Resumo: A tipificação do feminicídio joga luz sobre um problema social e busca chamar a atenção para o fato de que mulheres são assassinadas, todos os dias, pela simples condição de serem mulheres. O feminicídio constitui a forma mais extrema da violência. É o ponto final de uma história de agressão do homem contra a mulher. Compreender este fenômeno sob a ótica de outras áreas do conhecimento, que não a jurídica, traz a oportunidade de traçar estratégias diversas da lógica punitivista para o enfrentamento do problema. A revisão narrativa da literatura busca compreender no conceito da identificação projetiva cunhada na psicanálise uma das razões que levam o agressor doméstico a atentar contra a vida de sua esposa/companheira, uma vez que nesta relação projeta-se o que há de mal em si no outro para proteger-se, mesmo que isso implique na destruição do objeto.
Palavras-chave: Feminicídio. Direito. Penal. Psicanálise. Identificação projetiva.
1. Introdução
Em recente evento na sede das Nações Unidas (ONU), em Nova Iorque, o secretário-geral António Guterres descreveu a violência de gênero como “pandemia” e uma “afronta moral a todas as mulheres e meninas, e a todos nós, uma marca vergonhosa em todas as nossas sociedades”. Trata-se de uma violência que, por mais brutal que seja, enraíza-se em uma tradição cultural, o que a torna, em muitos casos, invisível, naturalizada. Dada a extensão do problema e a necessidade urgente de encontrar meios eficazes de seu enfrentamento, pretendemos fazer dialogar o direito, isto é, o conjunto de proposições legais que surgem como mecanismos de proteção das vítimas deste tipo de violência, com a psicanálise, com o espectro mais amplo de uma interrogação sobre as estruturas subjetivas e suas nuances no mundo contemporâneo.
Dessa maneira, embora o direito dedique-se com bastante ênfase ao estudo do tema, o crescente número de casos de violência doméstica sugere que a política penal, baseada no punitivismo, está sendo insuficiente para reduzir os casos de violência. Ou seja, a temática é complexa e a ciência do direito, sozinha, não é capaz de apresentar respostas ao problema. É imprescindível o estudo de outras áreas do conhecimento para se construir uma rede de elementos capazes de diagnosticar e, por fim, apresentar soluções mais adequadas e eficientes para a problemática da violência doméstica.
O que precisa ser destacado, inicialmente, é a própria complexidade de tal objeto de estudo. O feminicídio, como sabemos, é a resposta mais grave do agressor contra a vítima. O assassinato da esposa/companheira é o ponto final de uma trajetória de violência. No entanto, a violência propriamente dita inicia muito antes disso. Humilhações, chantagens e outras formas de violência levam a mulher, em muitos casos, a perder a capacidade de identificar tudo isso como violência. Portanto, torna-se extremamente necessária uma investigação do enraizamento deste tipo de violência na própria estrutura do tecido social onde somos formados e educados. É preciso mostrar que a própria formação da subjetividade em uma sociedade onde tais formas de violência são naturalizadas, é um aspecto que contribui para a sua manutenção. A necessidade de se estudar com mais avidez sobre o tema, portanto, parece-nos plenamente justificada. O noticiado aumento de casos relacionados à violência doméstica durante a pandemia de coronavírus, por conta do isolamento social é intrigante e faz surgir uma percepção cada vez mais clara de como isto segue sendo um problema grave. Afinal, o que leva o homem a atentar contra a vida de sua esposa/companheira?
Certamente não há uma resposta segura, especialmente porque depende do exame do caso concreto para esclarecer as razões pelas quais tal crime é praticado. No entanto, é preciso avançar e lançar luz sobre os meandros destas estruturas de violência. A psicanálise pode nos auxiliar muito neste sentido. Por partir da análise do sujeito em suas articulações no espaço social, oferece elementos distintos do direito para compreensão do tema. No direito estão tipificados certos crimes e previsões de penas relativas a eles. Ainda assim, não vemos o problema ser resolvido no momento em que o crime é tipificado e passível de punição. O problema é muito mais profundo, portanto. Ao dar espaço para a reflexão psicanalítica em torno da estrutura subjetiva dos sujeitos e sua formação em uma cultura eminentemente machista, pretendemos compreender o contexto onde se inscreve tal forma de violência. Nesta seara, a identificação projetiva será apresentada como uma das possibilidades de explicar as razões da violência doméstica. Compreender este fenômeno pelas óticas do agressor e da vítima permite traçar estratégias diversas da criminologia para o enfrentamento do feminicídio.
2. Violência de gênero e feminicídio
A violência de gênero ignora fronteiras de classe social, condição econômica, localidade, grau de instrução, cor de pele ou qualquer outro conceito pré-estabelecido. Trata-se de um fenômeno democraticamente distribuído no qual a figura do homem como “protagonista em todas as esferas do social contribui para a perda da autonomia e liberdade da mulher, além de naturalizar a violência machista presente em um plano simbólico e relacional” (BARBOSA & BORGES, 2017, p. 387).
