15. LEVANTAMENTO DOS PRESENTES IDENTIFICADOS PELO TCU
Por outra monta, nesse mesmo acórdão, o TCU demonstrou haver identificado 1.073 presentes recebidos no período de 2002 a 2016, e que apenas 15 bens haviam sido incorporados ao patrimônio público. Destarte, determinou a devolução de 434 presentes recebidos pelo então presidente Lula da Silva, no período de 2003 a 2010, e 117 presentes recebidos por Dilma Rousseff no período de 2011 a 2016.
Por intermédio de um monitoramento das determinações do acórdão de agosto de 2019, o TCU demonstrou que os assessores de Lula da Silva haviam devolvido à esfera pública 360 dos 434 presentes, que se encontravam guardados no galpão do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo (SP).
No que diz respeito a ex-presidente Dilma Rousseff, seus assessores indicaram que os bens sob a sua responsabilidade, estariam guardados no galpão da cooperativa dos trabalhadores assentados na região de Porto Alegre, em Eldorado do Sul (RS), informando que lá foram encontrados 111 dos 117 presentes requisitados.
No ano de 2020, os precitados casos foram arquivados sob o argumento de que as recomendações do Acórdão de 2016 foram cumpridas.
16. JULGAMENTO DO ENTÃO PRESIDENTE BOLSONARO PELO TCU
Na data de 01/03/2023, o TCU julgou caso análogo, com a aprovação do Acórdão nº 326, de 2023, orientando a comitiva do governo Jair Bolsonaro, que fora ao Qatar em 2019, a fazer entrega ao patrimônio público brasileiro, os relógios de grifes das marcas Hublot e Cartier, ambos avaliados em R$ 53 mil reais cada um, que foram recebidos e presenteados aos ex-ministros Gilson Machado do Turismo e Ernesto Araújo das Relações Exteriores, além do deputado federal Osmar Terra (MDB-RS).
Em suma, em 2016, o TCU considerou que o recebimento dos presentes contraria os princípios constitucionais da razoabilidade e da moralidade.
Vale dizer que, a razoabilidade é uma legitimadora da moralidade da Administração Pública, uma vez que aquela auxilia a moralidade na detecção de desvio de poder.
Na data de 09/03/2023, o ministro Augusto Nardes do TCU, decidiu liminarmente e monocraticamente, em processo de representação, que o ex-presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, se abstenha de usar, dispor ou alienar qualquer peça oriunda do acervo de joias, relativamente ao Processo TC 003.679/2023-3, até que haja apreciação definitiva da questão pelo Tribunal.
O aludido procedimento é uma representação com o esteio de apurar indícios de irregularidades atinentes à tentativa de entrada no país de joias no valor total de 3 milhões de euros.
Segundo o ministro-relator, os indícios “revelam-se de elevada gravidade, seja pelo valor dos objetos questionados, seja pela relevância dos cargos ocupados pelos eventuais autores das irregularidades tratadas”.
Por meio de despacho, o relator determinou a realização de oitiva do ex-presidente Jair Bolsonaro e do ex-ministro de Minas Energia, Bento Albuquerque, para se manifestarem sobre os presentes recebidos e os indícios de irregularidades atinentes ao caso.
Ademais disso, o relator determinou diligências à PF e a Receita Federal para, no prazo de 15 dias, enviem informações e documentos sobre o material apreendido em outubro de 2021.
17. ANÁLISE DAS OCORRÊNCIAS FÁTICAS
Destarte, analisando-se toda a desenvoltura das ocorrências fáticas precitadas, chega-se a dedução de que, em primeiro lugar, de que o ex-presidente da República e a ex-primeira-dama não podem ser responsabilizados pela prática de quaisquer crimes, mormente porque a conduta descrita não tem previsibilidade penal e mesmo que assim fosse, não houve nenhuma participação do casal, decorrente do ingresso irregular no país dos bens apreendidos pela Receita Federal, havendo, tão somente, a presença de irregularidades procedimentais administrativas atinente ao fisco, que deveriam ter sido evitadas, mediante declaração cabível, mas que podem ser saneadas.
No pertinente a imposição dos fatos como delituosos, não há o que perquirir, uma vez que presente está a atipicidade, pois, segundo o artigo 5º, inciso XXXIX, da CF/88, reza que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. E, de modo análogo, o artigo 1º do Código Penal, dispondo que, “não há crime sem lei anterior que o defina”.
