo da análise do caso concreto" (Código penal interpretado, p. 373). Em certos casos não dá para escapar da evidência de que a idade, de tão baixa, faz presumir de modo absoluto a necessidade de assistência (criança de meses; de alguns anos de idade: três, quatro, cinco anos, por exemplo).

Correta, como regra geral, a observação de Custódio da Silveira: pressupõe logicamente o art. 135. "que se trate de menor em idade que ainda exija vigilância pessoal imediata, ou em idade em que normalmente não se permite ande sozinha ou desacompanhada de pessoa adulta"(Direito penal: crimes contra a pessoa, p. 191).

Pessoa inválida – com inclusão óbvia de qualquer criança, mesmo não abandonada ou extraviada – é aquela que, por deficiência física ou biológica, permanente ou transitória (doença, paraplegia, cegueira, embriaguez, mal súbito etc.), não pode por si só resguardar-se do quadro de perigo relacionado com essa deficiência. Diga-se o mesmo da pessoa ferida, como tal considerada a que sofre lesão corporal, ainda que por ela mesma provocada, como no caso de tentativa de suicídio.

Se a pessoa ferida pode proteger-se por si mesma do dano em seu próprio corpo, ou se a pessoa inválida já se encontra sob amparo ou proteção de outrem, não há como cogitar-se do crime de omissão de socorro. A lei exige mais, ou seja, exige que a pessoa inválida ou ferida se encontre ao desamparo ou em grave e iminente perigo.

Estaria completa essa lista?

Como lembra Custódio da Silveira, ficou fora "a pessoa válida ou fisicamente sã, ainda que se encontre ao desamparo ou em grave e iminente perigo" (ob. cit., p. 191). Exemplos corriqueiros: início de incêndio, risco de afogamento, perigo de queda de local elevado etc. Parece-lhe então impossível, em face da redação da lei, "evitar o entendimento de que só poderão ser sujeitos passivos do crime de omissão de socorro a criança abandonada ou extraviada e a pessoa inválida ou ferida" (p. 192). É a opinião, igualmente, de Aníbal Bruno, que invoca o princípio da reserva legal: "Teríamos uma interpretação para além do texto, que importaria na incriminação de fato novo, como seria a omissão de socorro a pessoa em grave e iminente perigo, não estabelecida na lei" (Direito penal, v. 4, p. 257).

Bento de Faria, em frontal divergência, inclui as pessoas válidas e saudáveis. E não vê na solução que preconiza nenhuma "interpretação extensiva, mas tão somente por força de compreensão, desde que os casos são idênticos, subsistindo a mesma razão de proteção para não omitir o socorro"(Código penal brasileiro comentado, v. 4. p. 131).

O que Bento de Faria pretende dizer é que não está cometendo nenhuma heresia jurídica, uma vez que a ambigüidade natural do texto permite mais de uma opção, e aquela que ele apresenta, "desde que os casos são idênticos", se mostra bem mais razoável.

Não deixa de ser curioso anotar-se que ele rejeita, em tese, a interpretação extensiva no âmbito do direito penal, o que constitui um equívoco, data venia. No momento em que se proíbe a interpretação extensiva, inconfundível com a analogia, se proíbe em verdade o próprio mecanismo de interpretação e, como possível conseqüência, o respeito à vontade da lei ou do legislador. Além disso, os livros de doutrina e de jurisprudência estão repletos de exemplos reais de autêntica interpretação extensiva – e até de analogia in malam partem, esta, sim, dogmaticamente inaceitável. A prática teórica ou judicial desmente a toda hora um simples discurso acadêmico, fadado ao insucesso e à contradição.

A maioria dos penalistas, à semelhança de Bento de Faria, adota o ponto de vista de que a vítima pode ser qualquer pessoa, desde que em grave e iminente perigo. Dentre outros: Heleno Fragoso, Lições de direito penal: parte especial, p. 133; João Bernardino Gonzaga, O crime de omissão de socorro, p. 121; Celso Delmanto, Código penal comentado, p. 257; Magalhães Noronha, Direito penal, v. 2, p. 95; Mayrink da Costa, Direito penal, v. 2, p. 204; Damásio de Jesus, Direito penal, v. 2, p. 154/155; Wiliam Wanderley Jorge, Curso de direito penal, v. 2, p. 204; Romeu de Almeida Salles Júnior, ob.cit., p. 372/373; Flávio Augusto Monteiro de Barros, Crimes contra a pessoa, p. 149.

