Há algum tempo atrás fui contratado por uma cliente que foi vítima de um golpe financeiro. Usando engenharia social e recursos tecnológicos sofisticados, uma quadrilha invadiu e controlou o Smartphone dela e roubou aproximadamente 10 mil dólares de duas contas bancárias dela. Ela é idosa e na época dos fatos ela estava especialmente vulnerável por causa de uma doença grave.
Os dois processos foram julgados improcedentes por juízes diferentes pela mesma razão. Os juízes entenderam que a culpa era da cliente e não dos Bancos. O fato dela ser idosa e doente foi desprezado como sendo irrelevante, então eu recorri de uma das decisões. O outro processo ficou sem recurso porque a cliente ficou desanimada e preferiu não pagar a taxa judiciária devida.
Em 26 de setembro de 2024 o recurso no processo movido contra o Banco Sofisa S/A foi julgado no Tribunal de Justiça de São Paulo. Abaixo transcrevo a ementa do julgado:
“APELAÇÃO. “Golpe da Falsa Central”. Autora, idosa, afirma ter recebido ligação de fraudador que se passou por preposto do banco e informou a necessidade de instalação do aplicativo “Rust Desk” em seu celular. Seguiu as orientações passadas e na sequência constatou diversas transações indevidas em sua conta. Operações tipicamente fraudulentas e destoantes do perfil do cliente. Relação de consumo caracterizada (arts. 2º e 3º do CDC*). Ausência de provas dando conta da cautela e adoção de procedimentos de segurança suficientes para coibir a ocorrência de fraudes. Fortuito interno evidenciado. Teoria do risco da atividade. Responsabilidade objetiva. Necessidade de reparação do prejuízo material causado à autora. Dano moral também configurado. Indenização fixada em R$ 5.000,00. Sentença reformada. Recurso da autora provido."
No corpo da decisão, o fundamento da procedência do pedido foi exposto da seguinte maneira:
“Restou incontroverso que a autora foi vítima do conhecido“Golpe da Falsa Central”. Disse ter recebido contato de terceiro se passando por funcionário do réu e informando a necessidade de instalação de um novo aplicativo em seu celular. Seguiu as orientações e, na sequência, constatou em sua conta diversas transações irregulares, como saques, PIX e empréstimos, sofrendo um desfalque patrimonial no valor de R$ 21.898,80.
Incontroversa a relação jurídica de consumo entre as partes tornando aplicáveis as disposições da Lei n. 8.078/90 - Código de Defesa do Consumidor. A matéria encontra-se pacificada pela Súmula 297: “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras.”
Com efeito, tratando-se de relação de consumo e sendo o banco-réu a parte contratual que detém o monopólio de informações, dados e documentos, a hipótese é de inversão do ônus da prova em favor do consumidor (art.6º, inc. VIII, Lei n. 8078/90), que é a parte em nítida desvantagem no vínculo negocial.
Cabe aos bancos, em parceria com o restante da cadeia de fornecedores do serviço, a verificação da idoneidade das operações, utilizando-se de meios que dificultem ou impossibilitem fraudes e transações realizadas por estranhos em nome de seus clientes, independentemente de qualquer ato do consumidor.
A vulnerabilidade do sistema bancário, que admite operações com aparência de ilegalidade e em completa dissonância com o perfil do cliente, viola o dever de segurança que cabe às instituições financeiras e, por conseguinte, incorre em falha da prestação de serviço nos termos do artigo 14, § 1º do CDC: “o serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que consumidor dele pode esperar (...).”
Mesmo que tenha havido ação de terceiro ou que tenha a demandante sido ingênua ao cair no referido golpe, o artigo 14, § 3º, do CDC exige culpa exclusiva do terceiro ou da vítima para afastar a responsabilidade do réu, o que não ocorre no caso em apreço, pois o estelionato somente se consumou em razão do aparato tecnológico colocado à disposição do consumidor por parte do banco, que facilitou a ação do infrator, além da evidente falha de segurança da instituição financeira, que sequer entrou em contato com a demandante para confirmar as operações ora impugnadas.”
O dispositivo do Acórdão ficou com a seguinte redação:
"Ante o exposto, pelo meu voto, DOU PROVIMENTO ao recurso para julgar a ação procedente e: 1- declarar nulas as operações financeiras mencionadas no item IV da inicial; 2- condenar o réu a restituir à autora os valores descontados de forma ilícita de sua conta, com correção monetária do desembolso (Súmula 43 do STJ) e juros de mora da citação (Súmula 54 do STJ), nos termos do artigo 406 do CC, com a alteração introduzida pela Lei 14.905/24, a partir da sua vigência; 2- condenar o réu a pagar à autora, a título de indenização por danos morais, a quantia de R$ 5.000,00, com correção monetária da publicação deste acórdão (Súmula 362 do STJ) e juros de mora da citação (Súmula 54 do STJ), nos termos do artigo 406 do CC, observando a modificação introduzida pela Lei n. 14.905/24, a partir da sua vigência."
As despesas com o processo também terão que ser ressarcidas pelo Banco. Agora vai acontecer o seguinte: primeiro o Acórdão será publicado, depois correrá o prazo de 15 dias para o Banco recorrer. Se o recurso for interposto o caso eventualmente irá ser julgado pelo Superior Tribunal de Justiça brasileiro.
Quando não couber mais recurso, eu farei o Cumprimento de Sentença (execução da condenação) e ao final a cliente receberá o que for devido menos os honorários advocatícios que foram contratados com base no resultado.
Uma observação curiosa precisa ser feita aqui. No recurso interposto aleguei uma matéria preliminar referente à nulidade da decisão. A sentença contra os interesses da minha cliente havia sido parcialmente proferida por uma Inteligência Artificial. Essa questão foi referida numa publicação anterior.
A grande probabilidade da utilização de IA pelo juiz foi atestada pela análise que o ChatGPT fez do fragmento relevante da sentença. Nem a Constituição brasileira, nem a legislação processual civil autoriza os juízes do meu país a transferir para um robô o poder/dever outorgado a eles para proferir decisões judiciais. Logo, a sentença poderia e deveria ser anulada.
Entretanto, a embaraçosa questão da nulidade da sentença original em razão dela ter sido parcialmente proferida por uma Inteligência Artificial foi evitada. O Tribunal de Justiça de São Paulo preferiu não apreciar a matéria. Como minha cliente foi vitoriosa no mérito, essa omissão do Acórdão deixa de ter relevância jurídica e não pode ser objeto de Embargos de Declaração. De qualquer maneira, dessa vez a posição do juiz robô pró negócios como de costume não prevaleceu.
Se minha cliente não tivesse ficado desanimada, se ela tivesse acreditado no meu trabalho e pago a despesa do recurso do outro processo, ambos os casos poderiam ter a mesma solução favorável. Mas agora isso é passado. Aquela decisão desfavorável não pode mais ser objeto de recurso porque ela se tornou imutável.
Como advogado fico muito satisfeito quando um caso como esse (envolvendo uma idosa vulnerável e doente), recebe uma solução adequada. Foi para isso que eu me tornei advogado em 1990. Essa foi uma vitória pequena, mas eu a considero muito justa e esperançosa. Nesse caso os interesses do Banco tecnologicamente descuidado não prevaleceram.