Ao longo da história foi-se construindo a ideia de que “as diferenças biológicas são as responsáveis pelas desigualdades sociais e de injustiças” (TELES, 2010, p. 382), todavia a partir dos movimentos feministas do século XX, a desigualdade de gênero (e por consequência o tema da violência doméstica) passou a ser analisada sob a ótica da construção social. Ao partir do pressuposto de que a diferença de gênero não é uma construção biológica, mas sim social, a compreensão do assunto e o enfrentamento do problema da violência de gênero ganhharam outra dimensão.
As mulheres não são vítimas de violência de gênero pela condição biológica de serem do sexo feminino, de modo que “a opressão contra as mulheres deriva do processo de socialização que constroem o sujeito e não a biologia” (SHECAIRA & IFANGER, 2019, p. 3). O processo de construção da sociedade conferiu a mulher a primazia das tarefas domésticas com o cuidado dos filhos e da casa, enquanto que aos homens foram relegadas as tarefas de prover a família por meio de um trabalho público. A diferença da valorização entre o trabalho doméstico e o público, segundo Couto (2016, p. 23) é “imprescindível para o reconhecimento da opressão de um gênero por outro”, porquanto o trabalho doméstico sempre foi visto como uma manifestação de carinho, afeto, cuidado e insuficiente para justificar alguma remuneração.
As sociedades patriarcais submetem as mulheres, desde o nascimento, a relações de subordinação e dominação que representam uma pseudo inferiorização do sexo feminino frente ao masculino. Ao introjetar este conceito de inferioridade de gênero no tecido social “por interesses de grupos que transformam as relações sociais e conforme suas ambições políticas e econômicas” (TELES, 2010, p. 383), o acesso de mulheres a postos públicos de trabalho é dificultado (ou até mesmo impedido) porque o “homem é tido como provedor, forte, racional, corajoso e viril e a mulher como sentimental, fraca, submissa, vítima” (SHECAIRA & IFANGER, 2019, p. 3). Segundo Saffioti (2001, p. 115) “no exercício da função patriarcal os homens detêm o poder de determinar a conduta das categorias sociais nomeadas, recebendo autorização ou, pelo menos, tolerância da sociedade para punir o que se lhes apresenta como desvio”, fato que, de certa maneira, legitima o uso da violência por parte do homem não só contra mulher, mas também contra crianças, idosos e pessoas vulneráveis uma vez que se torna aceitável “um indivíduo mais poderoso controlar outros por meio de várias formas de forças coercitivas” (HOOKS, 2018, p. 37). Hoocks, inclusive, sugere como sendo mais adequada a expressão “violência do patriarcado” no lugar de “violência doméstica”.
Para Alvarenga (2008, p. 33) há uma violência estrutural e institucional “construída e praticada pela sociedade e pelo próprio Estado” que permitiu durante muito tempo visualizar a agressão do homem contra a mulher como sendo algo inerente à sociedade. E aqui o termo agressão é utilizado não apenas na concepção usual de violência física, mas sim de uma série de direitos negados pela condição do gênero. As profundas e complexas formas de violência estão escancaradas no curso da história legislativa brasileira, pois ao longo dos anos a violência contra a mulher foi positivada em vários momentos. Nas Ordenações Filipinas era autorizado em caso de adultério o homem matar a mulher adúltera e no Código Criminal de 1830, além de prever prisão para mulher casada que cometesse adultério, o homem que a matasse era agraciado com redução de pena. No âmbito civil, o direito ao voto só foi conquistado pela mulher em 1932 na Constituição de Vargas e o Código Civil de 1916 exigia a autorização do homem para que a mulher pudesse trabalhar “fora do teto conjugal”. Ao analisar a construção legislativa em relação ao tema é possível constatar o enraizamento do sistema patriarcalista na sociedade brasileira e concluir que “quem pratica a violência em primeiro lugar é o Estado e a sociedade e, via de consequência, o homem apenas ´reproduz´ o papel de um e de outra” (ALVARENGA, 2008, P. 38), ou seja, “os homens não são o problema, o problema é o patriarcado, o sexismo e a dominação masculina” (HOOKS, 2018, p. 39). Entretanto, tal característica em nenhuma hipótese justifica ou atenua a prática da violência de gênero.
A primeira experiência concreta realizada pelo Estado brasileiro de incorporar a perspectiva de proteção ao gênero em uma legislação foi a lei n. 11.340/2006 (lei Maria da Penha). A lei Maria da Penha inaugurou um marco legislativo para enfrentamento e combate à violência doméstica e trouxe significativos avanços estruturais como a criação das varas especializadas, o afastamento da aplicação da Lei dos Juizados Especiais, a possibilidade de prisão preventiva, inclusão da vítima em programas sociais por meio de atendimento multidisciplinar e concessão de medidas protetivas para resguardar a integridade da vítima, dentre outras (DIAS, 2007, p. 2).
