O princípio constitucional da igualdade, consagrado no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, impõe que a lei penal deva ser aplicada de maneira uniforme a todos os indivíduos, sem distinção de raça, classe social ou fama. No entanto, a realidade mostra que essa igualdade formal nem sempre se traduz em igualdade material. O sistema de justiça penal brasileiro, apesar de suas aspirações igualitárias, revela-se profundamente seletivo e marcado por disparidades que beneficiam as classes mais privilegiadas. O caso da recente prisão do cantor Gusttavo Lima levanta questões que exemplificam essa seletividade e expõem a diferença de tratamento judicial entre figuras públicas e a população carcerária mais vulnerável.
A lei penal deveria ser construída e aplicada de forma isonômica, respeitando o princípio democrático da igualdade. No entanto, o distanciamento dessas premissas origina um Direito Penal seletivo, que atua não só como um instrumento de controle social, mas também como um mecanismo de manutenção de privilégios de parcelas específicas da sociedade. A aplicação desigual da lei penal acaba gerando uma série de externalidades negativas, incluindo a "cultura do medo" e o estigma que recai sobre determinados grupos sociais, principalmente a população negra e de baixa renda.
Estudos recentes promovidos pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro revelam que aproximadamente 80% dos presos em flagrante no estado são negros ou pardos1. Além disso, a população carcerária brasileira é composta majoritariamente por indivíduos de baixo nível socioeconômico, com 63,6% sendo negros ou pardos. Esses dados demonstram de maneira empírica a existência de um Direito Penal que não é neutro, mas seletivo e estigmatizante. Essa seletividade não se restringe à fase de aplicação das penas, mas permeia toda a cadeia de formação e execução da justiça penal, desde a elaboração das leis até sua implementação nos tribunais.
O caso Gusttavo Lima, apesar de não estar diretamente relacionado a crimes violentos ou a situações de marginalidade social, ganha relevância por ilustrar um fenômeno conhecido como "justiça de dois pesos e duas medidas". Figuras públicas, como celebridades e políticos, frequentemente recebem tratamento diferenciado quando enfrentam processos criminais. No caso de Gusttavo Lima, a ampla cobertura midiática, somada à rapidez com que o processo avançou, contrasta drasticamente com a morosidade que caracteriza o tratamento dispensado à maioria dos réus comuns, especialmente aqueles pertencentes a classes sociais mais baixas.
A relação entre direito penal e desigualdades sociais, como bem destacaram Rusche e Kirchheimer em suas análises históricas, não é um fenômeno novo. Desde a Baixa Idade Média, a legislação penal tem sido aplicada de maneira desigual, atingindo de forma desproporcional os estratos sociais subalternos2. Na época dos Estados Absolutistas, o poder punitivo era utilizado de forma arbitrária, e mesmo o advento das ideias iluministas não conseguiu implementar uma igualdade material dentro do sistema de justiça penal. No Brasil contemporâneo, essa realidade persiste, como podemos observar tanto nas estatísticas carcerárias quanto em casos midiáticos envolvendo personalidades conhecidas.
A criminologia crítica, que ganhou força na década de 1960, fez importantes avanços ao analisar o papel das instâncias formais de controle social como fatores criminógenos. Uma de suas principais contribuições foi a teoria do "labelling approach", que apontou como os processos de estigmatização podem reforçar desigualdades sociais e perpetuar a exclusão3. Nesse contexto, o tratamento diferenciado dado a celebridades como Gusttavo Lima pode ser visto como uma forma de reforçar os privilégios já existentes, enquanto o sistema penal segue sendo uma ferramenta de opressão para as classes menos favorecidas.
O conceito de crimes de "colarinho branco" (white-collar crimes), introduzido por Edwin Sutherland em 1939, buscou evidenciar a criminalidade das elites e mostrar que, até então, as teorias criminais existentes eram incapazes de explicar adequadamente os crimes cometidos por poderosos4. No entanto, mesmo com a criação de dispositivos legais para punir crimes financeiros e corrupção, a realidade mostra que a aplicação das penas é muito mais branda para os criminosos de elite do que para os criminosos comuns. O caso Gusttavo Lima, embora não envolva crimes de corrupção, ilustra essa disparidade na aplicação da justiça.
