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Uma análise do estado da arte da pesquisa jurídica no brasil sob a perspectiva do problema epistemológico em se considerar o direito como uma ciência

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RESUMO

Geralmente os estudantes de Direito na Graduação têm sido excluídos de processos de iniciação científica em detrimento da suposição de que a carreira de pesquisador só é possível a partir da entrada em um Curso de Mestrado na mesma disciplina. Face a isso, mesmo para alguém que se proponha fazer artigos por conta própria, são escassas as informações sobre como fazer pesquisa em Direito, e qual é a realidade brasileira, mesmo a despeito das disciplinas curriculares homônimas e da informação existente em manuais de metodologia científica. Para isso, faz-se necessário entender a realidade da pesquisa jurídica no Brasil, e se faz isso considerando os artigos científicos como fonte de comunicação ágil, onde o debate a respeito de um tema extrajurídico pode fluir com melhores resultados. Decidiu-se enfocar no problema epistemológico ou no debate sobre a consideração do Direito como uma Ciência por ele suscitar a maior circulação de ideias, e maior número de propostas de intervenção pelos autores analisados. São conclusões possíveis a incapacidade dos autores de sustentar uma proposta autônoma de metodologia científica; uma grande dependência de fontes estrangeiras para justificar problemas locais; a interdição à expressão da experiência dos próprios docentes com a prática da pesquisa científica e com aqueles que tentam, a partir de outras disciplinas, diagnosticar o processo de estagnação da produção científica no Direito brasileiro. 

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO; 2. PROCEDIMENTO DE SISTEMATIZAÇÃO DOS DADOS A PARTIR DAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APRESENTADAS PELOS AUTORES ANALISADOS; 3. O PROCESSO DE “MOVER MONTANHAS” OU TENTATIVAS DE DIAGNOSTICAR A CRISE DA PESQUISA JURÍDICA NO BRASIL; 3.1. CRÍTICAS AO PARADIGMA JUSPOSITIVISTA EM NOME DE HANS KELSEN; 3.2. VÁRIOS CONCEITOS DE DIREITO, PORÉM SOMENTE “UMA” TEORIA; 3.3 PERSPECTIVAS ADVINDAS DA EXPERIÊNCIA DOS DOCENTES COM A PESQUISA DE SEUS ALUNOS E INTERDIÇÕES À CRÍTICA EXTERNA DO DIREITO; 4. O DIREITO TEM RESPOSTAS PARA A CRISE DA PESQUISA JURÍDICA? 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 


INTRODUÇÃO 

Nos últimos anos tem se difundido no ambiente acadêmico da Graduação em Direito uma ideia de que só é possível a um estudante começar uma carreira acadêmica a partir da sua inscrição em um programa de Mestrado. Apesar de a Constituição Federal de 1988, o Lei de Diretrizes e Bases da Educação e as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Direito, propugnarem pela indissociabilidade do Ensino, Pesquisa e Extensão, e preverem a formação científica dos graduandos2, está cada vez mais difícil dar os primeiros passos mesmo que de forma autônoma, sem depender das Instituições de Ensino Superior ou do Estado. Esse contexto se dá seja pelos motivos habituais de falta de infraestrutura e investimento, consequências de um interesse cada vez menor das Instituições de Ensino Superior em promover a iniciação científica, promovendo tão somente o preenchimento dos requisitos burocráticos a partir de uma disciplina de “Introdução à Metodologia Científica” que menos instrui sobre o processo do pesquisar e mais sobre à adequação ao regulamento da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), e por outro lado, só legitima o processo de produção científica a partir do Projeto de Monografia, disciplina de final de curso e pré-requisito para a sua conclusão.  

Diante disso, um pesquisador autônomo tem a dificuldade de saber qual é a realidade da produção científica no Brasil e como se desenvolver dentro desta. Ele questiona o que é possível saber sobre como fazer pesquisa, quais são as dificuldades, os potenciais e os limites, e dentre as diferentes respostas apresentadas, se debruça com a problematização em saber se o Direito é uma Ciência de fato, uma discussão que segundo muitos docentes seria superior ao nível médio dos estudantes candidatos a Bacharel, mas que se tem como uma das dificuldades prementes de se fazer pesquisa jurídica no Brasil. Ouvir e analisar o que tem se falado entre os debatedores da disciplina no país é o objetivo principal deste artigo.  

