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Crítica sobre Dom Quixote de La Mancha

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Agenda 05/09/2024 às 11:48

Resumo:

Dom Quixote continua sendo uma das obras mais traduzidas e publicadas, assim  como segue mantendo a sua vigência e atualidade de maneira indiscutível. Reflete uma visão ampla e complexa da realidade, antecipando muitas  técnicas do realismo do século XX, como o perspectivismo, narrador não-confiável,  incorporando ambiguidade crítica. Quixote nos faz refletir sobre o direito medieval e sua evolução e, sua loucura nos faz repensar o conceito de justiça e lealdade.

Palavras-chave: Dom Quixote de La Mancha. Miguel Cervantes. Direito Medieval. Justiça. Direito natural. Sociedade medieval.

 

O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha traz crítica a diversos aspectos da sociedade como, por exemplo, às questões políticas, sociais, éticas e também à literatura "escapista" da época. Através das histórias fantásticas dos livros de cavalaria, as classes menos favorecidas da Espanha mantinham suas mentes ocupadas em tempos de sofrimento causado, principalmente, pelo poder inquisitorial do período medieval.

Este estudo destaca a análise dos recursos literários da metaficção e do dialogismo, uma vez que Cervantes os utiliza como meios para o desenvolvimento da sua crítica irônica.

E, nesse sentido, a fundamentação teórica traz expoentes como o russo Mikhail Bakhtin, para a questão do dialogismo, e Gustavo Bernardo, como referência na questão da metaficção, entre outros. Como método de análise interpretativa foi utilizado o hermenêutico, segundo os preceitos do francês Paul Ricoe[1].

Este romance se caracteriza pelo seu grande  senso crítico, tanto às características da literatura quanto à sociedade do século XVII[2].  Dom Quixote é uma narrativa sobre a vida de um homem com uma situação  financeira confortável, com cerca de 50 (cinquenta) anos de idade e que gostava de ler histórias  fantásticas.

De acordo com o seu enredo, Alonso Quijano enlouqueceu por causa da  leitura exagerada de histórias de ficção. A sua paixão por histórias de cavalaria o  levou a vender algumas de suas propriedades para comprar todos os livros  possíveis.

A perda do sentido de realidade o leva a crer que poderia se tornar um  herói como os das histórias que ele tanto admirava e, dessa maneira, levar justiça  para onde fosse necessário, como um cavaleiro da época medieval.

E, também, um dos primeiros romances modernos da literatura  espanhola, a sua inovação está, principalmente, na mudança dos modelos clássicos  da literatura greco-romana, como eram a epopeia e a crônica, por exemplo.  

Cervantes criou uma obra em episódios com um propósito unitário, imitando o  conceito anterior de novela, pois foi o primeiro escritor a introduzir essa tendência na  Espanha, conseguindo misturar uma grande variedade de gêneros.

Mesmo com  suas características descritivas com relação à Espanha da época, Cervantes  consegue fazer com que o leitor renuncie, em muitas situações, à verossimilitude e  aceite o fato de que a sua própria percepção da história está sendo desafiada, como  no caso das situações metaficcionais e dialógicas.

 O fiel escudeiro de Dom Quixote em tudo se  diferencia do seu mestre, pois quanto às características físicas é baixo e gordo,  enquanto nas intelectuais, não é nem culto nem estudado, mas tem a sabedoria  popular que expressa através dos muitos provérbios proferidos ao longo do romance  em suas aventuras como escudeiro do Cavaleiro da Triste Figura (como também fica  conhecido Dom Quixote).

Sancho é um simples agricultor que, embora ganancioso,  ama sua família, porém a deixa para sair em busca do governo da ilha prometida por  Dom Quixote como pagamento por seu trabalho de fiel escudeiro.

Tudo indica que o  personagem Sancho, a sua simplicidade e, ao mesmo tempo, a sua ambição em ser  governador de uma ilha, procura transmitir uma mensagem de fundo social quanto às  aspirações das classes menos favorecidas.

Sancho só era aparentemente tolo, e, portanto já demonstrava sua grandeza. O próprio narrador anuncia que Sancho era um homem de pouco sal na moleira, demasiado crédulo para perceber o que se passava ao seu redor.

Mostrava as reminiscências medievais, na qual seria inaceitável que um lavrador sem terras próprias alcançasse, o posto de governador. A mentalidade conservadora não admite a mobilidade social e, enxerga qualquer aspiração como a mais autêntica loucura.

O maior pecado de Sancho era a gula, o que posteriormente, inclusive lhe fez abrir mão do governo da Ilha de Barataria, como se sabe, tratava-se de uma grande farsa armada pelo casal de duques, porém, Sancho é tão real quanto a fome.

