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Uso irregular do TSE e STF envolvendo o ministro Alexandre de Moraes uma nova face do ativismo judicial

O ativismo judicial usurpa funções dos demais Poderes, agravando a crise democrática no país, ao superar os limites impostos pelo ordenamento jurídico.

O ativismo judicial não é um fenômeno inédito no Brasil; a novidade são as táticas adotadas pelo Judiciário para marchar sobre as prerrogativas dos demais Poderes e órgãos da República. Enquanto isso, a crise democrática do país se agrava.

O princípio da Separação dos Poderes decorre de uma característica da natureza humana, muito bem captada e expressa por Montesquieu: o homem tem predisposição natural de abusar do poder que tem, “vai em frente até encontrar limites”, e, para evitar tais abusos, “é preciso que, pela disposição das coisas, o poder detenha o poder”1.

Partindo dessas premissas, diversos mecanismos foram desenvolvidos para evitar concentrações de poder no âmbito de um Estado, o que resultou no tão proclamado e defendido Estado Democrático de Direito. Uma das principais peças dentro dessa lógica é o próprio princípio mencionado, que separa as funções essenciais do Estado em três entidades distintas, Legislativo, Executivo e Judiciário.

Vale mencionar que tal divisão não significa que os Poderes não interagem entre si ou, em determinados casos, se limitam. Pelo contrário, essa também é uma das ferramentas desenvolvidas para combater excessos, denominada de teoria dos freios e contrapesos (checks and balances)2. Dessa forma é possível garantir a distinção e independência de cada um dessas funções do Estado; afinal, há um núcleo essencial em cada uma delas que merece ser protegido e que não pode ser compartilhado sem que aconteça desnaturação e esvaziamento de um Poder sobre o outro3.

Na prática, ainda assim tais usurpações ocorrem, como nos casos de ativismo judicial, caracterizado pelo exercício anômalo da função jurisdicional, que supera “os limites impostos pelo próprio ordenamento”4. O resultado é que o Judiciário sequestra e toma para si funções que caberiam essencialmente ao Legislativo, Executivo ou a outros órgãos, como o Ministério Público.

Os exemplos mais comuns de ativismo são as decisões judiciais que afastam ou deixam de aplicar uma norma jurídica válida por uma preferência pessoal de um magistrado a determinado tipo de norma. O professor Humberto Ávila cita os casos de preferência dos princípios sobre as regras e da norma constitucional frente uma lei que não contraria a Constituição5.

Recentemente, surgiu uma possível nova forma de realizar o ativismo judicial. O jornal a Folha de S.Paulo publicou diversas reportagens expondo conversas de assessores do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), enquanto exercia a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), onde, por ordem de Moraes, era combinado alvos, forma e o conteúdo de relatórios que a Corte Eleitoral entregava ao STF. Posteriormente, esses documentos serviriam de embasamento para decisões do próprio magistrado nos processos e inquéritos em que é responsável.6 7 8 9 10

Possivelmente, essa forma de atuação pode configurar algum tipo de crime de responsabilidade11 ou algum tipo penal comum, além de ser contrária aos princípios que regem a ética da magistratura. De toda forma, há um claro ataque aos mandamentos intrínsecos à lógica da separação dos Poderes, existentes no contexto da atuação jurisdicional, sendo eles: o modelo de juízo acusatório; inércia judicial; devido processo legal; além do princípio da imparcialidade e da segurança jurídica.

Esses mandamentos evitam a concentrações de poder em um juiz, o que certamente levaria a abusos. Portanto, as funções de acusar, defender e julgar em um processo judicial são entregues a pessoas distintas; o juiz só fica autorizado a atuar quando provocado, devendo guardar um distanciamento mínimo entre as partes, além de garantir um rito onde os direitos e garantias dos indivíduos sejam respeitados.

Segundo as denúncias feitas pela Folha de S.Paulo, documentos e informações eram forjadas pelo próprio juízo, que atuava como se parte fosse, de forma a garantir o embasamento e fundamentação de suas futuras decisões, atingindo pessoas previamente determinadas.

As decisões tradicionalmente ativistas já são preocupantes e ameaçam a normalidade e o bom funcionamento das instituições democráticas. Com o advento dessa nova versão de ativismo judicial, a concentração de poder e os abusos se tornam cada vez mais evidentes, aproximando o Brasil de mais uma crise institucional.

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Paradoxalmente, os defensores das decisões ativistas, que normalmente são os próprios juízes ativistas, alegam que estão em defesa da democracia ou em busca de uma solução de uma suposta crise de representatividade e legitimidade12. O problema é que os limites e as formas de resguardar a democracia e solucionar crises, definidas por nossa Constituição, são ignoradas e substituídas pelo arbítrio.