Sua metodologia se inspira no modelo da análise de conteúdo3 adaptado para investigar as referências bibliográficas após uma leitura in loco das referências encontradas, utilizando-se da técnica de pesquisa bibliográfica sob o ponto de vista da análise qualitativa. Diante da necessidade de uma comunicação ágil e frutífera, demarca-se como fontes os artigos científicos, em sua quase totalidade produzidos por Mestres e Doutores em Direito ou em outras Ciências Humanas, para que possa haver um maior rendimento no que se refere à respostas, tendo em vista se tratar de um problema extrajurídico e do qual não necessita se aprofundar em teorias ou sistemas de pensamento de autores clássicos, embora faça parte do processo analisar o que estes autores citados pelos bibliografados tem a contribuir para a resolução do problema em pauta. 

Após esta introdução, a segunda seção se detalha o procedimento de sistematização dos dados obtidos a partir do sistema de referência dos autores estudados, com o objetivo de dar transparência ao processo de análise após a leitura em loco, bem como demonstrar os resultados obtidos; a partir da terceira seção começa a se desenhar os caminhos percorridos pelos autores na tentativa de diagnosticar o problema da estagnação da pesquisa jurídica no Brasil, sob a perspectiva do problema epistemológico suscitado anteriormente; a primeira linha de análise se dá a respeito as críticas ao paradigma juspositivista em nome de um dos seus cânones fundamentais, o jurista austríaco Hans Kelsen, considerado o precursor fundamental do paradigma contemporâneo dentro da ciência jurídica; uma segunda linha aborda a percepção da filosofia do Direito de haverem vários conceitos possíveis de Direito, porém dentro de uma linha dogmática haveria somente “uma” Teoria do Direito a partir do que é ensinado nos cursos jurídicos; em último lugar vem as perspectivas da experiência docente com a prática da pesquisa jurídica e a interdição da crítica externa ao Direito na tentativa de diagnosticar um problema da própria comunidade jurídica. A quarta seção se destina a elencar as respostas oferecidas ao problema apresentado no artigo, bem como refletir sobre suas implicações na realidade jurídica. Termina com as considerações finais. 


2 PROCEDIMENTO DE SISTEMATIZAÇÃO DE DADOS A PARTIR DAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APRESENTADAS PELOS AUTORES ANALISADOS, APÓS UMA LEITURA IN LOCO DOS ARTIGOS ENCONTRADOS 

Mesmo em um contexto onde não se compreende totalmente como funcionam os métodos científicos e a melhor maneira de aplicá-los, faz-se necessário designar um capítulo específico para descrever o processo de análise que se seguiu após o período de leituras in loco. Isso porque o procedimento adotado não seguiu as prescrições de um manual ou orientações de um pesquisador mais experimentado, ao invés disso inspira-se na técnica de análise de conteúdo para produzir informações sobre um campo específico dos artigos analisados: as referências bibliográficas. 

O procedimento adotado inspira-se numa análise de conteúdo por trabalhar com a análise e sistematização de dados. Isso significa que, dentro de um processo manual, foram anotados todos os autores citados nas referências, e havendo o caso de algum autor ser citado mais de uma vez, essa ocorrência seria imediatamente registrada. Cabe ressalvar que, diante de uma coleta anterior de artigos científicos no ambiente virtual, se buscaram todos aqueles relacionados com o assunto “pesquisa jurídica no Brasil”, utilizando-se dos filtros das plataformas para obter apenas resultados que estivessem em língua portuguesa, portanto, que dissessem respeito à realidade brasileira. 

Valendo-se da coleta de artigos científicos nas plataformas virtuais, obtiveram-se cerca de 48 artigos científicos relativos ao assunto buscado, dois dos quais foram descartados por se tratarem de artigos escritos em língua inglesa, decorrentes também da busca de referências nos próprios artigos que também pudessem esclarecer sobre o assunto. Após o processo de leitura intensiva, cerca de 22 artigos também foram descartados seja por buscarem objetivos diversos à linha de análise pretendida por este artigo, seja por incipiência das fontes ou do desenvolvimento do texto. Tais ocorrências podem ser sumariamente descritas levando-se em conta abordagens que tentaram salientar como motivos para a estagnação da pesquisa jurídica no Brasil a falta de estrutura ou a falta de investimento, mais do que nas Instituições de Ensino Superior, nos Programas de Pós-Graduação existentes para a disciplina jurídica. 