Temos uma camponesa pobre e feia moradora de um povoado vizinho chamado Aldonza Lorenzo, à qual Quixote dedicava suas façanhas na falta de uma real donzela a quem pudesse devotar tanta afeição e seus atos heroicos.

Dulcineia del Toboso era uma camponesa que pela ótica de Quixote fora transformada em grande dama. Ela representava o ideal de pureza e grandeza a que todos aspiram, a musa inspiradora que a fé de Dom Quixote ciosamente alimentava.

Dulcineia nem é mesmo um personagem propriamente dito, pois era fruto de idealizações fantásticas de seu grande admirador, Dom Quixote, que inclusive trocara seu nome por Dulcineia del Toboso.

Era o amor cortês que segundo a literatura de cavalaria da época, provia um sentimento correspondente ao amor ideal, incondicional, casto e sublime e que justifica todos os sacrifícios e é alheio a todos os tipos de conotação sexual. É o mais legítimo amor platônico.

Lembremos que Dom Quixote segue o exemplo do que fazia todo cavaleiro andante  que conheceu através dos livros de cavalaria, e assim decidiu converter uma moça camponesa em sua  dama, Aldonza Lorenzo, de boa aparência e vizinha de um povoado próximo ao seu.

O que acontece  é que o nome mencionado da moça lhe parece muito vulgar, uma vez que corria o trocadilho "A falta  de moça, boa é Aldonza", por esse motivo toma a decisão de mudar este fato. Alonso Quijano[3], que  estava “apaixonado” por Aldonza Lorenzo, embora ele nunca a tivesse comunicado nem ao menos  parte de seus sentimentos, lhe outorga o novo nome de Dulcineia del Toboso para fazê-la sua dama,  a dama de Dom Quixote, alter ego de Alonso Quijano.

É bom lembrar que este nome já era conhecido  por Cervantes através do romance Os dez livros de fortuna de amor do sardenho Antonio Lofrasso, em  que aparece Dulcineia e uma pastora chamada Dulcineia.

Doroteia é uma exceção, pois não é rica,  entretanto é culta, inteligente, mas que não pode ser considerada como de fato pobre,  ainda que pertencesse a uma classe inferior à de seu amado Fernando.

Doroteia é uma jovem que foi abandonada por Dom Fernando, depois  de ter aceitado dormir com ele. Dom Fernando abandona a jovem  morena Doroteia, desejando se casar com Lucinda, que era loura e  pura.

Doroteia é uma moça ardilosa e sobre o disfarce da princesa  Micomicona vai pedir o Cavaleiro que reconquiste seu reino usurpado  e a vingue de suas afrontas. Ao final consegue o que deseja e casa-se com Dom Fernando.

Na época de invasão moura na Espanha, esse cristão cativo é capturado pelos  mouros e preso na Argélia, quando recebe o auxílio da bela moura Zoraida (esta jovem  muçulmana demonstra conhecimento e admiração pela religião católica), que o ajuda  a fugir e por quem ele acaba se apaixonando.

O casal acaba com final feliz desafiando  as divisões sociais, culturais e religiosas da época. Cervantes apresenta dois personagens  fundamentais ao desenvolvimento da trama final da história que trata da galhofa a que Dom Quixote e Sancho são submetidos.

Ao contrário da primeira parte, em que Dom  Quixote, sempre acompanhado por Sancho[4], procurava aventuras em busca de fama  e glória, nesta segunda parte da obra, passam a ser vítimas de falsas aventuras  promovidas por um casal de duques que buscava somente a diversão.

A duquesa era  uma mulher de extraordinária beleza e bondade, mas não perdeu a oportunidade de  zombar de Dom Quixote e de seu fiel escudeiro Sancho Pança.

Além disso, ela  gostava de caçar, ser hospitaleira, ter bom relacionamento com os funcionários e  convidados. Era também uma boa esposa e fiel ao seu marido.

Seu esposo, o duque, igualmente bondoso e hospitaleiro, da mesma forma  também não perdeu a chance de zombar da dupla de aventureiros. Inclusive, foi ele  pessoalmente que planejou a galhofa a Sancho Pança concedendo-lhe a falsa ilha de  Barataria para governar.

Nesse episódio, o casal de duques aproveita a ingenuidade  de Dom Quixote com relação a seu amor cortês por Dulcineia e usa uma linda jovem  e sua suposta “dama de companhia” para zombar do cavaleiro da Triste Figura e de  seu escudeiro Sancho Pança.

Cervantes descreve os diversos personagens com  características físicas e psicológicas muito variadas que atribuem à obra os mais  diversos significados e uma imensa variedade de interpretações.