As estatísticas oficiais mostram uma discrepância alarmante entre a forma como ricos e pobres são tratados pelo sistema de justiça criminal. Enquanto a legislação prevê penas severas para uma variedade de crimes, a aplicação efetiva dessas penas varia significativamente de acordo com o status social do réu. Casos envolvendo celebridades e figuras públicas, como o de Gusttavo Lima, muitas vezes ganham atenção desproporcional da mídia e são tratados com celeridade pelos tribunais. Isso contrasta fortemente com a situação dos réus comuns, especialmente aqueles que pertencem a grupos marginalizados e têm acesso limitado a recursos jurídicos adequados.
Essa disparidade no tratamento judicial reflete um problema estrutural que tem suas raízes na organização socioeconômica do país. A criminalização das camadas mais pobres da população brasileira é uma consequência direta das desigualdades econômicas e sociais que caracterizam a sociedade. O sistema penal brasileiro, ao invés de ser um instrumento de justiça, muitas vezes atua como um mecanismo de controle social e de manutenção do status quo. A prisão de Gusttavo Lima, embora não seja um caso isolado, expõe as contradições de um sistema que é rápido em punir os pobres, mas vacilante quando se trata de aplicar a lei de maneira rigorosa a indivíduos de maior visibilidade.
Ainda que o Brasil tenha avançado na criação de leis que visam punir crimes cometidos por pessoas de alto escalão, como a Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), a aplicação prática dessas leis continua a ser desigual. O fato de que figuras públicas recebem maior atenção e têm acesso a advogados renomados é apenas um dos aspectos dessa desigualdade. Além disso, a própria forma como a mídia cobre esses casos influencia a opinião pública e, muitas vezes, contribui para a construção de narrativas que favorecem os réus mais privilegiados.
A criminologia radical, de orientação marxista, foi uma das escolas que mais profundamente investigou a relação entre criminalidade e desigualdade social. Para os criminólogos radicais, o crime é uma manifestação das contradições inerentes ao sistema capitalista, e o sistema penal é utilizado como uma ferramenta para reforçar as desigualdades existentes5. No contexto brasileiro, essa análise ajuda a entender por que casos como o de Gusttavo Lima recebem um tratamento diferenciado, enquanto a população carcerária é composta majoritariamente por indivíduos de baixa renda e pouca escolaridade.
A questão central aqui não é apenas a diferença de tratamento, mas o fato de que essa seletividade penal contribui para a perpetuação de um ciclo de exclusão social. A prisão, que deveria ser um instrumento de reabilitação e reintegração social, acaba se tornando uma ferramenta de estigmatização e marginalização. Os dados que mostram que mais de 50% da população carcerária brasileira não completou o ensino fundamental são um reflexo direto dessa realidade. Enquanto isso, indivíduos como Gusttavo Lima, com acesso a uma educação de qualidade e a recursos jurídicos, conseguem enfrentar o sistema judicial com muito mais vantagens.
A seletividade da justiça penal brasileira é um problema que vai além de casos isolados. Ela reflete uma estrutura de poder que utiliza o sistema punitivo para controlar as camadas mais vulneráveis da sociedade. No caso de Gusttavo Lima, embora a lei tenha sido aplicada, o tratamento diferenciado que ele recebeu ao longo do processo judicial ilustra as falhas de um sistema que deveria ser igual para todos, mas que na prática privilegia os mais poderosos.
Portanto, o caso do cantor é mais um exemplo de como a justiça penal no Brasil não é aplicada de maneira uniforme. Ele evidencia a necessidade urgente de uma reforma no sistema judicial, que deve buscar não apenas a punição, mas também a garantia de que todos os indivíduos, independentemente de sua posição social, sejam tratados de maneira justa e equitativa. Somente através de uma justiça verdadeiramente igualitária será possível superar as desigualdades que têm marcado a história do Brasil.
Referências
1 Dados da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, 2020.
2 Rusche, G., Kirchheimer, O. "Punishment and Social Structure", Columbia University Press, 1939.
3 Becker, H. S. "Outsiders: Studies in the Sociology of Deviance", Free Press, 1963.
4 Sutherland, E. H. "White Collar Crime", Dryden Press, 1949.
5 Quinney, R. "Class, State, and Crime", Longman, 1977.