Além disso, foram também descartados outros dois artigos, por demarcarem suas pretensões quase completamente no âmbito da pesquisa empírica em Direito, a qual também não corresponde ao nosso recorte enquanto referir-se ao problema epistemológico em se considerar o Direito como uma Ciência. Importante ressalvar que o descarte dos artigos que versavam tanto sobre a falta de estrutura/investimento quanto sobre a necessidade de pesquisa empírica não invalida as respostas produzidas pelos autores destes artigos como possíveis diagnósticos da crise da pesquisa jurídica no Brasil. 

Portanto, restaram 22 artigos que, de algum modo, alcançaram as pretensões apresentadas. Uma observação preliminar permite dizer que esse universo de artigos selecionados contém posições muito distintas de análise, por mais que não sejam todas díspares entre si, e é justamente essas divisões que são importantes de se destacar, porque revela o dissenso existente entre os próprios membros da comunidade jurídica a respeito da problemática apresentada. Em sua totalidade, os artigos foram publicados por Mestres ou Doutores em Direito ou em Ciências Humanas, não tendo sido encontrado artigos provindos de estudantes da Graduação enquanto a coleta fora feita. 

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Dos 22 artigos analisados, contabilizaram 401 autores citados nas referências bibliográficas, com pequena margem de erro tendo em vista que alguns poderiam ser citados mais de uma vez tendo feito parcerias com outros autores. Esse fato não descaracteriza a contagem, visto que quem trabalha em parcerias para escrever artigos acadêmicos não trabalha da mesma forma de quem trabalha sozinho, independente do grau de reconhecimento que este autor tenha na própria comunidade jurídica. Assim sendo, o propósito desta contabilidade foi encontrar a frequência dos autores mais citados, e as observações que se seguem nas seções seguintes complementam os resultados desta análise. 

Foram colhidos os seguintes resultados demonstrados em tabela: 

Autor  

Frequência de citação 

Karl Popper 

10 citações 

Thomas Kuhn 

8 citações 

Boaventura de Sousa Santos 

8 citações 

Tércio Sampaio Ferraz Júnior 

6 citações 

Francis Bacon 

4 citações 

René Descartes 

4 citações 

Paul Feyerabend 

4 citações 

Eduardo Carlos Bianca Bittar 

4 citações 

Marcos Nobre 

4 citações 

Norberto Bobbio 

4 citações 

Hans Kelsen 

4 citações 

Jürgen Habermas 

3 citações 

Marcelo Neves 

3 citações 

Antônio Carlos Wolkmer 

3 citações 

Horácio Wanderlei Rodrigues 

3 citações 

A. F. Chalmers 

3 citações 

André Jean Arnaud 

3 citações 

José Eduardo Faria 

3 citações 

Alysson Leandro Mascaro 

3 citações 

Luciano Oliveira 

3 citações 

Luís Alberto Warat 

3 citações 

Niklas Luhmann 

3 citações 

 

Foram descartados deste universo autores com 2 citações, pois muitos daqueles que atingiram essa média poderiam ser uma referência apenas exemplificativa no desenvolvimento do processo científico dos pesquisadores, e não essenciais como forma de fundamentar o seu trabalho. É importante destacar que mesmo diante deste universo de autores, não era incomum que houvesse uma série de obras citadas do mesmo autor no mesmo artigo, muito porque, embora se supusesse que o assunto fosse a respeito da pesquisa jurídica no Brasil, estes pesquisadores utilizavam-se abordagens teóricas que muitas vezes privilegiavam o ponto de vista de quase um único autor. 

Importa destacar também que, do universo citado na tabela, 10 dos autores mais citados são brasileiros, mesmo não estando necessariamente entre aqueles de maior frequência, enquanto 13 são estrangeiros. Para as conclusões deste artigo esse dado é fundamental, pois revela que mesmo num problema de contexto local, cujo aporte não é teórico e podendo ser considerado extrajurídico, há uma dependência essencial de autores clássicos, não-jurídicos, muitas vezes para falar sobre métodos científicos pensados em contextos distintos da própria ciência jurídica, mesmo entre aqueles que a considerassem como tal. 

Levando-se em consideração as impressões colhidas das leituras em loco destes artigos, além do procedimento de sistematização de dados obtidos das referências bibliográficas dos artigos analisados, é possível desenhar algumas linhas de análise, a serem desdobradas na próxima seção: a necessidade dos autores de atacar a ciência jurídica através do paradigma juspositivista, hoje considerado dominante como forma de conhecer e aplicar o Direito, e sua figura mais proeminente, o jurista austríaco Hans Kelsen; a ideia presente entre Filósofos de Direito de que é possível haver mais de um conceito de Direito existente, a despeito de seus pares na Teoria do Direito, os quais, especialmente num contexto de Ensino Jurídico, ensinam esta como uma “teoria unitária” sem divisões ou divergências fundamentais de concepção; as abordagens partidas da experiência docente com a prática de pesquisa jurídica com seus estudantes e interdições a respeito de críticas externas ao Direito por alegações de que, supostamente, por estas críticas partirem de pesquisadores não-juristas, careciam pelo desconhecimento que possuíam do funcionamento do Direito. Tais considerações passarão a ser desdobradas na próxima seção. 