Além disso, é  possibilitada ao leitor, no decurso de cada um dos mais de cem capítulos da obra,  uma viagem aos costumes da Espanha da época garantida pela linguagem burlesca  e irônica utilizada por Cervantes.

 Porque essa obra ficcional é um exemplo claro  de metaficção, mas reúne características realistas quanto às descrições físicas e  sociais da Espanha.

Com relação à crítica irônica, sempre  parece importante exemplificar com uma delas que é a sua crítica às novelas de  cavalaria, em que o autor sugere uma reflexão sobre a realidade da Espanha em sua  época.

Além dessa, muitas outras questões são trazidas ao debate originalmente pelo  autor através do humor, quando ao utilizar-se de uma linguagem irônica, consegue  dosar a sua crítica de forma a não causar a si próprio uma perseguição por parte de  seu público-alvo.

A originalidade e a grandiosidade de seu trabalho parecem estar  exatamente nesse ponto, ou seja, no fato de que consegue ser um crítico irônico a  vários aspectos da sociedade sem levantar suspeitas, uma vez que o sentido duplo  na linguagem utilizada é introduzido sutilmente em seu texto, sem rastros e parágrafos  explícitos que pudessem comprometê-lo.

Os  recursos do humor e da comicidade na linguagem utilizada pelo autor, possibilitam  também nas questões éticas e de justiça o duplo sentido (acima mencionado) que  representaria, na realidade, a sua crítica político-social à sociedade que admitia um  governo corrupto que apoiava a Inquisição[5].

Dom Quixote era totalmente contrário a  isso. Esse personagem, justamente por ser exagerado e ingênuo, representa essa  crítica à sociedade (do temor e da ameaça) espanhola da época.

Não podia ser feliz um povo ameaçado diuturnamente pela rude  Inquisição, que fazia galas de perseguir até a morte (e que morte!)  qualquer um que ousasse se subtrair ao controle dos teólogos d’El-Rei. Os tenebrosos Autos de Fé eram realidade na época de  Cervantes.

Cervantes consegue por meio de inúmeros recursos literários criticar ironicamente a  sociedade, o governo e a Igreja da época. Por esse e outros motivos o romance é  considerado um clássico da literatura universal.

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Mas, sobretudo, o autor utiliza  recursos inovadores para a época como, por exemplo, a metaficção em auxílio ao  método tradicional utilizado para contar a história de um fidalgo, que embora fictício,  atravessa a Espanha com características reais do século XVII, em busca de aventuras  e façanhas.

Dom Quixote continua sendo uma das obras mais traduzidas e publicadas, assim  como segue mantendo a sua vigência e atualidade de maneira indiscutível. Dom  Quixote reflete uma visão ampla e complexa da realidade, antecipando muitas  técnicas do realismo do século XX, como o perspectivismo, narrador não-confiável,  incorporando ambiguidade crítica.

Entendemos que Dom Quixote mesmo sendo uma obra anterior  ao movimento literário do Realismo, reflete algumas de suas características, uma vez  que retrata a natureza e a sociedade como ela é, sem distorções.

Obviamente que  não podemos deixar de considerar o fato de que seu personagem principal tinha uma  visão deturpada da realidade por motivo da “insanidade” a que estava acometido, e  que por isso enxergava gigantes quando em realidade estava diante de moinhos.

O realismo cervantino tenta fazer da  literatura um documento que reflita a sociedade do seu tempo.  Para isso, descreve o  normal, cotidiano, típico e opta por personagens correntes e comuns, ao invés de  personagens extravagantes e incomuns do movimento literário anterior, vigente na  época de Cervantes, ao qual ele se contrapõe escrevendo uma novela realista com  relação a suas descrições.

Percebemos em Sancho uma evolução em seu caráter: num primeiro  momento vemos um camponês ignorante, mas sensato que concorda em ser o  escudeiro de Dom Quixote porque entende essa atividade ou missão proposta por  nosso Cavaleiro da Triste Figura como uma chance de melhorar sua vida  economicamente. Porém, no decorrer de suas aventuras com Dom Quixote, esse fato  se torna uma espécie de obsessão que inclusive o desfoca da realidade algumas  vezes.

Em algumas situações, a sua ambição o faz participar da “loucura” de seu  senhor, como no caso do Capítulo XXX da primeira parte do romance, em que Dom  Quixote manifesta concordar em cortar a cabeça do gigante para libertar a princesa

Micomicona de ter que se casar com o gigante. No entanto, ele afirma que não pode  se casar com a princesa, como era o costume para os cavaleiros medievais que  seguiam os ritos cavaleirísticos, já que estava comprometido sentimentalmente e  moralmente com a sua Dulcineia del Toboso[6].

Diante dessa observação, Sancho se  mostra visivelmente irritado com Dom Quixote devido ao fato de que a não  consumação desse casamento (entre a Princesa Micomicona e Dom Quixote)  frustraria a sua ambição de tornar-se governador de uma ilha.