Entendo ser mais fácil, hoje, à luz dos novos tempos e da Constituição Federal de 1988 (art. 5°, caput, dentre outros), sustentar este último ponto de vista. Além disso, o que é uma pessoa inválida? Não deixa de ser inválido, nas circunstâncias, aquele que, apesar da excelente saúde, não sabe nadar, ou não tem forças para arrebentar a porta de um compartimento em chamas. Por que aguardar o momento em que ele comece a ferir-se, a fase inicial de afogamento ou de queimadura? E mesmo que se adote um sentido estreito para a expressão "inválido", o fato é que a lei, na ambigüidade do seu texto, fala em "pessoa.. . em grave e iminente perigo". A vítima, em última instância, não precisaria estar inválida. Seria um tremendo absurdo imaginar que o legislador manifestasse total desinteresse pela vida de pessoas saudáveis, com inclusão, nesse desinteresse, de crianças de um modo geral, nem abandonadas nem extraviadas!

A Magna Carta, aliás, não permite discriminação de qualquer espécie. Razão, bom senso, interesse social, bem comum, equilíbrio e justiça jamais podem ser negligenciados no momento em que se procura, no texto, um sentido e alcance compatíveis com a ideologia do próprio Código e, sobretudo, de um direito em evolução, agasalhado pela estrutura e princípios básicos de uma constituição política de cunho democrático.

É bom insistir. Imagine-se uma pessoa hígida, mas fortemente amarrada a uma árvore, em local ermo. Ou de pés e mãos atados – e por isso totalmente imobilizada – no meio de uma via pública, numa cidade qualquer. Essa pessoa, vítima desde logo de grave delito (roubo, seqüestro etc.), se encontra desamparada e, se não for socorrida, corre sério risco em sua saúde e mesmo em sua própria vida. Ainda assim, como observamos, parcela da doutrina não vislumbra no omitente a prática de qualquer crime, por falta de previsão normativa (princípio da tipicidade).

Essa corrente restritivista, não vendo delito algum na omissão de assistência, mesmo se a pessoa vem a morrer, parece reduzir a hermenêutica jurídica à servidão do texto, como se este, em sua aparência, não contivesse resquícios de vagueza e ambigüidade. Ocorre que o legislador constituinte, se de um lado ratificou o princípio da reserva legal, de outro lado garantiu a todos, sem qualquer distinção, o direito à vida e à dignidade. Não cabe ao legislador ordinário, direta ou indiretamente, opor-se a essa diretiva. Há de presumir-se o contrário, que a lei reflita o bem comum, o interesse coletivo. Vale, na lei, o seu espírito, que é o espírito sintonizado com as premissas básicas de solidariedade social, sem discriminações.

2.6. Delito de trânsito

Nos termos do art. 304. da Lei. n.º 9.053, de 23 de setembro de 1997 (Código de Trânsito Brasileiro), constitui crime "deixar o condutor do veículo, na ocasião do acidente, de prestar imediato socorro à vítima, ou, não podendo fazê-lo diretamente, por justa causa, deixar de solicitar auxílio da autoridade pública. Penas - detenção de seis meses a um ano, ou multa, se o fato não constituir elemento de crime mais grave. Parágrafo único. Incide nas penas previstas neste artigo o condutor do veículo, ainda que a sua omissão seja suprida por terceiros ou que se trate de vítima com morte instantânea ou com ferimentos leves".

Vê-se que a omissão de socorro cometida no trânsito, pelo condutor do veículo do qual resultou (em regra, sem culpa) o acidente, recebe agora uma apenação bem mais severa: detenção, de seis meses a um ano, ou multa. E persiste a pena "ainda que a omissão seja suprida por terceiros ou que se trate de vítima com morte instantânea ou com ferimentos leves".

A referência à morte instantânea confere ao delito uma inesperada amplitude, inexistente no art. 135, que está inserido no capítulo atinente à periclitação da vida e da saúde.

Os penalistas reagiram categoricamente: texto absurdo, crime impossível, vício de inconstitucionalidade.

Conforme esclarecido em artigo específico sobre o tema (Crime de omissão de socorro no trânsito, Doutrina Jurídica Brasileira), consigo entender esse inconformismo. Pessoalmente, aliás, continuo preferindo que o rigor da legislação de trânsito se concentre no âmbito civil ou administrativo (Prevenção de acidentes de trânsito, RBCCrim n° 16, p. 231; Crimes de trânsito: interpretação e crítica, RBCCrim n° 25, p. 185).

