IV – NÃO HÁ QUEBRA DE SIGILO PELO CRIME FUNCIONAL
Tem-se por assente, que inexiste quebra de sigilo bancário, na hipótese do cometimento de crime praticado por funcionário da instituição financeira, por meio de auditoria interna, cuja ocorrência deverá ser comunicada ao Ministério Público, com o envio da documentação pertinente.
Essa é a manifestação da 6ª Turma do STJ, negando provimento ao REsp n. 1.876.728, ingressado por um funcionário do Banco do Brasil que promoveu o desvio no valor de R$ 1,5 milhão de reais de correntistas, tendo sido condenado pela prática do crime de peculato.
Segundo a defesa do funcionário, as provas juntadas aos autos são consideradas nulas, uma vez que foram obtidas sem que houvesse o pedido de compartilhamento pelo MP, através da quebra de sigilo bancário do réu e de seus familiares, sem que tenha havido prévia e imprescindível autorização judicial.
De acordo com o funcionário acusado, o envio de dados obtidos na tramitação do procedimento administrativo interno do banco, não poderia ser tratado como uma simples transferência de informações. Porquanto, os dados não poderiam ter sido encaminhados ao MP sem a autorização judicial.
Na data de 23/03/2021, deu-se o julgamento do feito, por meio do voto-vista do ministro Sebastião Reis Júnior, acompanhando a ministra-relatora, Laurita Vaz, na negativa de provimento. Destarte, a decisão foi por unanimidade, com os votos dos ministros Nefi Cordeiro, Rogério Schietti e Antonio Saldanha Palheiro.
Segundo o entendimento uníssono, os julgadores levaram em consideração o fato do Banco do Brasil haver se limitado a conferir as operações bancárias e pagamentos suspeitos, procedidos com o login e a senha do funcionário-réu, informações consideradas de segurança da entidade bancária, mas que não estão protegidas pelas regras de sigilo bancário.
Por outro lado, como o Banco do Brasil ressarciu os clientes que foram lesados pelo crime cometido, assumiu o papel de vítima, embora já reconhecida por meio da auditoria interna da instituição financeira. Ora, nos termos da LC n° 105, de 2001, que dispõe sobre o sigilo das atividades bancárias, exclui a circunstância de quebra de sigilo, com relação ao fornecimento de informações nesses termos.
Daí o resultado cristalino do voto-vista do ministro Sebastião Reis Júnior, concluindo que, "Definido esse contexto, a preservação do sigilo bancário não pode servir de acobertamento da prática de crimes no interior da instituição financeira, mostrando-se imprescindível o acesso às informações até para constatação dos fatos apurados pela instituição financeira”.
V – CONDENAÇÃO DO BANCO POR QUEBRA DE SIGILO
Para se ilustrar a hipótese da quebra de sigilo bancário, por parte da instituição financeira, vale objetar o exemplo da condenação do Banco de Brasília S/A (BRB), em favor de um cliente, que teve acesso de seus dados pela sua companheira, descobrindo suposta infidelidade conjugal. Assim sendo, no âmbito da 1ª instância, o Juiz da 8ª Vara da Fazenda Pública do Distrito Federal condenou o banco a pagar R$ 30 mil reais por danos morais ao cliente correntista, no julgamento do Processo nº 20120110085648, cujo valor foi mantido, em grau de recurso pela 2ª Turma do TJDFT.
Segundo o Autor da demanda narrou que sua companheira, por meio de uma funcionária do banco, teve acesso a seus extratos bancários e descobriu a presença de despesas duvidosas quanto à sua fidelidade conjugal e posteriormente o casal se separou, causando-lhe forte depressão, inclusive a necessidade da utilização de medicação controlada, afirmando que, “Toda a paz e tranquilidade que gozava antes dos fatos foi arruinada por um ato infeliz e irresponsável por parte do banco, por meio de seus funcionários”.