Mesmo sabendo que tudo o que estava acontecendo era uma representação, pois sabia que inclusive a  Princesa era na verdade a personagem Doroteia disfarçada, Sancho passa a igualar-se  em “loucura” a seu mestre na medida em que esquece completamente que está  participando de uma farsa promovida por um grupo do qual ele mesmo faz parte e  sabe de tudo.

Outra característica da novela realista[7] que observamos em Dom Quixote é  que o autor analisa, reproduz e denuncia os problemas que afetam a sua sociedade.

Nesse sentido, podemos ver que em Dom Quixote, Cervantes aborda questões de  denúncia social, tais como o tratamento desigual recebido pelas mulheres, como no  caso da pastora Marcela que, ao rejeitar o amor de Crisóstomo, foi acusada pelos  demais como culpada pela morte dele. Dom Quixote defende o direito que deveriam  ter as mulheres de poder recusar um homem e permanecer solteiras, se assim fosse  de sua vontade.

Podemos ver outro exemplo de denúncia à desigualdade no  Capítulo XXXVIII da primeira parte da novela em que Dom Quixote, em seu discurso,  aponta o fato de que os soldados são desproporcionalmente recompensados em seu  trabalho com relação aos letrados (como eram chamados os advogados na Espanha  da época).

Os soldados arriscam suas vidas por outros e recebem menor recompensa  financeira que os advogados, uma vez que estes últimos, ao contrário, trabalham  menos e são mais bem remunerados.

Também reconhece que o trabalho dos letrados/advogados é  essencial para se ter leis e, por consequência, garantir a segurança. Dom Quixote  chama a atenção para que também seja considerada a importância dos mesmos, na  medida em que, inclusive nas guerras, as leis são fundamentais.

Cabe mencionar uma outra característica importante do  realismo presente em Dom Quixote: a paródia e a zombaria ao fantástico. São  claramente evidentes a ironia e a paródia que Cervantes emprega para se referir à  literatura popular e aos livros de cavalaria, que apresentam heróis idealizados, irreais, fantásticos e exagerados, os quais foram mencionados anteriormente. A obra  representa, nesse sentido, uma realidade dentro desse mundo de fantasia que o  personagem Dom Quixote cria[8].

Cervantes se utiliza de uma linguagem irônica especialmente  “direta” deixando bem claro que para alguém chegar a esse ponto só pode estar  “louco”, e para isso utiliza-se de vocabulário oposto, ou seja, “que para ele não existia  história mais certa no mundo”.

Eis que  “ele” com o adjetivo “louco” porque  ninguém em outra condição que não fosse essa, o faria. Sobretudo, interpretamos  como “a grande ironia do narrador” nessa passagem (citação da obra acima  mencionada), o fato de a situação identificada deixar implícito o provérbio “faça o que  eu digo, não faça o que eu faço”, uma vez que primeiro elogia e enaltece as histórias  de cavalaria e seus feitos “éticos” e de “justiça” para logo a seguir chamar de loucos  os ideais de justiça[9] com os quais Dom Quixote se identifica e que deseja experienciar  pessoalmente.

A história é verossímil, pois segue os padrões do realismo literário na medida  em que se assemelha à verdade, aparenta ser verdadeira e, sobretudo, não se opõe  à verdade, embora o idealismo de Dom Quixote esteja presente.

Embora Dom Quixote seja uma ficção literária, a história  continua a mostrar uma relação estreita com eventos da vida real, as situações mais  improváveis na novela não deixam de ser possíveis na vida real, fatos estes que  caracterizam a verossimilitude decorrente das características realistas da novela.

Outro aspecto importante relacionado à linguagem e identificado no romance,  é a questão do narrador múltiplo. No entanto, a maior parte da história é contada por  meio de um narrador onisciente que rege discursos indiretos livres como aquele que  tudo vê e tudo sabe, mas que muda para a primeira pessoa muitas vezes,  principalmente durante as histórias interpoladas.

Ele sabe até mesmo o pensamento  de alguns personagens. Curiosamente, o narrador onisciente do romance tem um  nome (Cide Hamete Benengeli), e muitas vezes o leitor fica com a impressão de que  ele é apenas mais um dos inúmeros personagens da história, pois seu nome é  mencionado seguidamente durante toda a trama.

Cervantes propõe,  sobretudo, uma reflexão do fictício, do real e do imaginário, não esquecendo que, para  corroborar com esse jogo metaficcional de narradores, o próprio Cervantes é um dos  narradores.

Há uma narratividade múltipla, três narradores que se superposicionam com a finalidade de dirigir o narrar sob diferentes  pontos de vista, e confundir o leitor para fazê-lo refletir.