No que diz respeito a atribuição do Tribunal de Contas da União (TCU), nos termos da Lei nº 8.443, de 1992, em termos gerais é um órgão responsável pela análise e julgamento das contas dos administradores de recursos públicos federais, dentre eles, o Presidente da República. Ademais, é um órgão que julga, porém, não faz parte do Poder Judiciário, sendo ligado ao Poder Legislativo, embora sem subordinação.
Ademais disso, o TCU é uma entidade auxiliar do Congresso Nacional, cuja competência atributiva está prevista na CF/88 e na Lei Orgânica nº 8.443, de 1992, no Decreto nº 4.344, de 2002, inclusive em seu Regimento Interno, atuando na fiscalização do uso de recursos e bens públicos e de subvenções e renúncia de receitas, cuja atividade é chamada de controle externo, uma vez que, o tribunal fiscaliza a gestão de recursos como uma instituição que está fora da estrutura administrativa federal, nos termos do artigo 71, da CF/88 e do artigo 1º do RI.
Na observância da legislação pertinente ao TCU, não se vislumbra no âmbito de sua competência, o direito de julgar o ex-presidente da República, Jair Bolsonaro, no caso do ingresso irregular das joias presenteadas, por intermédio de um assessor do então Ministro de Minas e Energia. Mormente, diante da previsão do inciso I e II, parágrafo único, do artigo 3º do Decreto nº 4.344, de 2002, onde no seu contexto legal, analogicamente, estabelece que “não fazem parte do acervo documental privado do Presidente da República, os presentes trocados ou recebidos por este, em situações caracterizadas oficialmente como cerimônia de trocas de presentes, os quais devem ser integrados ao patrimônio da Presidência da República e, não, do cidadão eleito Presidente da República”. Em outra palavra, in casu , é cediço que não houve troca de presentes, tampouco os presentes foram recebidos em cerimônia, mormente porque sequer o então Presidente da República, Jair Bolsonaro e sua então Primeira-Dama, estiveram presentes quando os presentes foram entregues ao Assessor do Ministro de Minas Energia. (Grifei).
Interpretando-se os preceitos dos incisos I e II, parágrafo único, do artigo 3º do Decreto nº 4.344, de 2002, in verbis:
“Art. 3o. Os acervos documentais privados dos presidentes da República são os conjuntos de documentos, em qualquer suporte, de natureza arquivística, bibliográfica e museológica, produzidos sob as formas textual (manuscrita, datilografada ou impressa), eletromagnética, fotográfica, filmográfica, videográfica, cartográfica, sonora, iconográfica, de livros e periódicos, de obras de arte e de objetos tridimensionais”.
“Parágrafo único. Os acervos de que trata o caput não compreendem ”: (Grifei).
“I - os documentos de natureza arquivística produzidos e recebidos pelos presidentes da República, no exercício dos seus mandatos, com fundamento no inciso II do art. 15. do Decreto no 4.073, de 3 de janeiro de 2002”; e
“II - os documentos bibliográficos e museológicos recebidos em cerimônias de troca de presentes, nas audiências com chefes de Estado e de Governo por ocasião das "Visitas Oficiais" ou "Viagens de Estado" do presidente da República ao exterior, ou quando das "Visitas Oficiais" ou "Viagens de Estado" de chefes de Estado e de Governo estrangeiros ao Brasil”.
Destarte, diante da precitada previsão reguladora da Lei nº 8.443, de 1992, acima mencionada, os presentes são considerados privados podendo ser incorporados no patrimônio do ex-presidente da República, em face da interpretação dada pelo Decreto nº 4.344, de 2002, único regulamento legal que trata da matéria ora apreciada e, em face da omissão legislativa, impedido está o TCU de julgar do aludido episódio por carência de atribuição legal, por se tratar de um órgão incumbido de apenas analisar e julgar as contas do Presidente da República e de demais gestores públicos federais. Ademais, neste específico caso pode julgar, porém não faz parte do Poder Judiciário, atuando como auxiliar no âmbito do Poder Legislativo, mas sem nenhuma subordinação legal, nos termos do artigo 71, da CF/88 e artigo 1º, do RI.
No pertinente a atribuição do TCU, o órgão atua na fiscalização do uso de recursos e bens públicos, além de subversões e renúncias de receitas. Porquanto, no caso, sequer os presentes foram precisamente e legalmente incorporados ao patrimônio público, para que o TCU pudesse atuar como um órgão fiscalizador, prolatando uma decisão monocrática, com base no Processo nº TC 003.679/2023-3, mediante um Acórdão, sem precisar qual a regra infringida, apenas embasando-se em princípios do Direito Administrativo da Razoabilidade e da Moralidade.