3 O PROCESSO DE “MOVER MONTANHAS” OU TENTATIVAS DE DIAGNOSTICAR A CRISE DA PESQUISA JURÍDICA NO BRASIL

Esta seção pretende demonstrar as tentativas dos pesquisadores de Direito e de outras Ciências Humanas em diagnosticar a crise da pesquisa jurídica no Brasil, no que se refere ao problema epistemológico de se considerar o Direito como uma Ciência ou não. O problema fundamental com o qual se depara o pesquisador de Direito é que ele não dispõe de métodos propriamente jurídicos para desenvolver sua pesquisa, necessitando se utilizar de métodos provenientes da Filosofia ou mesmo de outras Ciências Humanas para as quais ele não teve a formação nem o conhecimento necessário seja para aplicar os métodos na prática de pesquisa seja para fazer avançar o conhecimento jurídico do qual ele pretende alcançar.

Existem autores que ainda tratam de uma metodologia jurídica como Larenz, Castanheira Neves, e Piragibe da Fonseca, para quem a metodologia serve para melhor aplicar o Direito existente.4 Isso funciona num contexto de interpretação e aplicação das normas pertinente a prática jurídica cotidiana dos operadores do Direito, mas que não dialoga com a pesquisa científica no sentido de buscar conhecimento novo, ainda que este se dê sobre as normas. Piragibe da Fonseca ainda enfatiza essa divisão entre uma metodologia para pesquisa científica em Direito e uma pesquisa jurídica, pertinente à prática jurídica tradicional. 5

Neste sentido, percebe-se, pelo desenvolvimento dos relatórios estudados, que os acadêmicos de Direito são sim capazes de mobilizar muitos recursos teóricos para debater métodos6, chegando-se até ao extremo de dedicar o corpo de um artigo quase exclusivamente ao pensamento de um autor do qual faça o debate sobre um método específico, o qual este pesquisador julga ser o melhor para fazer avançar o estado da arte da pesquisa jurídica no Brasil.7 Contudo, há dificuldade de relacionar o conteúdo dos argumentos destes autores citados, especialmente aqueles ilustrados na tabela da seção 2, com a realidade jurídica, seja num sentido teórico, seja num sentido de aplicação dos métodos para fazer avançar a sua pesquisa. 

Mais do que isso há uma verdadeira tentativa de aplicar os argumentos utilizados em outro contexto, não necessariamente jurídico, por meio do instrumento da analogia, e o preço de uma má aplicação dessa linha de análise para muitos autores é o próprio artificialismo dos trabalhos. Se partirmos do princípio que existe um problema epistemológico que é peculiar do Direito brasileiro, em tese não faria muito sentido buscar respostas em autores de outros países, especialmente os países centrais, cujo desenvolvimento estaria em um grau mais avançado, pois provavelmente os problemas enfrentados pelos acadêmicos daqueles países não são os mesmos que os vivenciados pelos brasileiros. 

Com tudo isso, a discussão transcende necessariamente as fronteiras nacionais, pois o pensamento jurídico ocidental tem suas raízes na formação europeia e tudo aquilo que deriva do seu pensamento como a Teoria do Direito tem suas raízes ligadas aquela formação social. Então porque fazer essa discussão como se fosse um problema nacional? Talvez isso seja possível pela crença dos acadêmicos brasileiros de que eles podem também fazer a Ciência do Direito avançar ou que eles também podem fazer Teoria. Mas o que está faltando para tal desiderato ser alcançado? 

Existem algumas linhas de hipóteses a serem levantadas neste artigo, as quais se desdobrarão nas subseções seguintes, como: a necessidade de alguns pesquisadores atacarem o paradigma juspositivista, como escola que afirma ser o Direito uma Ciência, tendo como principal alvo o jurista austríaco Hans Kelsen. O problema do argumento destes autores reside fundamentalmente no fato de que existe todo um programa juspositivista que transcende as contribuições de Kelsen, antes e depois do seu legado influenciar a comunidade jurídica, e por mais que estas contribuições fossem determinantes para a conformação da Ciência Jurídica que veio a seguir, seja na forma como ela é ensinada e conhecida, seja pela forma como é aplicada por acadêmicos e operadores do Direito. Muitos autores contribuíram para a concepção desta Ciência do Direito, e muitas vezes essa diversidade não é aprofundada, o que dialoga com a discussão da subseção seguinte. 