É isto ou  aquilo? É verdade ou mentira? É sério, ou o texto brinca comigo  (leitor)? Este é o texto verdadeiro ou é fraude? Quixote é louco? Quem  é o verdadeiro louco? Quixote ou a sociedade que não lhe concede  espaço? Estaria Cervantes sugerindo juntar diferentes classes sociais  ao unir Sancho à Quixote? Haveria em seu texto alusão à inclusão  social dos loucos, dos inadaptados, dos marginalizados? Muitos são,  segundo Iser, os vazios do texto literário, como múltiplas são as  possibilidades de preenchimento desses vazios pelo leitor (Iser, 1996).

Os leques vão sendo abertos a cada entrada e saída do autor no  texto, a cada substituição de narrador-personagem.

As digressões se caracterizam por “desvios” do eixo principal  da história em direção a reflexões de personagens ou histórias secundárias que são  inseridas no meio da história principal e que trazem ao enredo e aos leitores  expectativas de novos e interessantes contos para refletir e desfrutar.

Dessa forma, Cervantes consegue revigorar o eixo principal da história com situações que renovam  a trama e propõem um maior entusiasmo investigativo aos leitores, pois, com novos  elementos e personagens, as possibilidades de interpretações socioculturais se  expandem enormemente.

Nesse sentido, Cervantes apresenta a trama criando novas  histórias e possibilitando curiosas e entusiasmadas expectativas aos leitores durante  seu percurso de crítica irônica à sociedade espanhola da época.

O contexto histórico da  Espanha em que viveu Cervantes e que ele retrata quando escreve Dom Quixote, ou  seja, século XVII. Isso para esclarecer situações como, por exemplo, a importância  dos mouros muçulmanos na história da Espanha, os quais formam grande parte da  população naquela época, e que influenciam de várias maneiras o cotidiano dos  espanhóis, e sobretudo, refletem nos aspectos: cultural, social e político do país.

Tendo em vista o contexto histórico que é a partir de agora exposto, pretendemos  introduzir os próximos subitens a serem desenvolvidos que tratarão das críticas aos  livros de cavalaria que tiveram o seu ápice na Idade Média, bem como a crítica  político-social que faz Cervantes e que identificamos na obra.

Com os primeiros grupos de invasores na Península Ibérica que são os Ibéricos até o  ano 1000 A.C, depois os Celtas até 201 A.C que invadem a Península Ibérica e  misturados com os ibéricos deixam influências na língua espanhola como, por  exemplo, topônimos, substantivos e sufixos.

A esse período segue a invasão e  dominação do Império Romano de 218 A.C a 409 que com Teodósio, o Grande, em  380 A.D, considerado o último imperador do Império Romano unificado, estabelece o  cristianismo como religião oficial.

A partir deste ano (409), acontece a chegada de  duas tribos germânicas que iniciam o feudalismo com a fusão das sociedades  romanas e germânicas. Na sequência, chegam os visigodos entre 412 e 711 e deixam  como influencia léxicos militares, de vestuário e nomes próprios.

Segue um grande período de domínio principalmente territorial por  parte dos mouros muçulmanos ocorrido entre 711 e 1492 com três invasões que  deixaram na Espanha uma influência expressiva na agricultura e na matemática entre  outras.

Estes mouros eram árabes da antiga Mauritânia (hoje Marrocos), Tunísia e  Argélia que contribuíram com cerca de quatro mil palavras ao léxico espanhol. Tanto  que a língua falada no sul da Espanha foi durante muito tempo o moçárabe, isto é, a  língua românica de mouros muçulmanos e cristãos espanhóis.

A reconquista territorial  espanhola católica começa com a última expulsão dos mouros, em 1492, quando  ocorreu a conquista de Granada, acabando o domínio territorial dos árabes  principalmente nessa região.

 A Idade média que se situa tradicionalmente entre 476 com a queda  do Império Romano do Ocidente e 1492, com a descoberta da América e expulsão  dos mouros muçulmanos, percebemos que esse período histórico da civilização  ocidental (entre os séculos V e XV) é marcado por ser, além de um período de disputa  territorial entre espanhóis e árabes, também uma época de grande conflito religioso  entre cristãos e muçulmanos.

Assim que, de todas as influências linguísticas,  religiosas e culturais absorvidas pela Espanha, destacamos a unidade espiritual cristã  fundamentada pela Igreja Romana que dominou politicamente e espiritualmente esta  época, e a muçulmana que se impõe pela força armada nas disputas territoriais e  através da cultura que deixou muitas características que até hoje podem ser  observadas inclusive na arquitetura de monumentos históricos espalhados pela  Espanha.

