Após as representações protocoladas por mim no CNJ e CNMP e a repercussão do uso do ChatGPT no processo de Jair Bolsonaro que foi julgado há alguns meses pelo TSE, a utilização ou não de inteligência artificial por juízes começou a ser debatida seriamente por Lenio Streck. Todavia, no último texto que publicou na internet referido jurista não percebeu todas as implicações jurídicas que podem ocorrer em decorrência da população da nova tecnologia entre os magistrados brasileiros.
Para exemplificar os problemas que inevitavelmente ocorrerão, divulgo aqui na integra a segunda preliminar de nulidade levantada por mim no recurso de apelação protocolizado recentemente no caso de uma cliente minha:
"II- Há bem pouco tempo o TJSP anunciou que disponibilizou aos juízes paulistas um sistema de Inteligência Artificial capaz de gerar textos dotados de coesão e coerência (doc. anexo). Essa nova ferramenta é semelhante ao ChatGPT e ao Bard, mas voltada exclusivamente para a produção de textos jurídicos.
O art. 5º, LIII, da CF/88 prescreve que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente.” Autoridade competente para julgar o processo da apelante é o cidadão investido no cargo de magistrado. Não por acaso o art. 487, do CPC dispõe que “Haverá resolução de mérito quanto o juiz:” e não “Haverá resolução de mérito quanto a inteligência artificial:”.
Em decorrência, se a decisão foi proferida parcial ou totalmente por uma Inteligência Artificial a legitimidade dela é inexistente, quer porque o Juiz não pode abrir mão do poder/dever lhe atribuído, quer porque o julgamento da causa pela IA equivaleria à criação de um tribunal de exceção (algo expressamente vedado pelo art. 5º, XXXVII, da CF/99). Não só isso.
O art. 8, item 1, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos prescreve que:
“1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. (grifos nossos)”
O Brasil é signatário desta Convenção e a apelante pode invocá-la em Juízo por força do art. 5º, §2º, da CF/88. Portanto, o processo da apelante deveria ter sido julgado por juiz humano não por uma Inteligência Artificial.
Da sentença encartada aos autos consta o seguinte fragmento extremamente significativo. Ele contém basicamente o coração do argumento jurídico e fático que levou o Juízo a quo a adotar uma tese desfavorável à apelante.
“O 'rustDesk' é um aplicativo de acesso remoto, de código aberto, semelhante ao TeamViewer, que ajuda os usuários a acessar e controlar seus aparelhos (celular, notebook, tablet ou desktop) de qualquer local. Infelizmente, ele vem sendo utilizado como variante das fraudes bancárias. O golpe consiste em utilizar ligações via aplicativo de conversa ou mesmo ligações normais, onde terceira pessoa, fazendo se passar por um atendente de banco, induz a vítima a baixar o aplicativo enviado (por mensagem). Um vez com acesso ao aparelho da vítima, o criminoso acessa configurações, apagando dados do aplicativo do banco, pedindo que o usuário "insira a senha" para que o sistema do banco "possa concluir a verificação do dispositivo". Neste instante, o criminoso passa a ter conhecimento da aludida senha, digitalizada pela vítima, tendo acesso ilimitado ao aplicativo do banco instalado no aparelho em questão.
Esta é a hipótese dos autos.
Convém salientar que as operações mencionadas implicaram em transferências instantâneas de valores para contas de destino, sendo que a instituição financeira informou ter sido comunicada acerca do golpe após a ocorrência deste. Também se deve atentar ao fato de que sequer houve alegação no sentido de que a golpista contatou a autora a partir de dados vazados pela instituição financeira ré.
Na hipótese, inexiste qualquer indício de que o réu tenha responsabilidade pela fraude de que foi vítima a parte autora. A responsabilidade do réu somente remanesceria caso restasse comprovado que houve algum vício em seus serviços (CDC, art. 18) como, por exemplo, ter permitido que terceiros tivessem acesso ao seu banco de dados, no qual estão os dados pessoais/cadastrais de seus clientes, inclusive à senha pessoal deles para acesso à área restrita de seu aplicativo.”
É cediço que uma Inteligência Artificial pode detectar a probabilidade de um texto ter sido ou não gerado por outra Inteligência Artificial. Em decorrência, a apelante submeteu o fragmento acima à análise pelo ChatGPT, recurso tecnológico colocado à disposição de todas as pessoas pela empresa OpenAI. O resultado desta análise, anexada aos autos com o presente recurso, diz o seguinte:
“Com base na análise do texto fornecido, é difícil determinar com certeza se ele foi escrito por uma inteligência artificial ou por um ser humano. O texto é informativo e discute um cenário relacionado a fraudes bancárias e acesso remoto por meio de um aplicativo. Ele parece ser escrito de maneira relativamente objetiva e técnica, abordando conceitos específicos, como o funcionamento do golpe e as implicações legais.
No entanto, também é importante observar que o texto não demonstra características altamente distintas ou erros notáveis que sugeririam que ele foi gerado por uma IA. Parece ser um texto informativo padrão. Portanto, com base apenas no conteúdo do texto fornecido, a probabilidade de ter sido escrito por uma IA parece ser média, o que significa que pode ter sido escrito tanto por um humano quanto por uma IA.” (grifos nossos)
Disponível na internet no seguinte endereço: https://chat.openai.com/share/4ca0f999-ec2d-4700-a097-5ca11d5acc05
Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:A Constituição Federal e o CPC garantem à autora a prolação da sentença por um juiz de carne e osso, mas existe probabilidade média do coração da decisão de mérito proferida no caso sub judice ter sido proferida por uma IA. Portanto, a legitimidade daquela decisão é obviamente inexistente. A decisão é nula porque foi proferida por uma máquina e não por um ser humano.
Note-se, ademais, que a máquina que decidiu o processo da apelante contém um viés extremamente favorável ao Banco. Ela parece ter presumido que não ocorreu nenhuma discrepância entre os dados de geolocalização das operações que se pretende anular e o histórico de acesso à conta-corrente pela correntista ou, pior, que a questão referente aos dados de geolocalização é juridicamente irrelevante como se a jurisprudência do STJ acima transcrita não existisse."
Creio que o texto acima reproduzido é suficientemente autoexplicativo. Portanto, não acrescentarei mais nada sobre esse caso até o TJSP decidir a questão que foi levada ao conhecimento dele.