Nesta segunda subseção, procura-se demonstrar que embora se possa falar na Filosofia do Direito de diversos conceitos de Direito, existe através da abordagem que é ensinada e difundida na perspectiva dogmática de uma Teoria do Direito uma concepção unitária cuja topografia da disciplina é uniformemente representada em uma série de manuais a seu respeito. Como ensinar e conhecer um Direito que não tenha uma representação unitária, fixa, a qual possa dialogar com outros ramos e este influenciar. Ao mesmo tempo há dificuldades naturais em se trabalhar com perspectivas divergentes sobre a disciplina jurídica, sob pena de inviabilizar o fim dogmático de trabalhar com o não questionamento dos pontos de partida, a saber, a norma e as regras sociais de sua interpretação, para que se favoreça o trabalho decisório daquele que aplica o Direito na sua prática cotidiana. 

Na terceira e última subseção se aborda tentativas dos pesquisadores nas quais seus posicionamentos em relação a estagnação da pesquisa jurídica no Brasil vêm da sua própria experiência docente, e é interessante porque mesmo a concretude de suas respostas, leva muitos outros pesquisadores a se tornarem repetidores por meio da citação acadêmica do discurso destes docentes. Por outro lado, havendo uma certa inoperância da própria comunidade jurídica em responder adequadamente a essa crise, critica-se a tentativa de outros pesquisadores das Ciências Humanas de tentar efetivamente solver o problema com seus próprios instrumentos, classificando-os como “Crítica Externa ao Direito” cuja principal deficiência está no desconhecimento do funcionamento interno do próprio Direito. 

As perguntas que precisam ser refletidas ao longo destas subseções se radicam nos seguintes tópicos: a comunidade jurídica tem capacidade de criticar a si mesma, a ponto de diagnosticar os problemas para o avanço da pesquisa científica em Direito e efetivamente tomar providências ou criar mecanismos para solucioná-los? Ela precisa da contribuição das outras disciplinas humanísticas ou ela consegue responder a essas preocupações com o seu próprio arsenal dogmático? Responder as essas perguntas será o propósito do texto que se segue. 

3.1 CRÍTICAS AO PARADIGMA JUSPOSITIVISTA EM NOME DE HANS KELSEN 

Entre as 22 referências analisadas no escopo deste artigo, existem 5 que trabalham com uma linha de análise cujas semelhanças são diversas seja no plano ideológico, seja nas teorias abordadas, seja nas estratégias argumentativas.8 Esta linha de análise considera o positivismo jurídico como paradigma a ser superado dada as limitações que esta própria escola se impôs ao desconsiderar fatores sociais, econômicos, políticos, morais da análise do Direito. Neste sentido, coloca-se o jurista austríaco Hans Kelsen como principal expoente deste tipo de pensamento. 

Para compreender essa linha de análise, procurou-se enfocar no que estava sendo dito sobre o juspositivismo e sobre Kelsen no corpus dos artigos elencados. A partir da delimitação do que estava sendo dito sobre este tópico e de sua localização no texto científico, começa-se a analisar o resumo, a introdução, o tópico específico e as considerações finais, a fim de esclarecer o trajeto argumentativo dos pesquisadores. 

Do ponto de vista ideológico, e isso se pode ver a partir das referências elencadas pelos pesquisadores, há uma semelhança muito clara em partir da perspectiva marxista de análise, a qual pode se desdobrar no Brasil com variantes críticas dentro do Direito como a Teoria Crítica, o Direito Achado na Rua, o Pluralismo Jurídico etc9. Apesar de o Marxismo enquanto escola de pensamento iniciada enquanto Materialismo Científico não ter se debruçado especificamente sobre a disciplina jurídica, historicamente acadêmicos não só brasileiros, como também do mundo inteiro tentam transpor ideias que se originam como crítica da economia política e mesmo da sociedade, para dentro do Direito. 