Após o final da Idade Média, no início do Renascimento quando Cervantes  escreve essa obra, a época se mostra efervescente à escrita literária com o avanço  das universidades e a invenção da imprensa que conduz a popularização do saber.

Contudo, Cervantes precisa escrever com muita cautela não somente por vir de uma  família católica temente aos dogmas da Igreja, mas também pela sua própria condição  de servente ao rei e soldado honrado em seu ofício.

É possível perceber na obra, por  parte do escritor, uma mescla de respeito à Igreja e ao monarca, assim como também,  e principalmente, uma forte crítica, ainda que sutil, a toda a constituição política e  social da Espanha.

Principalmente na história do “cativo” que  é trabalhada no último subitem deste capítulo e dissertação, o seu descontentamento  com relação aos governantes e a falta de reconhecimento ao soldado que honra a sua  pátria arriscando a sua vida por ela.

Quanto a crítica aos livros de cavalaria, que ainda  na época de Dom Quixote estavam em evidência, ela se deve ao fato de que em meio  a esse período de efervescência cultural e utilização da razão como fonte de  conhecimento e sabedoria, esses livros de histórias fantásticas suprarreais ainda  faziam parte do cotidiano do povo espanhol que começa a libertar-se do período de  opressão da Idade Média.

Em combate aos resquícios de cultura e religião muçulmana, assim como  também às religiões protestantes, assume o trono Felipe II[10] que se trata de um  monarca repressivo que lutou para preservar o domínio da religião católica na  Espanha.

Em meio a esse centro de disputa religiosa e cultural entre muçulmanos e  católicos, surge Cervantes com Dom Quixote. Percebemos esse conflito durante toda  a obra em que os personagens muçulmanos, com exceção de Zoraida (uma vez que  se converte ao cristianismo), são representados como os vilões da história.

Exemplo  disso é o narrador Cide Hamete Benengeli e os carcereiros dos “Banhos de Argel”,  em que o personagem “cativo” esteve preso por muitos anos. Esse fato coincide com  a verdadeira história de Cervantes que vem de uma família católica e que esteve de  fato preso nos “Banhos de Argel”[11], lugar dominado por árabes muçulmanos.

Foi exatamente nesse período de desventura e de cativeiro sob domínio dos  mouros, que Cervantes escreveu essa obra. E nessa época que o autor viveu  escassez econômica em contraponto à abundância literária. Fato este que mais tarde,  depois da sua morte, lhe rende o reconhecimento como expoente máximo da literatura  espanhola.

 No século XVII, época de Cervantes e Dom Quixote, os escritores  ainda continuam escrevendo livros de cavalaria, mantendo vivas as crenças em  grandes “heróis fantásticos”, que, na nova etapa da sociedade espanhola, já não  deveriam mais ter espaço.

Lembremos que  na Idade Média quem controla e gerencia a economia são os senhores feudais e que  as relações sociais feudais começam a desaparecer com esse período de transição  para a Idade Moderna.

Através do Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, o autor aponta o  fato de que as lendas fantásticas apenas distanciam os leitores da realidade e os  submergem em um mundo de fantasias inúteis.

Aparentemente, as histórias desses livros desencadeavam complicações e  frustrações a quem, como Dom Quixote, sofre a incapacidade de resolver os  problemas da vida real, assim como eram resolvidos pelos heróis da ficção.

No personagem de Dom Quixote o autor quis representar  aquelas pessoas do século XVII que amam a literatura, mas que, devido à falta de  boas obras, precisam ler o que estivesse disponível, mesmo que fossem livros de  cavalaria de má qualidade.

Lembremos que naquela época não havia outros tipos de  distração como as que temos hoje ao exemplo da televisão, do cinema, da Internet  etc. Além disso, naquela “nova era”, as histórias de cavalaria[12] também puderam  cumprir a função de distrair as classes inferiores para a qual este período de transição  para a Idade Moderna continuava representando um tempo de calamidade.

Para os  pobres senhores fidalgos foi inevitável serem cativados por um mundo irreal,  congelado nos livros, que lhes recorda seu passado glorioso na Idade Média, pois ser  um “cavaleiro” medieval representa status e glória.

O  Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, parece que três delas são as  principais. Ou seja, a sua obra está totalmente preenchida por interessantes questões  muito discutidas como as implicações sociais, políticas e éticas de seu tempo.

O  trabalho é tão rico em detalhes e reflexões de toda a ordem filosófica, que cogitar sobre  todas elas seria uma tarefa muito difícil, senão impossível.

Dom Quixote, refletem ideias de justiça em um mundo ideal, que  poderiam muito bem ser os ideais éticos do autor. Constatamos pensamentos e ideias  de como agir certo ou errado do ponto de vista moral na sociedade da época.

