Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

Sentença em favor de Banco provavelmente proferida por IA no Brasil foi reformada

Agenda 27/09/2024 às 08:36

Há algum tempo atrás fui contratado por uma cliente que foi vítima de um golpe financeiro. Usando engenharia social e recursos tecnológicos sofisticados, uma quadrilha invadiu e controlou o Smartphone dela e roubou aproximadamente 10 mil dólares de duas contas bancárias dela. Ela é idosa e na época dos fatos ela estava especialmente vulnerável por causa de uma doença grave.

Os dois processos foram julgados improcedentes por juízes diferentes pela mesma razão. Os juízes entenderam que a culpa era da cliente e não dos Bancos. O fato dela ser idosa e doente foi desprezado como sendo irrelevante, então eu recorri de uma das decisões. O outro processo ficou sem recurso porque a cliente ficou desanimada e preferiu não pagar a taxa judiciária devida.

Em 26 de setembro de 2024 o recurso no processo movido contra o Banco Sofisa S/A foi julgado no Tribunal de Justiça de São Paulo. Abaixo transcrevo a ementa do julgado:

“APELAÇÃO. “Golpe da Falsa Central”. Autora, idosa, afirma ter recebido ligação de fraudador que se passou por preposto do banco e informou a necessidade de instalação do aplicativo “Rust Desk” em seu celular. Seguiu as orientações passadas e na sequência constatou diversas transações indevidas em sua conta. Operações tipicamente fraudulentas e destoantes do perfil do cliente. Relação de consumo caracterizada (arts. 2º e 3º do CDC*). Ausência de provas dando conta da cautela e adoção de procedimentos de segurança suficientes para coibir a ocorrência de fraudes. Fortuito interno evidenciado. Teoria do risco da atividade. Responsabilidade objetiva. Necessidade de reparação do prejuízo material causado à autora. Dano moral também configurado. Indenização fixada em R$ 5.000,00. Sentença reformada. Recurso da autora provido."

No corpo da decisão, o fundamento da procedência do pedido foi exposto da seguinte maneira:

Restou incontroverso que a autora foi vítima do conhecido“Golpe da Falsa Central”. Disse ter recebido contato de terceiro se passando por funcionário do réu e informando a necessidade de instalação de um novo aplicativo em seu celular. Seguiu as orientações e, na sequência, constatou em sua conta diversas transações irregulares, como saques, PIX e empréstimos, sofrendo um desfalque patrimonial no valor de R$ 21.898,80.

Incontroversa a relação jurídica de consumo entre as partes tornando aplicáveis as disposições da Lei n. 8.078/90 - Código de Defesa do Consumidor. A matéria encontra-se pacificada pela Súmula 297: “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras.”

Com efeito, tratando-se de relação de consumo e sendo o banco-réu a parte contratual que detém o monopólio de informações, dados e documentos, a hipótese é de inversão do ônus da prova em favor do consumidor (art.6º, inc. VIII, Lei n. 8078/90), que é a parte em nítida desvantagem no vínculo negocial.

Cabe aos bancos, em parceria com o restante da cadeia de fornecedores do serviço, a verificação da idoneidade das operações, utilizando-se de meios que dificultem ou impossibilitem fraudes e transações realizadas por estranhos em nome de seus clientes, independentemente de qualquer ato do consumidor.

A vulnerabilidade do sistema bancário, que admite operações com aparência de ilegalidade e em completa dissonância com o perfil do cliente, viola o dever de segurança que cabe às instituições financeiras e, por conseguinte, incorre em falha da prestação de serviço nos termos do artigo 14, § 1º do CDC: “o serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que consumidor dele pode esperar (...).”

Mesmo que tenha havido ação de terceiro ou que tenha a demandante sido ingênua ao cair no referido golpe, o artigo 14, § 3º, do CDC exige culpa exclusiva do terceiro ou da vítima para afastar a responsabilidade do réu, o que não ocorre no caso em apreço, pois o estelionato somente se consumou em razão do aparato tecnológico colocado à disposição do consumidor por parte do banco, que facilitou a ação do infrator, além da evidente falha de segurança da instituição financeira, que sequer entrou em contato com a demandante para confirmar as operações ora impugnadas.”

O dispositivo do Acórdão ficou com a seguinte redação:

"Ante o exposto, pelo meu voto, DOU PROVIMENTO ao recurso para julgar a ação procedente e: 1- declarar nulas as operações financeiras mencionadas no item IV da inicial; 2- condenar o réu a restituir à autora os valores descontados de forma ilícita de sua conta, com correção monetária do desembolso (Súmula 43 do STJ) e juros de mora da citação (Súmula 54 do STJ), nos termos do artigo 406 do CC, com a alteração introduzida pela Lei 14.905/24, a partir da sua vigência; 2- condenar o réu a pagar à autora, a título de indenização por danos morais, a quantia de R$ 5.000,00, com correção monetária da publicação deste acórdão (Súmula 362 do STJ) e juros de mora da citação (Súmula 54 do STJ), nos termos do artigo 406 do CC, observando a modificação introduzida pela Lei n. 14.905/24, a partir da sua vigência."

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

As despesas com o processo também terão que ser ressarcidas pelo Banco. Agora vai acontecer o seguinte: primeiro o Acórdão será publicado, depois correrá o prazo de 15 dias para o Banco recorrer. Se o recurso for interposto o caso eventualmente irá ser julgado pelo Superior Tribunal de Justiça brasileiro.  

Quando não couber mais recurso, eu farei o Cumprimento de Sentença (execução da condenação) e ao final a cliente receberá o que for devido menos os honorários advocatícios que foram contratados com base no resultado.

Uma observação curiosa precisa ser feita aqui. No recurso interposto aleguei uma matéria preliminar referente à nulidade da decisão. A sentença contra os interesses da minha cliente havia sido parcialmente proferida por uma Inteligência Artificial. Essa questão foi referida numa publicação anterior.

A grande probabilidade da utilização de IA pelo juiz foi atestada pela análise que o ChatGPT fez do fragmento relevante da sentença. Nem a Constituição brasileira, nem a legislação processual civil autoriza os juízes do meu país a transferir para um robô o poder/dever outorgado a eles para proferir decisões judiciais. Logo, a sentença poderia e deveria ser anulada.

Entretanto, a embaraçosa questão da nulidade da sentença original em razão dela ter sido parcialmente proferida por uma Inteligência Artificial foi evitada. O Tribunal de Justiça de São Paulo preferiu não apreciar a matéria. Como minha cliente foi vitoriosa no mérito, essa omissão do Acórdão deixa de ter relevância jurídica e não pode ser objeto de Embargos de Declaração. De qualquer maneira, dessa vez a posição do juiz robô pró negócios como de costume não prevaleceu.

Se minha cliente não tivesse ficado desanimada, se ela tivesse acreditado no meu trabalho e pago a despesa do recurso do outro processo, ambos os casos poderiam ter a mesma solução favorável. Mas agora isso é passado. Aquela decisão desfavorável não pode mais ser objeto de recurso porque ela se tornou imutável.

Como advogado fico muito satisfeito quando um caso como esse (envolvendo uma idosa vulnerável e doente), recebe uma solução adequada. Foi para isso que eu me tornei advogado em 1990. Essa foi uma vitória pequena, mas eu a considero muito justa e esperançosa. Nesse caso os interesses do Banco tecnologicamente descuidado não prevaleceram.


Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!