De efeito, vale salientar que toda a proibição de recebimento de presentes na esfera do Poder Público, deve necessariamente ter previsão legislativa para que se possa coibi-la, como nos casos seguintes:
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A Lei de Conflitos de Interesses (LCI), prevista na Lei nº 12.813, de 2013 e regulamentada pelo Decreto nº 10.889, de 2021, cujas legislações proíbem o recebimento de presentes por Agentes Públicos, oferecidos por pessoas que tenham interesses em suas decisões ou de colegiados, dos quais participem.
Neste sentido, mesmo que o presente tenha sido oferecido por um amigo, mas que este tenha interesse em decisão do agente público, configura-se o conflito de interesse.
Destarte, nos termos do Decreto nº 10.889, de 2021, os brindes e hospitalidades não são considerados presentes, nos termos normativos.
Na condição de Servidor Público, regido pelo inciso XII, do artigo 117 da Lei nº 8.112, de 1990, há proibição de receber presente, propina, comissão ou qualquer tipo de vantagem, em razão de suas atribuições.
O Código de Conduta da Alta Administração (CCAAF), publicado em 29/12/2020, em seu artigo 9º, proíbe a aceitação de presente, dado por pessoa, empresa ou entidade, que tenha interesse em decisão da autoridade ou da entidade a que esta pertença. E, nos termos do artigo 2º do Código, oferece o rol das autoridades públicas seguintes: Ministros e Secretários de Estado (I); Secretários-Executivos, Secretários ou autoridades equivalentes ocupantes de cargo do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores – DAS, nível seis (II); Presidentes e Diretores de Agências Nacionais, Autarquias, inclusive as especiais, Fundações mantidas pelo Poder Público, Empresas Públicas e Sociedade de Economia Mista (III).
Na perquirição de que um presente foi oferecido em razão do cargo do servidor público, deve ser levado em consideração:
a) quando estiver sujeito à jurisdição regulatória do órgão a que pertença a autoridade;
b) tenha interesse pessoal, profissional ou empresarial em decisão que possa ser tomada pela autoridade em razão do cargo;
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c) mantenha relação comercial com o órgão a que pertença a autoridade;
d) represente interesse de terceiros, como procurador ou preposto, de pessoa, empresa ou entidade compreendida nas hipóteses anteriores.
No que diz respeito a aceitação de presente admitida, há duas hipóteses, a primeira, que tenha recebido de parente ou amigo, desde que o seu custo tenha sido arcado por ele próprio e não por terceiro, que tenha interesse em decisão da autoridade ou do órgão a que ela pertence. A segundo, que tenha recebido de autoridade estrangeira, nas hipóteses protocolares, ou em razão do exercício de funções diplomáticas.
Por outra monta, há casos em que a recusa do presente pode ser substituída por sua doação. Nesse caso, muitas vezes a devolução do presente não pode ser feita imediatamente, ou mesmo porque o servidor não o recebeu pessoalmente, ou até o ato de recusa em devolver de imediato pode causar constrangimento. Assim, na hipótese de a devolução posterior implicar em despesas para o servidor, ele poderá, de forma alternativa, doá-lo.
Na hipótese de doação, esta poderá ser feita a uma entidade de caráter assistencial ou filantrópico, desde que reconhecida como entidade de utilidade pública.
Caso o presente for um bem não perecível, a exemplo de um eletrodoméstico ou um relógio, a entidade deverá se comprometer, por escrito, a aplica-lo ou o seu produto, em suas atividades. Quanto aos bens perecíveis, como alimentos, serão consumidos pela própria entidade.
No caso em que o bem for de valor histórico, cultural ou artístico, este deverá ser transferido ao IPHAN, para que o bem tenha o seu destino adequado.
Vale relevar que, na doação, o servidor deve exigir o comprovante do órgão que recebeu o presente doado.
A Comissão de Ética (CE-CVM), recomenda, sempre que necessário, que o servidor comunique a pessoa que ofertou o presente o destino dado à mesmo, com o esteio de ser evitadas novos casos de recebimento de presentes.
Com relação a aceitação do presente como um brinde, este se caracteriza como uma lembrança distribuída a título de cortesia, propaganda, divulgação habitual ou em ocasiões de eventos ou datas comemorativas de caráter histórico ou cultural.