Particularmente, nessa obra, Cervantes reflete a realidade da Espanha do século XVII,  utilizando o humor simples, porém irônico em relação às peripécias de nosso cavaleiro  andante e de seu fiel escudeiro Sancho Pança para refletir esses ideais de justiça.

Cervantes descreve Sancho como o representante da classe menos favorecida,  e, portanto, é o sujeito sem cultura e sem educação. Embora seja um camponês  humilde, mostra-se também muito ambicioso, como por exemplo, quando Dom  Quixote lhe promete uma ilha como pagamento por sua função de escudeiro.

O  interessante sobre essa descrição é que todas essas características atribuídas a  Sancho pelo autor desde o princípio do texto em nada lhe correspondem ao tomar  decisões inteligentes, justas e totalmente sábias realizadas na Segunda Parte do livro,  quando o duque e a duquesa, por pura zombaria lhe oferecem uma falsa ilha.

Como  governador dessa ilha, Sancho é justo, inteligente e muito sábio em suas decisões  éticas em relação aos direitos e deveres dos habitantes daquela sociedade.

Por outro lado, Dom Quixote, que é o herói culto desde o início, proprietário de  uma pequena fazenda, também passa por certas contradições na construção de seu  caráter psicológico, uma vez que tem a desvantagem de fazer escolhas “malfeitas”,  como, por exemplo, a maioria das seleções de suas leituras, que, como já foi discutido  no item anterior, se trata de contos fantásticos de entretenimento que distanciam  seus leitores da realidade do país, na época.

Acredita-se que Cervantes, através do nosso cavaleiro, tinha como finalidade  última propor uma Espanha mais justa para a época. Contudo, seu personagem  principal, por não estar usufruindo de juízo perfeito, sempre comete atos absurdos, os  quais são justificados por ele mesmo pelo fato de que havia sido encantado pelo  mágico Freston.

Os livros de cavalaria são de alguma forma os que provocam a tomada de  consciência no Quixote de que no mundo real há tanta injustiça como nas histórias  fantásticas.

Esse sentimento de sede de justiça[13] de Dom Quixote, em tempos  modernos, condiz com os sentimentos do povo espanhol durante o século XVII.

Entre  1556 e1598, a Espanha esteve sob o domínio do Rei Felipe II, que  foi caracterizado como um monarca repressivo e obcecado por preservar a religião  católica. O Rei Felipe II cria uma divisão religiosa do seu reino e provoca uma extrema  perseguição contra as religiões protestantes.

Durante o período entre os anos 1556-1559, ele aplica as leis da Inquisição (processos inquisitoriais de Valladolid, Toledo e  Sevilha).

O rei ordena a queima de muitas pessoas que praticam o luteranismo. Como  parte da repressão, o rei proíbe que as pessoas estudem em universidades  protestantes e emite uma lista de livros proibidos.

É nesse contexto de injustiça social e perseguição, que supomos ter vivido  Dom Quixote, e provavelmente que o motiva a não acreditar nas leis governamentais.

Um dos exemplos do seu desejo de implantar justiça por conta própria é o episódio do  criado chicoteado por ter perdido algumas ovelhas.

Parecia a oportunidade esperada para ajudar um  necessitado, e por isso decide entrar na floresta e perguntar o que está acontecendo. Descobre que um jovem de cerca de quinze anos está sendo açoitado por um homem forte e mais velho.

Vendo o que estava acontecendo, Dom Quixote intervém:

         “- Descortês cavaleiro, mal parece haverdes-vos, com quem vos não  pode resistir; subi ao vosso cavalo, e tomai a vossa lança – (que  arrumada à azinheira estava de feito uma); - eu vos farei conhecer que  isso que estais praticando é de covarde”.

Ao ouvir essas palavras de Dom Quixote, o agricultor se justifica, explicando  que o menino é seu criado e que o está punindo por ter perdido uma ovelha. Vargas  Llosa menciona que durante o século XVII situações como essa são “[...] algo a lo que  según las bárbaras costumbres de la época, tenía perfecto derecho [...]” .

O  propósito do nosso cavaleiro em fazer justiça é mais que nobre e justo. O problema  está na forma como ele pensa que pode fazê-la. Dom Quixote acredita no valor da  palavra de um cavaleiro e por isso confia em todos aqueles que se denominam  “cavaleiros”. Portanto, quando o agricultor que açoita o jovem percebe a "loucura" de

Dom Quixote, ele se aproveita disso e o faz acreditar que pagaria ao rapaz tudo o que  lhe devia por ter-lhe causado tanto mal, isso porque ele também era um suposto  “cavaleiro”.