No âmbito administrativo, os substratos fáticos foram comprovados, mediante uma auditoria interna, após o cliente haver reclamado junto ao Serviço de Atendimento ao Cliente (SAC). Na ocasião, o banco ofereceu a comunicação seguinte: “Identificamos acesso não autorizado a sua conta. A funcionária identificada foi demitida, não exercendo mais qualquer atividade nesta instituição financeira. Pedimos desculpas pelo ocorrido, pois sempre zelamos pela segurança e sigilo das informações bancárias de todos os nossos clientes”.
Diante da precitada comunicação, o autor não satisfeito, ingressou com uma ação de indenização, pedindo o valor de R$ 500 mil reais pelos danos morais sofridos.
Em sua contestação, a instituição financeira, em sua defesa apontou o comportamento “desleal” do autor, por meios de suas idas para a cidade de Goiânia, por qualquer motivação e sem informar a sua companheira, motivando o rompimento do seu relacionamento conjugal, e não a quebra do sigilo bancário.
Destarte, o Juízo da 8ª Vara da Fazenda Pública do DF julgou procedente o pedido indenizatório, nos termos seguintes: “Classificar a atitude do autor para com sua companheira como temerária de forma alguma elide a responsabilidade do banco, tendo em vista que o único ato que não deveria ter sido praticado, vez que vedado constitucional e infraconstitucionalmente, justamente porque fere o direito à privacidade de seus titulares, foi a quebra do sigilo bancário do autor por funcionário do réu”. (Grifei).
Repisa, no ensejo, os termos da contestação apresentada pelo banco, recorrendo à 2ª instância do Tribunal, propinando pela improcedência da ação, mas repisando os mesmos argumentos pretéritos. Contudo, os desembargadores do 2º Grau, por unanimidade, mantiveram o mesmo entendimento do Juízo de 1ª instância, nos termos seguintes: “A violação do sigilo bancário constitui ato ilícito que, por si só, é apto a ofender o direito à privacidade e à inviolabilidade de dados, garantidos pela Constituição Federal. Não é só. A Lei Complementar n. 105/2001, em seu art. 1º, reza que as instituições financeiras conservaram o sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados. Nesse passo, a quebra do sigilo bancário do autor constitui de forma inequívoca falha na prestação do serviço bancário passível de reparação. O dano moral é evidente”. (Grifos nossos).
VI – ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA E A QUEBRA DE SIGILO
Circunstâncias simílimas envolvem também o trato da criminalidade organizada, no pertinente a quebra do sigilo bancário. É sabido que a origem da definição de organização criminosa foi apontada pela Convenção de Palermo, com o intuito de prevenir e combater a criminalidade organizada transnacional, por intermédio do Decreto Legislativo nº 231, de 2003 e promulgada por meio do Decreto Legislativo nº 5.015, de 2004, cujo artigo 2º define a tipificação do grupo criminoso organizado, infra:
“Art. 2º. Para efeitos da presente Convenção, entende-se por:
“a) ‘Grupo criminoso organizado’ - grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material”. (Grifei).
No entanto, observa-se que a definição apontada pela Convenção colidiu contra o princípio da legalidade, concluindo pela ocorrência da atipicidade de conduta, com base na disposição legal da precitada legislação, redundando com a manifestação do STF contrária a aludida omissão legal pela irregularidade não suprida.
Em decorrência dessa lacuna de tipificação legal, exsurge a Lei nº 12.694, de 2012, estabelecendo em seu artigo 2º o conceito do crime organizado, abaixo:
“Art. 2º. Para os efeitos desta Lei, considera-se organização criminosa a associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional”. (Grifei).
Contudo, vislumbra-se que o precitado diploma legal revogou, expressamente, no seu artigo 26, a Lei nº 9.034, de 1995, instituída para combater às organizações criminosas e, ao mesmo tempo, revogou tacitamente o conceito de organização criminosa, previsto no artigo 2º da Lei nº 12.694, de 2012, impondo-lhe nova definição no artigo 1º, § 1º, infra:
“Art. 1º. Esta Lei define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal a ser aplicado”.
“§ 1º Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional”. (Grifos nossos).