Após os avanços da Lei Maria da Penha, o legislador aprovou a lei n. 13.104/2015 que acrescentou o inciso IV no § 2º do artigo 121 do Código Penal para tornar hediondo o crime praticado “contra as mulheres em virtude da condição de gênero” e fixou pena de reclusão de 12 a 30 anos, cunhando o termo como “feminicídio”. Conceitualmente feminicídio é um neologismo que descreve o homicídio de mulheres pela condição de gênero. De acordo com Diniz, Costa e Gumieri (2015, p. 1) o termo vem de “femicide” e “é atribuído a Diana Russel, pesquisadora feminista sul-africana que o teria criado na década de 1970 para falar do extremo letal do ‘continuum de terror antifeminino’”, com o intuito de “designar o conjunto de violações a direitos humanos das mulheres e denunciar o Estado desprotetor, omisso, negligente ou cúmplice”.
Embora o assassinato de mulheres pela condição de gênero não esteja dissociado do conceito de homicídio (assassinato de ser humano), conforme Diniz e cols. (2015, p. 1) “ao nomear a sexagem da vítima e do agressor e as precarizações de corpos sexados como femininos, denuncia-se o patriarcado como poder” e todas as consequências advindas desta construção social. A importância da tipificação de acordo com Viegas e Francisco (2019, p. 21) é para que “seja reconhecido, na forma da lei, que as mulheres são mortas pela razão de serem mulheres, demonstrando tamanha fissura acerca da desigualdade de gênero mantida em nossa sociedade”. Com efeito, a tipificação do feminicídio não está “relacionada a um efeito prático mais imediato de resolução do problema pelo incremento da punição, mas sim à mensagem que a lei pode passar à sociedade: a criação da lei seria uma maneira de ´dar visibilidade´ ao feminicídio enquanto problema social” (OLIVEIRA & POSSAS, 2018, p. 9).
Nucci (2016, p. 617) explica que o feminicídio é “uma continuidade da tutela especial, considerando homicídio qualificado e hediondo a conduta de matar mulher, valendo-se de sua condição de sexo feminino” e não basta para caracterizá-lo que a vítima seja mulher. O ato de matar não pode ser solitário, ou seja, se faz necessário a presença de um histórico violento, de modo que o feminicídio seja um “o ponto final (...) que inclui abusos verbais e físicos e uma extensa gama de manifestações de violência e privações a que as mulheres são submetidas ao longo de suas vidas” (PASINATO, 2011, p. 224).
Se a via penal tem a vantagem de dar visibilidade ao fenômeno do feminicídio, por outro lado, “com a tipificação, parece haver uma acomodação de outros setores, já que passa a sensação de que o ´problema está resolvido´” (AUGUSTO, BARBOSA, SANTARÉM & PEREIRA, 2019, p. 6). O isolamento do direito penal para propor soluções de enfrentamento da problemática da violência doméstica é cada vez mais criticada pela comunidade jurídica porque “existe uma crença sedimentada de que a aprovação de uma lei pode, num passe de mágica, apagar todo o problema social que reverbera na violência e fazer com que ela não mais se manifeste” (SHECAIRA & IFANGER, 2019, p. 10). Zaffaroni (1997, p. 17) é ainda mais incisivo ao afirmar que “as leis penais são um dos meios preferidos do estado espetáculo e de seus operadores ´showmen´, em razão de serem baratas, de propaganda fácil e a opinião se engana com suficiente frequência sobre sua eficácia”, pois, afinal, “em movimentos revolucionários por justiça social, nós somos melhores em nomear o problema do que pensar em solução para ele” (HOOCKS, 2018, p. 39).
A violência é parte da estrutura social e por mais que a edição de leis jogue luz sobre o tema, está longe de se apresentar como solução adequada para o enfrentamento do problema. O Monitoramento da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (BRASIL, 2020) mostra que os casos de feminicídio, apesar de todos os esforços em sentido contrário, aumentam ano a ano.
As respostas jurídicas parecem insuficientes para entender o caráter pandêmico do problema e a simples compreensão das razões estruturais da formação da sociedade patriarcal pouco contribuem para a adoção de políticas públicas eficientes, sobretudo porque continuam sendo os “patriarcas” os senhores das leis e os balizadores dos investimentos em políticas públicas sobre o assunto. A lógica punitivista do Estado opressor é incapaz de proteger a mulher, uma vez que “o medo da punição não desmotiva o infrator de violar a norma” (SABADEL & PAIVA, 2019, p. 176). A violência estrutural e o machismo enraizados na sociedade não serão enfrentados simplesmente com uma nova ameaça "legal". A naturalização da desigualdade, e por consequência, da violência de gênero sugere a análise da problemática sobre outros enfoques, como a psicanálise. O direito necessita de outras ciências para melhor compreender o fenômeno e, a partir de então, dar condições para a mulher vítima de violência romper o ciclo vicioso com o suporte de profissionais da área da saúde mental.