Agindo de forma ativista, o Judiciário contribui para ampliação da própria crise de autoridade da democracia, visto que toma para si a responsabilidade de suprir e orientar, a qualquer custo, as supostas lacunas existentes no sistema. Isto reforça uma ideia paternalista, pois substitui as decisões da sociedade e das demais instituições frente às crises e dilemas naturais de um corpo social, o que impede o seu amadurecimento.13

Por fim, deve-se mencionar que provavelmente não existe uma solução única e rápida para os diversos problemas que permeiam a sociedade brasileira, em especial quando relacionadas à defesa do Estado democrático. No entanto, é necessário fazer valer os remédios prescritos em nossa Constituição e respeitar o tempo de maturação que o povo exige para determinados temas, deixando para trás soluções voluntaristas. Caso contrário, vamos continuar submersos em crises, ao lado de vários “heróis” que só buscam protagonismo.


Notas

  1. MONTESQUIEU. Do espírito das leis. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Claret, 2010. p. 168.

  2. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2011.

  3. RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, p.129. 2010.

  4. Idem. p. 129

  5. ÁVILA, Humberto. “Neoconstitucionalismo”: entre a “ciência do direito” e o “direito da ciência”. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 17, jan. fev. mar. 2009. Disponível em: https://revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/viewFile/836/595

  6. SERAPIÃO, Fábio; GREENWALD, Glenn. Moraes usou TSE fora do rito para investigar bolsonaristas no Supremo, revelam mensagens. Folha de S.Paulo, Brasília, 13 ago. 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/08/moraes-usou-tse-fora-do-rito-para-investigar-bolsonaristas-no-supremo-revelam-mensagens.shtml

  7. SERAPIÃO, Fábio; GREENWALD, Glenn. Auxiliar de Moraes sugere em áudios estratégias para evitar uso descarado do TSE; ouça. Folha de S.Paulo, Brasília, 13 ago. 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/08/auxiliar-de-moraes-sugere-em-audios-estrategia-para-evitar-uso-descarado-do-tse-ouca.shtml

  8. SERAPIÃO, Fábio; GREENWALD, Glenn. Moraes escolhia e pedia ajustes em relatórios contra bolsonaristas, mostram mensagens. Folha de S.Paulo, Brasília, 14 ago. 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/08/moraes-escolhia-alvos-e-pedia-ajustes-em-relatorios-contra-bolsonaristas-mostram-mensagens.shtml

  9. SERAPIÃO, Fábio; GREENWALD, Glenn. ‘Descarado’, ‘não vai sobrar internet’; veja mensagens fora do rito entre assessores de Moraes. Folha de S.Paulo, Brasília, 15 ago. 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/08/descarado-nao-vai-sobrar-internet-veja-mensagens-fora-do-rito-entre-assessores-de-moraes.shtml

  10. SERAPIÃO, Fábio; GREENWALD, Glenn. Moraes usou órgão do TSE contra bolsonaristas que xingaram ministros do Supremo em NY. Folha de S.Paulo, Brasília, 19 ago. 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/08/moraes-usou-orgao-do-tse-contra-bolsonaristas-que-xingaram-ministros-do-supremo-em-ny.shtml

  11. O art. 39. da Lei n° 1.079, de 10 de abril de 1950, define como crimes de responsabilidade dos ministros do Supremo Tribunal Federal: (I) alterar, por qualquer forma, exceto por via de recurso, a decisão ou voto já proferido em sessão do tribunal; (II) proferir julgamento, quando, por lei, seja suspeito na causa; (III) exercer atividade política-partidária; ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo; e, (IV) proceder de modo incompatível com a honra, dignidade e decoro de suas funções.

  12. BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Anuário ibero-americano de justiça constitucional 13. p. 29. 2009. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/5124286.pdf

  13. SALOMÃO, Pedro Ottoni. Ativismo judicial à luz do princípio da separação dos poderes. Repositório UniCeub, Brasília, 2020. Disponível em: https://repositorio.uniceub.br/jspui/bitstream/prefix/14824/1/Pedro%20Salom%C3%A3o.pdf

Sobre os autores
Pedro Ottoni Salomão

Advogado especialista em direito constitucional e legislativo

Luiz Felipe da Rocha Azevedo Panelli

Mestre e doutor em direito do Estado pela PUC-SP. Advogado e assessor parlamentar.

Gabriela Ottoni Salomão de Azevedo

Profissional com mais de 12 anos de experiência na área de Relações Governamentais, sendo que destes, 10 foram dedicados exclusivamente ao setor de tecnologia. Possui especialização em Processo Legislativo e MBA Executivo em Relações Governamentais.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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