Em um dos artigos analisados, se pode ver uma tentativa mais autônoma de pensar o Direito a partir dos cânones marxistas, hoje no Brasil encabeçada por juristas como Alysson Leandro Mascaro e Silvio de Almeida, por exemplo. Estes partiram da abordagem soviética do também jurista Evgueni Paschukanis10, podendo ser citado como autor com perspectiva semelhante Petr Stutchka11, também com a contribuição brasileira de Márcio Bilharinho Naves.12

Se o grande risco das abordagens marxistas/críticas que tentam criticar o juspositivismo é justamente o artificialismo de procurar transpor as ideias de uma crítica as estruturas econômicas e sociais para se fazer uma crítica jurídica, o risco da chave mais autônoma é o de não gerar consenso seja no ambiente acadêmico, seja no ambiente jurídico de que a sua perspectiva é melhor para a superação do paradigma positivista. Evidentemente transcende ao escopo deste artigo fazer uma análise desta perspectiva e do pensamento dos seus autores, contudo não se pode ignorar, por fatores inclusive político-ideológicos, que esta linha de pensamento sempre fora habitualmente marginalizada pelo mainstream jurídico, embora possa ser considerada uma opção dentro do mercado de ideias existente no país, 

Do ponto de vista teórico, o juspositivismo cuja joia da coroa se constitui a partir do pensamento de Hans Kelsen é colocado do ponto de vista destes artigos como um paradigma a ser superado e o faz isso a partir da própria teoria de Thomas Kuhn, um dos autores mais citados dentre o conjunto de artigos analisados. A grande dificuldade dos pesquisadores é que, embora tenham dado um tratamento qualificado à perspectiva de Kuhn não conseguem desdobrar essa análise para dentro da realidade jurídica, seja a nível teórico, seja a nível relacional entre os agentes da comunidade do Direito. 

Neste caso, o jurista austríaco normalmente é citado por ter proposto uma Ciência do Direito que fosse pura, isto é, livre dos juízos de valor do seu intérprete, cientista do Direito, conferindo neutralidade quanto ao objeto manejado, e livre de considerações políticas, sociais econômicas e morais, dentre outros.13 Ocorre que por mais que na sua obra Kelsen tenha tentado projetar essa perspectiva descrita nas páginas iniciais de sua Teoria Pura do Direito sobre toda a sua obra, nem mesmo o próprio autor chega a entrar em pormenores do que seria essa ciência neutra e livre de considerações externas ao objeto jurídico. Isso pode se dar seja por questões pessoais da vida do autor, seja por interesse acadêmico, ou se isto for mais provável, que sua abordagem estivesse subentendida nas obras deixadas em seu legado.

Tampouco os pesquisadores conseguem elaborar uma análise mais aprofundada e detalhada sobre a obra kelseniana, embora sempre o destaquem como o maior expoente do juspositivismo. Uma das questões que se abre observando estes artigos seria como Kelsen molda a nossa atual compreensão do Direito, fator figurável em outra abordagem. 

Diante disso, embora existam estratégias semelhantes de colocar o juspositivismo e seu grande expoente Kelsen como paradigma a ser superado, dentro da teoria de Kuhn, é possível se dizer que se mobilizaram recursos intelectuais para atacar o pensamento dominante na comunidade jurídica sem que se conseguisse encontrar uma resposta efetiva não para encontrar outro paradigma substituto, mas para diagnosticar as próprias deficiências deste paradigma e o seu impacto na realidade jurídica e social. 

Isso leva aos desdobramentos da próxima subseção, na qual procura abordar a diversidade de conceitos de Direito em contraposição a uma teoria “unitária/uniforme” do Direito. A próxima passagem se dá justamente em decorrência dos elementos apresentados nesta subseção. 

3.2 VÁRIOS CONCEITOS DE DIREITO, PORÉM SOMENTE “UMA” TEORIA 

Uma das contradições do juspositivismo em tratar o Direito como uma Ciência se dá pelo fato de que sua concepção é constituída por uma dogmática com a qual necessita dar um tratamento uniforme ao Direito enquanto norma posta por uma autoridade estatal. A dogmática por natureza não é passível de expansão por não ser passível de questionamento, especialmente se este se der sobre seus “pontos de partida”.14 Neste sentido, para Tércio Sampaio Ferraz Júnior a dogmática teve origem no trabalho dos juristas da Idade Média, cuja influência canônica é fundamental enquanto se enxerga o Direito como um instrumento derivado da tradição e da autoridade.15

No entanto, a Ciência parte de problemas para as quais necessita de respostas, e assim foi ao longo de sua História, especialmente se considerarmos os períodos de formação do jusracionalismo e do início do positivismo jurídico.16 Ainda assim, era necessário compatibilizar a Ciência com a Dogmática e essa conjugação até foi feita como demonstrada por Ferraz Jr. ao tecer a história da ciência jurídica ao longo dos tempos.17 O problema fundamental do juspositivismo ao se consolidar como uma “ciência dogmática” é que a expansão do seu conhecimento só pode se dar verticalmente, de cima para baixo a partir do conjunto de normas existentes, enquanto todo o resto pode ser considerado zeetético, o que de certa forma, para a comunidade jurídica tradicional, pode ser considerado como “conhecimento não legítimo”. 