3. Conjugalidade e Complexo de Édipo
A conjugalidade é objeto de interesse de diversas áreas do conhecimento e nenhuma delas é conclusiva sobre o assunto. Para a biologia, por exemplo, as questões da sexualidade humana são inerentes à espécie, pois se trata de uma simples “estratégia engendrada pela força evolutiva, por questão de sobrevivência” (SILVA, 2013, p. 38-39). Já para a teologia, o matrimônio e a formação da família têm suas raízes plantadas na Bíblia já que “o projeto de Deus para o matrimônio e a família está profundamente entranhado em todo o plano de salvação. Está (o projeto de Deus) no resgate de cada pessoa e de sua dignidade original” (LUGNANI & LUGNANI, 2016, p. 66). Sem embargo da importância dos demais conceitos, Anton (2012, p. 23) indaga se “num universo povoado de tantas alternativas - sob os mais variados aspectos – por que alguns se tornam mais atraentes ou mais repulsivos, e se aproximam ou se afastam, e se unem ou desaparecem? O que determina estas escolhas?”.
Nas palavras de Féres-Carneiro e Neto (2010, p. 2) “a formação da conjugalidade, na visão sistêmica, é um processo complexo, envolvendo diversos níveis do relacionamento e contextos que resultam na definição psicossocial de uma relação afetiva estável”. Anton (2012, pg. 26-37) afirma que os vínculos criados com fundamento em “bagagem genética, influências socioculturais, memórias inconscientes” são fatores determinantes para a escolha do cônjuge. Outro fator “sempre envolvido na motivação para o estabelecimento das relações de casais é o amor” (GAUER, ESCOTESGUY & MACHADO, 2009, p. 63). Importa destacar, ao trazer a conjugalidade para o centro da discussão, que não se está com isto querendo dizer que a violência de gênero se reduz a um problema conjugal. O que queremos explicitar é o âmbito próprio da violência doméstica, umas das expressões mais devastadoras da violência de gênero.
Freud sustenta que “muito antes da puberdade já está completamente desenvolvida na criança a capacidade de amar” (RAVANELLO & MARTINEZ, 2013, p. 160). Para Freud (1996, p. 108) “existem duas correntes que devem ser combinadas para assegurar um comportamento amoroso normal: a corrente afetiva e a sensual”. No artigo intitulado “Contribuições à Psicologia do Amor II” o autor descreveu que a corrente afetiva é a mais antiga das duas e constitui-se nos primeiros anos da infância. Forma-se na base dos interesses do instinto de autopreservação e se dirige aos membros da família e aos que cuidam da criança. De acordo com Freud (1996, p. 109) “essas fixações afetivas da criança persistem por toda a infância e continuamente conduzem consigo o erotismo, que, em consequência, se desvia de seus objetivos sexuais”. Somente com a puberdade é que a criança consegue distinguir os objetivos sexuais de forma a não mais seguir os caminhos primitivos (incesto).
Deste modo, “o ser humano inicia a vida em simbiose com a mãe e, gradualmente, se separa e se torna independente” (GAUER E COLS., 2009, p. 63). Neste contexto emerge o complexo de Édipo como o “mais importante de todo o elemento da personalidade” (KLEIN, 1996, p. 201) ou “uma das problemáticas fundamentais da teoria e da clínica psicanalítica” (MOREIRA, 2004, p. 219). Conforme pontuam Carvalho, Politano e Franco (2008, p. 234) “a história de Édipo pode ser vista, pelo menos em parte, como uma história sobre o destino e a impossibilidade humana de controlá-lo”.