O personagem principal reflete a verdadeira história de Cervantes, ou pelo  menos parte dela, pois na vida real Cervantes foi prisioneiro por vários anos nesse  mesmo lugar. É importante recordar, para uma melhor compreensão da história, que  nem todos os capítulos tratam de aventuras de Dom Quixote.[14]

Cervantes valoriza a sua obra ao expor e refletir questões muito mais amplas do que  as usuais aventuras frustradas de nosso candidato a herói Dom Quixote.

A ironia de Cervantes em “O engenhoso fidalgo Dom  Quixote de La Mancha” é comprovada justamente quando ele retoma esse mesmo  tema “cavaleiresco” para criticá-lo através das peripécias de um pseudo-cavaleiro  medieval como Dom Quixote, seu personagem principal. Identificamos como sendo  a primeira crítica de Cervantes o fato de que a história conta que o motivo que levou  Alonso Quijano[15] a enlouquecer foi justamente a leitura em excesso desses  romances de cavalaria. No final, Dom Quixote não é coberto de louros, como os outros heróis, mas morre arrependido. Suas ilusões e o choque entre a realidade e o sonho é que seduzem o leitor.

Essencialmente, na Idade Média na Europa, foi exercido o direito romano, que já tinha sido implantado na zona dominado pelo Império, sendo apenas, a língua alterada (o latim).

Constatou-se que surgiram muitas dificuldades, vez que a legislação não era totalmente codificada. E, no século XII surgiu o Decretum de Graciano, incidindo somente no direito canônico, enquanto o direito civil não referente aos crimes graves que estava a cargo dos reis, variando de acordo com os monarcas.

Os célebres criminosos perigosos eram julgados por tribunais autônomos, havendo uma grande variedade destes. E, realmente, existiam tribunais não apenas para deliberar sobre os mais graves delitos como também para apelação de qualquer pessoa, variando, contudo as sentenças conforme a região, uma vez que a legislação não encontrava uniformizada.

Os advogados integravam a classe média e, tinham as funções de defesa dos seus clientes e registro de disposições testamentárias.

No âmbito do direito urbano verificou-se nos séculos XII e XIII a criação de cidades novas com aplicação da legislação de outros núcleos urbanos existentes, fossem estes de grande importância ou não, tornando-se as segundas dependentes das primeiras.

Havendo diversos modelos de leis já nestas centúrias, umas mais completas que outras, cada senhor aplicava nas suas terras aquele que lhe parecesse melhor. Entre os códigos legislativos sistematizados e instituídos nesta altura destacam-se o de Lübeck (Alemanha), de Teruel e de Cuenca (Espanha).

É sabido que o Direito Romano e com tanta influência no campo eclesiástico (como o Romano no civil) foi o Direito Canónico, tendo este último ainda a particularidade de exercer também um grande peso na justiça secular.

Nas regiões nórdicas onde o Cristianismo foi implantado tardiamente vigorou durante a Idade Média um código de costumes de origem e característica germânicas, onde a culpa ou inocência era aferida pela derrota ou vencimento de duelos entre adversários ou seus representantes ou provas denominadas "ordálias", em que o acusado se submetia à imersão de partes ou a totalidade do corpo em água a ferver, ao lançamento em águas profundas com uma pedra amarrada ao pescoço ou a queimaduras com ferro em brasa (entre outras práticas) e se sobrevivesse ou sarasse as feridas em determinado período de tempo era inocentado.

O conceito de Justiça passou por transformações no contexto medieval, no Ocidente latino, especialmente entre os séculos XIII e XV, devido às transformações em andamento nos campos político e institucional.[16]

As monarquias se institucionalizavam influenciadas pelas discussões propostas pela Universidade de Bolonha gerando a construção de uma cultura jurídica sistematizadora dos conceitos e critérios de exercício da Justiça sem abandonar a relação destas teorias com o contexto social a que destinava.

Os representantes municipais ganhariam cada vez mais protagonismo em alguns eventos como na ascensão da dinastia de Avis em Portugal (1383-1385) e suas aspirações e visão de mundo seriam demandadas como uma das moedas de troca do apoio concedido e se refletiriam na legislação e nas coleções jurídicas elaboradas pelos descendentes de D. João I de Avis, como as Ordenações Afonsinas.

 

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Sobre a autora
Gisele Leite

Professora universitária há três décadas. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Pesquisadora - Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Presidente da Seccional Rio de Janeiro, ABRADE Associação Brasileira de Direito Educacional. Vinte e nove obras jurídicas publicadas. Articulistas dos sites JURID, Lex Magister. Portal Investidura, Letras Jurídicas. Membro do ABDPC Associação Brasileira do Direito Processual Civil. Pedagoga. Conselheira das Revistas de Direito Civil e Processual Civil, Trabalhista e Previdenciária, da Paixão Editores POA -RS.

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