Só que o espírito da lei, nesta última hipótese, é de uma clareza impressionante, sobretudo porque combina com a zona de luminosidade do texto. Não é somente a vida ou a saúde da vítima que se tutela com ameaça de pena. Há outro bem jurídico a ser preservado: o respeito aos mortos.

Fiquemos com a via pública e a direção de veículo automotor. Se alguém, em tais circunstâncias, se envolve diretamente em acidente com vítima, recebe da lei o encargo (dever jurídico) de dar-lhe assistência; e se a vítima já estiver morta, de evitar que o cadáver seja tratado como res nullius ou como coisa destituída de qualquer valor ou significado ético-jurídico. Em outras palavras, mesmo que literalmente se fale, no caput, em "imediato socorro à vítima", o fato é que o parágrafo único, como norma de extensão ou de interpretação da própria lei, voltou ao tema com a clara preocupação de explicar-lhe o sentido e campo de incidência.

Entre a frieza do réu, de pouco se importar com o destino e decomposição do corpo da vítima, e a ideologia social de proteção e respeito ao cadáver, optou o legislador por esta última. Parece, aliás, que continuam em vigor os arts. 209. a 212 do Código Penal (Dos crimes contra o respeito aos mortos) e, dentre outros, os artigos 14 e 19 da Lei de Transplantes (Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997). Percebendo-se o denominador comum, fica mais fácil atingir e compreender o espírito da norma.

Por fim, a tese do crime impossível não impressiona a quem sabe da autonomia do legislador, que está autorizado, nos limites da Constituição, a instituir novas regras no âmbito punitivo, tal como ocorre com os crimes de trânsito, art. 291, in verbis: "Aos crimes cometidos na direção de veículos automotores, previstos neste Código, aplicam-se as normas gerais do Código Penal e do Código de Processo Penal, se este Capítulo não dispuser de modo diverso..." (grifos meus). E seria bom lembrar, em adição, o caráter contingente e histórico do "crime impossível". Antes da reforma da Parte Geral do Código Penal, em 1984, penalistas de renome aceitavam com naturalidade a imposição de medida de segurança em caso de "crime impossível".

2.7. Estatuto do idoso.

A Lei n.° 10.741, de 1° de outubro de 2003, introduziu no congestionado sistema jurídico-penal, a par de vários outros, o crime do art. 97, in verbis: "Deixar de prestar assistência ao idoso, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, em situação de iminente perigo, ou recusar, retardar ou dificultar sua assistência à saúde, sem justa causa, ou não pedir, nesses casos, o socorro de autoridade pública: Pena — detenção de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e multa. Parágrafo único. A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte".

Além do aumento e cumulação das penas, a nova figura delituosa, que prevalece diante do art. 135. do Código Penal, dele se distingue pelo fato de limitar-se ao idoso (pessoa com idade igual ou superior a 60 anos – art. 1°) e dispensar a gravidade do perigo; e por deixar expresso, com risco de alguma redundância, que o delito igualmente se aperfeiçoa através da conduta de quem, sem justa causa, recusa, retarda ou dificulta sua assistência à saúde.

O pior é que, para complicar ainda mais a vida do operador jurídico, consta ainda do referido Estatuto, em seu art. 100, inciso III, que constitui crime, punível com reclusão(!) de 6 (seis) meses a l (um) ano e multa: "recusar, retardar ou dificultar atendimento ou deixar de prestar assistência à saúde, sem justa causa, a pessoa idosa". Além de pena diversa (reclusão!) e alteração do mínimo (6 meses), a conduta de recusar, retardar ou dificultar se refere agora a atendimento – omitindo-se o iminente perigo. O outro tipo alternativo (deixar de prestar assistência) se atém à saúde de pessoa idosa.

Ainda assim, sempre haverá quem continue acreditando, com exclusividade, no concurso aparente de normas, e na humana capacidade de se apontar, com homogênea e atualizada sabedoria técnico-dogmática, tal como acontece com todos os demais tipos de crime, as sutilezas e diferenças objetivas entre as novas figuras delituosas.

Sobre o autor
João José Caldeira Bastos

professor de Direito Penal da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, professor de Direito Penal (aposentado) da Universidade Federal de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BASTOS, João José Caldeira. Crime de omissão de socorro.: Divergências interpretativas e observações críticas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1709, 6 mar. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11018. Acesso em: 23 dez. 2024.

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