O mito de Édipo remonta a Édipo Rei de Sófocles. De acordo com Bulfinch (2002, p. 152), “Laio, rei de Tebas, foi advertido por um oráculo de que haveria perigo para sua vida e seu trono se crescesse seu filho recém-nascido”. Para livrar-se da maldição “Laio entregou Édipo a um pastor que o criou como se fosse seu filho” (SALIS, 2003, p. 272) que “levado pela piedade, e, ao mesmo tempo, não se atrevendo a desobedecer inteiramente à ordem recebida, amarrou a criança pelos pés e deixou-o pendendo do ramo de uma árvore” (BULFINCH, 2002, p. 152). Contudo, continua Salis (2003, p. 272) já maior de idade “Édipo foi chamado de bastardo por um habitante de Corinto que estava embriagado” e ao procurar respostas junto ao Oráculo de Delfos este “revelou-lhe que um dia mataria seu pai e se casaria com a própria mãe”. Nesta época “a cidade de Tebas via-se afligida por um monstro, que assolava as estradas e era chamado de Esfinge. Tinha a parte inferior do corpo de leão e a parte superior de uma mulher” (BULFINCH, 2002, p. 152). Do alto de um rochedo a Esfinge detinha todos os viajantes que passavam pelo caminho, propondo-lhes um enigma, com a condição de que passariam sãos e salvos aqueles que o decifrassem, mas seriam mortos os que não conseguissem encontrar a solução. Édipo, destemido, desafiou a Esfinge e respondeu ao enigma. A Esfinge ficou “tão humilhada ao ver resolvido o enigma, que se atirou do alto do rochedo e morreu” (BULSFICH, 2002, p. 272). A sequência da narrativa de acordo com Salis (2003, p. 272) conta que após morte da Esfinge de Tebas, em sua fuga, Édipo “passava por uma estrada quando em uma encruzilhada de três caminhos avistou um carro no qual vinha um homem seguido por seus criados” quando “um dos criados empurrou Édipo, que reagiu, matando todos”. Um destes homens assassinado era Laio (seu pai) e ao chegar a cidade de Tebas, como prêmio por ter matado a Esfinge, casou-se com sua mãe, Jocasta, realizando “assim as duas predições do oráculo: matou o pai e casou-se com a mãe” (SALIS, 2003, p. 272).
A partir do estudo da tragédia grega Freud cunhou o conceito de complexo de Édipo como sendo um conjunto organizado de desejos amorosos e hostis que a criança sente em relação aos pais. “Sob a sua forma dita positiva, o complexo apresenta-se como na história de Édipo Rei: desejo da morte do rival que é a personagem do mesmo sexo e desejo sexual pela personagem do sexo oposto”. Já sob sua forma negativa, o complexo “apresenta-se de modo inverso: amor pelo progenitor do mesmo sexo e ódio ciumento ao progenitor do sexo oposto” (LAPLANCHE, 2001, p. 77).
Conforme leciona Freud (1996, p. 65-66) “um menino mostrará interesse especial pelo pai; gostaria de crescer como ele, ser como ele” e, pouco depois, “o menino começa a desenvolver uma catexia de objeto verdadeira em relação à mãe”, de modo que passa a apresentar “dois laços psicologicamente distintos: uma catexia de objeto sexual e direta para com a mãe e uma identificação com o pai que o toma como modelo”. O grau de maturidade e ajustamento da libido vai depender da resolução sadia do complexo de Édipo, vez que esta resolução terá reflexos na relação com pessoas na fase adulta. Ao resolver de forma satisfatória as relações conflitivas de amor, ódio e competitividade entre pais e filhos as energias serão canalizadas para objetos bem definidos e socializados.
De acordo com Gauer e cols. (2009, p. 100) “no tratamento de família, casais e/ou indivíduos, o que mais frequentemente aparece, em termos de conflitos aparentes, deriva da fase edípica”, pois
[...] quando a criança não consegue superar satisfatoriamente o complexo de Édipo, costuma repetir com parceiros diferentes a relação que estabelecia com os pais de sua infância, independente da qualidade desta relação. O complexo, e a proibição que o caracteriza é identificado como a principal fonte das dificuldades de relacionamento entre homem e mulher. A postura materna e paterna são importantes para a elaboração do Complexo de Édipo, no sentido de estabelecer para a criança os verdadeiros papéis de cada um na vida familiar [...] (GAUER E COLS., 2009, p. 100). (grifo nosso)
De acordo Zimerman (2001, p. 73), ao analisar a obra de Freud, o desdobramento edípico se dá de modo diferente no menino e na menina. No menino, ocorre em três fases: na primeira, ao entrar na fase fálica[1], o menino sente-se “apaixonado” pela mãe e busca seduzi-la sentindo orgulho até mesmo de exibir o pênis (muitas vezes ereto); na segunda o romance edípico é destruído pelo complexo de castração, resultante da interdição por parte da figura paterna e; na terceira o menino abandona o investimento libinal do objeto-mãe que se transformará em uma identificação com a figura materna. Conjuntamente com as ambivalências amadas e odiadas do pai, cuja autoridade ele introjeta, constituem núcleos fundamentais do superego. Já para a menina a fase edípica se processa da seguinte maneira: primeiro a menina também vê na mãe o primeiro objeto de investimento amoroso; segundo, para orientar-se libinalmente para o pai, precisa antes se desapegar da mãe; terceiro ela é considerada castrada quando constata a inferioridade anatômica em relação ao menino; quarto, em razão da inveja do pênis, desapega-se da mãe, ressentida com ela por não tê-la favorecido; quinto substitui a inveja do pênis pelo desejo de possuir um filho do pai, tomando-o, então, como objeto de amor e; por último, identifica-se com a mãe, coloca-se em seu lugar e, querendo substituí-la junto ao pai, passa a desenvolver um ciúme edípico, com ódio pela mãe.