Destarte, vislumbrando-se a definição de organização criminosa, chega-se ao somatório dos principais elementos, tais como:
1 – Associação de 4 ou mais pessoas.
2 – Estrutura ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informal.
3 – Objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza.
4 – A prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional.
Nesse contexto, buscar-se-á compilar a opinião doutrinária dos Cadernos Jurídicos – SP – ano 17 – nº 44, de julho/setembro/2016, noticiando que juristas e sociólogos se reuniram na busca de definições conceituais, com precisão em torno do tema organização criminosa, considerando tratar-se de um “ato atentatório a bem jurídico protegido e à busca de convivência harmônica, com igualdade de oportunidades e mesma forma de punição de atos ilícitos, independentemente de status social, com vistas, inclusive, a ajustar o crime organizado como atividade deletéria ao desenvolvimento econômico e social. Assim, estabelecido o conceito de organização criminosa e atendido ao princípio da legalidade, restou ampliada a possibilidade de desenvolvimento de meios de repressão e investigação, inclusive com mitigação de direitos fundamentais, se em valoração de direitos relevantes à paz social”.
De efeito, vislumbra-se as observações oferecidas por Ada Pellegrini Grinover, em torno do tema, dizendo estar a justificar a necessidade de ações firmes no enfrentamento do crime: “É grave a situação do crime organizado no Brasil, sobretudo no que diz respeito ao narcotráfico, a indústria dos sequestros, a exploração de menores e aos denominados ‘crimes de colarinho branco’, com evidentes conexões internacionais, principalmente no que tange ao primeiro, que também envolve, como último, a ‘lavagem de dinheiro’. A polícia está completamente desarmada em face do poderio das organizações criminosas e o Ministério Público não dispõe de meios operacionais suficientes para fazer face ao fenômeno de maneira global e eficaz. Problemas de corrupção na polícia e na atuação de ex-policiais tornam o quadro ainda mais dramático”.
VII - A QUEBRA DO SIGILO BANCÁRIO E A LEI Nº 12.850/2013
Aqui o dispositivo da Lei nº 12.850, de 2013, cogita da tendência restritiva de direitos pela quebra do sigilo bancário, onde no seu artigo 3º, dispõe dos meios de investigação atinente ao crime organizado, dentre os quais estão previstos os seguintes:
“Art. 3º. Em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção da prova”:
“IV - acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a informações eleitorais ou comerciais”.
Na mesma inteligência a disposição da Lei nº 9.613, de 1998, que trata da lavagem de dinheiro, enquanto que a Lei Complementar nº 105, de 2015, dispõe sobre a quebra de sigilo bancário, cujo artigo 1º, § 4º, reza que a quebra de sigilo poderá ser decretada, quando se fizer necessária para apurar ocorrência da prática de qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito policial ou mesmo do processo judicial, e especialmente nos seguintes crimes:
“Art. 1º. As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados”.
“§ 4º. A quebra de sigilo poderá ser decretada, quando necessária para apuração de ocorrência de qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou do processo judicial, e especialmente nos seguintes crimes”:
“(...)”.
“IX – praticado por organização criminosa”.
O aspecto fático posto em destaque leva ter em vista, desde logo, sobre a coexistência de grandes organizações criminosas em todos os palcos da sociedade e porque não dizer que há uma realidade globalizada, acompanhada por um rápido desenvolvimento tecnológico, dos meios de transportes, dos processamentos de dados, além da facilidade de circulação de bens e pessoas, trazendo em consequência o grande desenvolvimento do inter criminis no âmbito das organizações criminosas, onde tem-se observado o crescimento de desenvolvimento sofisticado e modernizado por meio de recursos superiores aos dos policiais responsáveis pelas as apurações desse tipo de crime. Sob tal enfoque, exsurge a Lei nº 12.694, de 2012, que admitiu o alargamento possível dos métodos de investigação, com a aplicação do princípio de tendência restritiva de direitos na quebra do sigilo bancário, mesmo que constitua direito fundamental inserido pela CF/88, em delitos praticados por organizações criminosas, devendo haver uma equilíbrio entre a privacidade e a publicidade, em respeito ao Estado Democrático de Direito com tutela das liberdades públicas e individuais, inclusive com interdependência entre os variados direitos previstos pelo sistema de normas.