Como “ciência dogmática” só se pode trabalhar com uma concepção do Direito no qual suas estruturas são previsíveis e controláveis. Isso é constatável pela própria forma como os manuais de Introdução ao Estudo do Direito estruturam a disciplina: teremos uma teoria da norma, uma teoria das fontes, uma teoria do ordenamento jurídico, uma teoria da relação jurídica, uma teoria da interpretação, entre outros.18 Este posicionamento, no entanto, contrasta com a visão da própria Filosofia do Direito, pois enquanto, no mínimo, esta for uma disciplina de filósofos e o que eles entendiam por “Direito” várias concepções são possíveis.19 

Não é possível trabalhar na ciência jurídica com várias concepções do seu objeto, sob pena de violar sua própria vocação decisória. Do ponto de vista dogmático, essa visão unitária e uniforme de Direito traz rendimentos, enquanto for vocacionada para a decisão de conflitos dentro da seara dos Tribunais. Porém, do ponto de vista científico, e a partir da perspectiva de uma pesquisa científica em Direito, a própria concepção de “fenômeno jurídico” traduz uma complexidade muito grande do seu objeto, do qual não é passível de uma única linha de análise.20 A questão é: qual linha de análise é legitimada como conhecimento jurídico pela comunidade de juristas e qual não é. 

Na própria obra de Ferraz Jr. pode-se interpretar o campo zeetético e dogmático como visões complementares do Direito, e mais do que isso, se se quisesse ampliar sua compreensão, dever-se-ia considerar que ambos os campos podem trazer contribuições recíprocas uns aos outros.21 Essa atitude poderia suavizar as tensões existentes, ao ponto de se poder questionar as estruturas jurídicas e aprofundar o seu objeto de estudo. Valendo da interpretação de Karl Popper, é possível chegar ao um nível de detalhamento do seu objeto que torna o pesquisador mais próximo da realidade deste.22 

Não é possível defender uma abordagem exclusivista do Direito, nem tampouco negar a importância das disciplinas propedêuticas para a expansão da própria pesquisa científica em Direito, mesmo que prevalecesse o uso das normas. No entanto, como se demonstrará na próxima subseção, existem diversas limitações aos ingressantes na comunidade jurídica para produzir conhecimento jurídico, e mesmo interdições a linhas alternativas de análise. 

3.3 PERSPECTIVAS ADVINDAS DA EXPERIÊNCIA DOS DOCENTES COM A PESQUISA DE SEUS ALUNOS E INTERDIÇÕES À CRÍTICA EXTERNA DO DIREITO 

Mesmo que se se tratasse de uma questão de concepção, a qual coubesse a cada jurista escolher o caminho pelo qual deseja desenvolver seu conhecimento sobre a disciplina, o Direito não é composto somente de normas e teorias descritivas destas normas, mas de instituições, autoridades e estruturas de Poder. O Poder que diferencia “conhecimento jurídico” de “conhecimento não-jurídico”, também traduzível como “conhecimento legítimo” e “conhecimento não legítimo’ tem a capacidade de patrocinar e filtrar quais teses terão efeitos na realidade jurídica e quais não terão. Isto é fundamental para se compreender porque existem ideias que prosperam ganhando força e gerando alterações na realidade jurídica e social, enquanto outras, mesmo as quais não se pode ter em conta nenhum demérito, acabam se enfraquecendo e caindo no esquecimento.23 

Por outro lado, não se pode desconsiderar as próprias deficiências do ensino jurídico no tratamento de sua própria disciplina, algumas vezes deficiências ocasionadas por escolhas políticas e outras deficiências caracterizáveis pela falta de recursos e estrutura, das quais não se preferiu abordar neste artigo. Essas questões podem levar a limitações na própria formação dos estudantes de Direito, mas, em compensação, isso não obsta a reprodução do sistema que assimila novos quadros seja por meio do mercado de trabalho, seja por meio do sistema de justiça.24

As limitações na compreensão do objeto jurídico podem não ter impacto sobre a comunidade jurídica, se esta aceita as limitações como “parte do sistema”. Contudo, certamente essas limitações têm impacto sobre a realidade social, a qual o Direito e a comunidade jurídica servem, pela condição estrutural de que o Direito enquanto instrumento estatal de Poder e controle, incide sobre um público indistinto: a sociedade. 