Quando mal resolvido o complexo de Édipo “a mulher, em busca do próprio gozo, tenta ocupar o lugar no gozo do outro, (a ponto de) permanecer como vítima da violência, repetindo a relação vivida com a mãe na relação primitiva do pré-édipo” em outras palavras “é no gozo do outro que ela existe, buscando uma identificação feminina que se revela impossível, pois o homem se apresenta a ela como tudo aquilo que ela precisa para existir como objeto” (FONTOURA, SILVA & KOBAYASHI, 2018, p. 70). Este momento em que a mulher precisa enxergar a si mesma no outro permite que a vítima de violência doméstica fique presa a um ciclo de abusos e não tenha forças para rompê-lo.
Malgrado o complexo de Édipo seja uma das problemáticas fundamentais da teoria e da clínica psicanalítica, a teoria freudiana é criticada porque a tese orbita sobre a primordialidade do pênis o que levaria, por consequência, a inferiorização da mulher e supervalorização do homem. Para Beauvoir (1970, p. 60) “Freud não se preocupou muito com o destino da mulher; é claro que calcou a descrição do destino feminino sobre o masculino (...) ele supõe que a mulher se sente um homem mutilado”. Apesar da relevante teoria cunhada por Freud há outros caminhos que o presente texto não irá explorar, sobretudo porque, por definição, se há complexo há vários componentes (e teorias) adequadas para tentar explicar o assunto, uma vez que a “vida psíquica não é um mosaico; toda ela existe em cada um de seus momentos e cumpre respeitar essa unidade” (BEAUVOIR, 1970, p. 65).
4. Identificação projetiva e feminicídio
De Shakespeare, em “Otelo”, onde se mata pela honra diante do adultério, e não por ódio, até Goethe em “Os Sofrimentos do Jovem Werther” no qual o personagem principal se mata com um tiro de pistola na cabeça por não conseguir esquecer a amada (ELUF, 2007, p. 159 e 161) a paixão como fonte do crime é elemento presente na arte, na literatura e na vida. Mas afinal, o que levaria uma pessoa “normal” a assassinar sua companheira/esposa? As respostas são várias e complexas. Apesar de tortuoso, o caminho para “compreender os motivos que levam certas pessoas, em determinado período de suas vidas, a cometerem um crime grave, como o homicídio ou tentativa de homicídio contra a esposa” é de certo modo “imprescindível para que se busquem formas de identificação e, consequentemente, de prevenção de desfechos trágicos como este” (LARGURA FILHO &MELO, 2012, p. 56).
Embora a agressividade possa ser “considerada uma qualidade natural humana, haja vista que dela necessitamos para nos impulsionar, dar o start, por meio da energia que despende para diversas atividades da vida” (ANTONACCI & NAGY, 2016, p. 69), o desequilíbrio dessa agressividade pode transformar os seres humanos em verdadeiros predadores. Por mais que não haja uma resposta, nos delitos passionais a “motivação constitui uma mistura ou combinação de egoísmo, de amor próprio, de instinto sexual e de uma compreensão deformada da justiça” (ALVES, 1984, p. 18).
Neste sentido, a identificação é um conceito de especial importância para a psicanálise. Na obra de Freud a identificação emerge como “mecanismo psicológico pela qual o sujeito humano se constitui” e tem relação “direta principalmente com a colocação em primeiro plano do complexo de Édipo em seus efeitos estruturais (...) os investimentos nos pais são abandonados e substituídos por identificações” (LAPLANCHE, 2001, p. 227). Ativada pela parte inconsciente do ego, “o sujeito se constitui e se transforma, assimilando ou se apropriando, parcial ou totalmente, dos aspectos, atributos ou traços das pessoas mais íntimas que o cercam” (ZIMMERMAN, 2001, p, 204).
Não se trata, contudo, da ideia simplória de que A adota traços de B, identificando-se com B. Para Freud o processo se dá por “duas instâncias inconscientes” entre o “eu e o objeto”, sendo o objeto representações inconscientes de si mesmo “a espera de um outro externo que venha a ajustar-se a elas” (NASIO, 1997, 100-103). Já para Lacan o processo de identificação “designa o nascimento de um lugar novo, a emergência de uma nova instância psíquica” (NASIO, 1997, p. 111).