VIII – REQUISIÇÃO DE DADOS PELO MP SEM AUTORIZAÇÃO
Na data de 11/02/2022, a Terceira Seção do STJ, por unanimidade, decidiu que é ilegal a requisição de dados fiscais efetuada diretamente pelo Ministério Público, sem autorização judicial.
Em consequência desse entendimento, o colegiado deu provimento a dois recursos, em habeas corpus, nos quais a defesa dos acusados alegou constrangimento ilegal, em face da obtenção direta de seus dados fiscais, por meio de solicitação do MP diretamente à Receita Federal.
Contudo, de conformidade com o relator dos recursos, ministro Sebastião Reis Júnior, a orientação vem do STF, firmada no Tema 990: “Possibilidade de compartimento com o Ministério Público, para fins penais, dos dados bancários e fiscais do contribuinte, obtidos pela Receita Federal no legítimo exercício de seu dever de fiscalizar, sem autorização prévia do Poder Judiciário”.
Em outras palavras, o Tema 990 permite que a Receita Federal envie ao MP dados fiscais quando houver suspeita da prática de crime, porém não possibilita ao MP requisitar esses mesmos dados em autorização judicial.
Ademais disso, há repercussão com base no julgamento do RE nº 1055941, sob a relatoria do ministro Dias Toffoli, que trata da matéria ora comentada, de acordo com a Descrição e Tese compiladas, infra:
Descrição:
Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos arts. 5º, incs. X e XII, 145, § 1º, e 129, inc. VI, da Constituição da República, a possibilidade de compartilhamento com o Ministério Público, para fins penais, dos dados bancários e fiscais do contribuinte, obtidos pela Receita Federal no legítimo exercício de seu dever de fiscalizar, sem autorização prévia do Poder Judiciário.
Tese:
1. É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil, que define o lançamento do tributo, com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional. 2. O compartilhamento pela UIF e pela RFB, referente ao item anterior, deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios.
Em suma, de acordo com o precedente do STF, há constitucionalidade o compartilhamento de relatórios de inteligência financeira e de procedimentos fiscalizatórios da Receita Federal com órgãos de persecução penal para fins penais, sem prévia autorização da Justiça.
No procedimento precitado, o ministro Rogério Schietti Cruz, proferiu voto divergente e foi acompanhado por outros dois membros do colegiado, e na oportunidade afirmou que, no encaminhamento de dados da Receita para o MP, não há quebra de sigilo, mas transferência de sigilo fiscal, enquanto que o MPF defendeu o não provimento dos recursos.
No pertinente ao caso dos autos, os acusados foram denunciados pela prática dos crimes de estelionato majorado, falsidade ideológica e uso de documento falso. Na oportunidade o MPF requereu diretamente a Receita Federal as declarações de imposto de renda dos investigados, de seus familiares e de empresas suspeitas, sem determinação judicial. Porém, posteriormente, a documentação foi juntada ao processo, com autorização judicial.
Em seguida, o Tribunal de origem negou a exclusão dessas informações dos autos, requerida pelas defesas dos investigados, através do recurso de habeas corpus, onde alegaram ter havido quebra de sigilo fiscal. Aliás, segundo o Tribunal, o aumento da corrupção e da criminalidade em geral, recomenda que os órgãos de investigação sejam fortalecidos.
No entendimento do ministro, Sebastião Reis Júnior, o exame do julgamento do RE 1.055.941-STF admite concluir que o debate originou à definição do Tema 990, que discorreu em torno das normas que tratam da representação fiscal para fins penais, previstas no artigo 198 do CTN, no artigo 83 da Lei nº 9.430/1996 e no artigo 1º, § 3º, da Lei Complementar nº 105/2001.