No pertinente ao valor do brinde, este não pode ser superior a R$ 100,00 reais. Ademais, a sua distribuição deve ser ampla e irrestrita, ou seja, não se destinar exclusivamente a determinado servidor público. E, em suma, o brinde não pode ser aceito, quando distribuído por uma mesma pessoa, empresa ou entidade a período inferiores a 12 meses.
Em suma, conclusivamente, chega-se ao entendimento cristalino de que todas as regras constitucionais, infraconstitucionais e administrativas devam ser rigorosamente obedecidas pelos entes do Poder Público, mormente quando se trata de uma decisum já formulada anteriormente, que infelizmente é tratada pela expressão popular e oficial de “dois pesos e duas medidas”, registrada inicialmente na Bíblia Sagrada, mais precisamente no Livro de Deuteronômio (25:13-16), que deu origem ao uso da precitada expressão, mas popularmente e imparcialmente é utilizada para indicar “um ato injusto e desonesto”, relacionando-a com situações similares que são tratadas de formas completamente diferentes e diferenciados, à mercê do interesse e da vontade das pessoas que as executam.
Neste caso, como já acima exposicionado, nos períodos de 2003 a 2010 e 2011 a 2016, o TCU conseguiu identificar 1.073 presentes recebidos nesses períodos, enquanto que apenas 15 presentes haviam sido incorporados ao patrimônio público. Destarte, o TCU determinou a devolução de 432 presentes recebidos pelo então presidente Lula da Silva e 117 presentes recebidos pela então presidente Dilma Rousseff.
Em seguida, os assessores de Lula da Silva devolveram 360 dos 432 presentes ao patrimônio público, ou seja, omitiram-se de devolver 70 presentes, enquanto que os assessores de Dilma Rousseff devolveram 111 dos 117 presentes, ou seja, omitiram-se de devolver 7 presentes.
Diante desse levantamento procedido pelo TCU, observa-se o flagrante descumprimento total dos atos determinados. No entanto, nenhuma medida, na época, foi sugerida no Acórdão do TCU, prolatado pelo ministro-relator, como as oitivas dos ex-mandatários pela Polícia Federal; e apurações por parte da Polícia Federal e da Receita Federal.
Por outro lado, no Acórdão nº 2255/2016-TCU-Plenário, objeto do Processo nº TC 011.591/2016-1, há tão somente a manifestação sobre a presença de omissões pela não designação de sindicância ou de termo circunstanciado administrativo, visando a apuração dos fatos e das responsabilidades pelos diversos extravios de bens nas unidades da Presidência da República. Ademais, por não haver sido identificado os responsáveis pelos danos causados, diante da existência da comunicação sobre a existência de bens extraviados, além da intempestividade na apuração dos fatos que deram causa aos extravios.
Ademais disso, não foi explicado pelo precitado Acórdão, como todos esses presentes ingressaram no território nacional, sem que fossem fiscalizados pela Receita Federal do Brasil.
Assim sendo, ao invés de obedecer aos mesmo critérios decisórios, dirigidos ao então Presidente da República, Jair Bolsonaro, o plenário do TCU apenas determinou o encaminhamento de cópia do acórdão, do relatório e do voto, ao ministro das Relações Exteriores, ao ministro da Casa Civil, ao secretário-geral de Administração; ao chefe de Gabinete e ao chefe do Cerimonial da Presidência da República.
Conclusivamente, no ano de 2020, os mencionados casos julgados pelo TCU foram arquivados, sob o argumento de que as recomendações do Acórdão nº 2255, de 2016 foram cumpridas, constituindo-se, a não mais poder, a aplicação prática da expressão “dois pesos e duas medidas”.
Por outra monta, ou seja, no pertinente a aplicação penal no caso in concreto , não há como tipificar os recebimento de presentes, por parte de terceiros, mas dirigidos ao Presidente Jair Bolsonaro e sua esposa, como um ato delituoso, singelamente por que não se pode imputar a alguém uma conduta não prevista em nosso regulamento jurídico constitucional-penal, uma vez que, presente está a atipicidade prevista no inciso XXXIX, do artigo 5º, da CF/88, que reza: “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, assim como de maneira análoga o artigo 1º do Código Penal Brasileiro dispondo que, “Não há crime sem lei anterior que o defina”.
FONTES DE CONSULTA
Constituição Federal de 1988
Código Penal Brasileiro
Leis Infraconstitucionais
Acórdão nº 2255/2016-TCU (TC 011.591/2016
Acórdão nº 326/2023 (TC 003.679/2023)
Revista Jus Navigandi edição de 24/03/2023 – Análise Jurídica das Joias Presenteadas – Jacinto Sousa Neto.