Sendo a identificação um processo de substituição ou ressurgimento, o conceito de identificação projetiva, cunhado por Melaine Klein (1882-1960), oferece uma resposta adequada (não exaustiva) para compreender o homicídio contra a esposa/companheira. Segundo Zimmerman (2001, p. 206) o que “fundamentalmente diferencia a concepção de Freud da de M. Klein, é que Freud pensava a projeção em termos de objetos totais projetados sobre os objetos, enquanto Klein postulou a identificação projetiva, com objetos parciais, projetados dentro de outras figuras objetais”. De acordo com Joseph (1987, p. 146), Klein deu-se conta da identificação projetiva quando “explorava o que chamou de posição esquizoparanóide, isto é, uma constelação de um tipo particular de relações de objeto, ansiedades e defesas”. Na visão de Klein a identificação projetiva “designa um mecanismo que se traduz por fantasias em que o sujeito introduz a sua própria pessoa (his self) totalmente ou em parte no interior do objeto para o lesar, para o possuir ou para o controlar” (LAPLANCHE, 2001, p. 232). Em linhas gerais a identificação projetiva pode ser compreendida como um “um mecanismo de defesa primitivo, que invade a mente do receptor e que não respeita ou considera a existência do outro em suas particularidades” (CAVALLARIM & MOSCHETA, 2007, p. 3).
Na fase primitiva
[...] o bebê em seus primeiros anos de vida projeta seu amor e ódio sobre o mundo que o cerca e vai internalizando objetos cindidos, representados em última instância por aquilo que se convencionou chamar de mãe boa e mãe má. Nesta fase a identificação projetiva é utilizada como um mecanismo de defesa psíquico, na medida em que mantém os objetos cindidos e permite a expulsão de elementos dolorosos do mundo interno do bebê. Desta forma, o bebê se protege da percepção de separação, dependência, admiração, e dos seus consequentes sentimentos de perda, de raiva e de inveja. [...] (CAVALLARI & MOSCHETA, 2007, p. 03) (grifo nosso)
No artigo publicado em 1946 intitulado “Notas sobre alguns mecanismos esquizóides”, que deu origem ao conceito em questão, Klein (1991, p. 20) explica que “surgem na primeira infância ansiedades, características das psicoses, que forçam o ego a desenvolver mecanismos de defesa específicos”, de modo que a identificação projetiva se torna característica “típica do período inicial da vida do indivíduo e que em algumas pessoas perturbadas persiste por toda a vida” (JOSEPH, 1987, p. 146). Por meio deste mecanismo a pessoa expulsa as partes do self para dentro do objeto a ponto de enfraquecer o ego e gera confusão e indiscriminação entre o sujeito e objeto. O ego aqui é entendido como uma instância psíquica entre o id e o superego. Segundo Freud é o ego que “coloca o princípio da realidade no lugar do princípio do prazer que reina sem restrições no id (...) é a oposição entre razões e paixões” (LAPLANCHE, 2001, p. 134).
Se a expulsão “for de partes consideradas más, há intensificação da persecutoriedade em relação ao objeto” (RIBEIRO, 2016, p. 2). Já se a expulsão (projeção) for de “partes boas, isso tanto pode tornar as relações de objeto mais amorosas, favorecendo a introjeção do bom objeto e gerando integração, quanto um enfraquecimento do ego, caso a projeção das partes boas seja excessiva” (RIBEIRO, 2016, p. 2), no entanto, “se a projeção de partes boas for demasiada, a mãe (e posteriormente outras pessoas) pode tornar-se o ideal do ego, favorecendo relações de dependência extrema e um empobrecimento do ego” (RIBEIRO, 2016, p. 6), uma vez que aspectos bons são todos atribuídos a um outro e não podem ser assimilados pelo ego.
Klein (1991, p. 21) afirma que “as relações de objeto existem desde o início da vida, sendo o primeiro objeto o da mãe, o qual, para a criança, fica cindido em um seio bom (gratificador) e um seio mau (frustrador)”. Esta cisão, segundo a autora “resulta numa separação entre o amor e ódio” e o “impulso destrutivo volta-se contra o objeto e expressa primeiramente em fantasias de ataques sádico-orais ao seio materno, os quais evoluem para violentos ataques contra o corpo materno com todos os meios sádicos”. Por ser uma característica primitiva “todo o bem e o mal encontrados no mundo das relações humanas serão encontrados no âmago do ser humano. (...) no bebê existe amor e ódio com plena intensidade humana” (WINNICOTT, 1999, p. 94), de modo que estes conflitos “persistem por toda a vida, podendo tornar-se uma fonte de perigo nos relacionamentos humanos” (GAUER E COLS, 2009, p. 95).
O bebê passa a ter ódio da mãe em razão das suas frustrações e estabelece uma relação agressiva com o objeto. A consequência da relação agressiva com o objeto, de acordo com Klein (1991, p. 18) se dá “quando a projeção deriva do impulso para danificar ou controlar a mãe, a criança sente esta como um perseguidor”. Neste ponto é essencial que haja a projeção de sentimentos bons e de partes boas da criança dentro da mãe para que ela possa desenvolver relações sadias com o objeto e integrar seu eu. Contudo, alerta a autora “se este processo de projeção for excessivo, sentem-se perdidas partes boas da personalidade e deste modo a mãe se transforma em ideal do eu; este processo debilita e empobrece o eu” (KLEIN, 1991, p. 18).