Para Luciano Oliveira e Horácio Wanderlei Rodrigues, existem deficiências na produção científica dos aprendizes do Direito, as quais podem ser derivadas de escolhas ou do próprio desconhecimento.25 Porém, destas duas razões derivam da própria ambiguidade do Ensino Jurídico e de sua relação com as estruturas de Poder, as limitações que podem ser fator de sucesso no mercado de trabalho e no sistema de Justiça, podem ter efeitos bastante negativos sobre a própria pesquisa jurídica, e, longa manus, para a própria Ciência do Direito. 

Essa situação é perceptível mesmo entre aqueles que não viriam de dentro do sistema, por serem de formação em outras Ciências Humanas. Entre esses, se destaca o professor de Ciência Política Marcos Nobre, cuja obra homônima ao assunto tratado neste artigo aborda as dificuldades dos pesquisadores em Direito advindas de um Ensino Jurídico que os isola das demais disciplinas humanísticas e a mistura feita pelos pesquisadores de suas práticas profissionais e de suas práticas acadêmicas.26

Contudo, aqueles ligados ao mainstream jurídico podem ter sérias divergências com as compreensões apresentadas, como é o caso de Sérgio Stanicia. 27 Doutor em Direito com uma formação tradicional produzida no ambiente da Universidade de São Paulo (USP). Não se pode considerar que todos aqueles que se formam na USP compartilharão de uma posição exclusivista do Direito, porém é inegável que o acesso a um Curso de Direito numa das Faculdades mais antigas do país possa exercer uma influência decisiva.  

O texto de Stanicia compartilha de alguns dos vícios dos pesquisadores em Direito informados pelos professores citados anteriormente, e com os quais se forma a crítica presente neste artigo. Conta com uma predominância de fontes estrangeiras, e de forma até mesmo contrassensual, fontes que informam sobre uma Doutrina que advém de países de Common Law não operando distinções na sua descrição de Doutrina, a qual, apesar de contar com referências também de países de Common Law, não diminuem o caráter eurocentrado da sua análise.  

Neste sentido, ainda se insurge contra aqueles, que vindo de uma formação diferente da sua, procuram diagnosticar um problema contra a qual a comunidade jurídica da qual ele pertence não consegue resolver. Tal é evidenciado quando distingue entre uma “Crítica Interna do Direito” e uma “Crítica Externa ao Direito”, esta última categoria na qual inclui o professor Marcos Nobre, do qual o acusa de desconhecimento do funcionamento interno do sistema jurídico. Ele não é o único a fazer este tipo de distinção, a qual é comum até no meio da Sociologia Jurídica, portanto vem de um setor da comunidade que faz esse tipo de julgamento. 

No entanto, como demonstrado acima a crítica de Marcos Nobre, por mais que tenha um certo distanciamento e todas as limitações provindas deste, conta com a convergência de autores vindos da própria comunidade jurídica, como é o caso de Horácio Wanderlei Rodrigues e Luciano Oliveira. Estes acabam conferindo profundidade a crítica da pesquisa jurídica como também uma crítica do próprio ensino jurídico conformado das posteriores produções científicas.  

Esta crítica também passa por questões que não são necessariamente originadas de compreensões teóricas distintas, entre as quais poderia se discernir entre “compreensão dominante” e “compreensões marginais”, mas por distorções provocadas pelo próprio Ensino Jurídico e pelas estruturas do Poder, o que caracterizam o problema epistemológico, como um problema eminentemente brasileiro, por mais que o Direito brasileiro tenha uma raiz ocidental comum com a dos países centrais. 

A partir da próxima seção começa a se delimitar se há respostas para os problemas apresentados neste artigo, visto como problemas também da comunidade jurídica. Ainda que essas respostas destoem entre si, é importante vislumbrar aquilo que não é respondido nestas tentativas de diagnosticar a estagnação da pesquisa jurídica no Brasil. 

Sobre o autor
Alexandre Pantoja Guimarães Imaguire Eugênio

Graduando na Faculdade Baiana de Direito no 7º semestre. Pesquisador e Escritor. Redes Sociais: @alexpantojaeugenio (Instagram)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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