A identificação projetiva pode se apresentar com múltiplos objetivos como o de “se livrar de partes indesejadas do self que causa ansiedade ou dor”, “projetar o self ou partes do self para dentro de um objeto, para dominá-lo e controlá-lo e, assim, evitar qualquer sentimento de separação”, “penetrar num objeto para apoderar-se e apropriar-se de suas capacidades” e “invadir, a fim de danificar ou destruir o objeto” (JOSEPH, 1987, p. 147). Segundo Camargo (2002, p. 133) “Klein relaciona a identificação projetiva com a inveja e descreve o ingresso forçado em outra pessoa com o fim de destruir suas melhores qualidades”.
Este mecanismo pode evitar qualquer percepção de separação, dependência, admiração, ou suas concomitantes sensações de perda, raiva, inveja, porquanto há um empobrecimento do ego que afasta a pessoa a ter a correta percepção da realidade. Ao projetar o “Eu no Outro” o agressor doméstico tem a percepção de que “a mãe é boa e a esposa perigosa”, fazendo com que, inclusive, a violência contra a mulher seja comparada ao matricídio. O indivíduo cria uma “fantasia” que “pode ter um efeito poderoso sobre o receptor” (JOSEPH, 1987, p. 147) e pode ser traduzida por sentimentos como posse, poder, controle do objeto e agressões de forma que “o indivíduo busque proteger o ego contra o insuportável conflito entre amor e ódio mal resolvido ainda na infância” (NARDI & BENETTI, 2002, p. 62). Nesta fantasia o agressor idealiza a “mãe como uma santa, sem defeitos e protetora, ficando a esposa com a representação da mãe desvalorizada, perigosa e atacada” (GAUER e cols., 2009, p. 91).
Pela lógica fantasiosa do indivíduo que faz uso inconsciente da identificação projetiva, “o desejo de destruir um objeto totalmente bom levaria à destruição vingativa do objeto totalmente mau” e, portanto “a falta de controle sobre o objeto ou a eminência de perdê-lo gera uma forte angústia” (GAUER E COLS., 2009, p. 93) que o levaria a destruir o objeto, pois a “a pessoa pensa que o ódio e a agressão – ‘o mal’ – residem no outro e o self retém todo o bem” (SALGADO & MACRI, 2018, p. 329). Adamo, citando Caper, (1999, p. 155), propõe que trata-se de “uma forma de testar o objeto externo para ver como ele é, como reage a determinadas verdades e sentimentos”. Quando a realidade externa
[...] se torna uma réplica da realidade interna, a identificação projetiva deixa de ser, como sugeriu Caper, instrumento de experimentação e passa a ser utilizada como uma defesa, uma forma de se livrar de conteúdos mentais vividos como intoleráveis, pois não se pode mais vivenciar as projeções como experimentações de consequências limitadas, mas como alterações plenas e catastróficas da realidade externa (...) O que acontecerá se eu fizer isso para ele? Se eu fizer com que ele sinta o que sinto, o que ele fará? Ele irá explodir, isto é, o que estou projetando é explosivo? Ele achará isso agradável, aborrecido, incompreensível, ou seja, o que estou projetando é agradável, aborrecido, incompreensível?” [...] (Adamo, 1999, p. 158) (grifo nosso)
Este complexo mecanismo da psique humana oferece uma possível resposta para explicar a ascendência de casos de feminicídio, pois se revela como um “protótipo de um relacionamento agressivo” (CAMARGO, 2002, p. 133). Até mesmo dentro da psicanálise “há abordagens diferentes para compreender a relação do sujeito com o objeto” (LAPLANCHE & PONTALIS, 2001, p. 446), uma vez que é comum que o homem sinta um desejo de posse em relação a mulher e, a partir disso, diversos atos de violência têm início. A probabilidade da perda do objeto amado é encarada pelo agressor como perda total, de si mesmo, porque não possui as imagens internalizadas para a garantia de sua segurança. Indivíduos que tiveram a experiência de violência doméstica quando crianças podem envolver-se em relacionamentos objetais com características patológicas, já que as experiências negativas internalizadas organizam-se como um modelo básico para o estabelecimento de relações no mundo (NARDI & BENETTI, 2014, p. 119). O amor também é apresentado como perturbador das relações pessoais e de certo modo prende a mulher a um relacionamento abusivo, pois o homem é capaz de gozar sem amor, já o prazer feminino está do lado do ilimitado e necessita de evidências (provas) do amor que recebe.
Nessa perspectiva podemos pensar que a violência doméstica aponta não só para uma dinâmica viciosa de privação e traumas, mas essencialmente, para uma falta de experiências emocionais que possam ser significadas e alcançar representações em símbolos (ADAMO, 1999, p. 158). Porém, mesmo nas reflexões psicológicas não se pode desprezar as diversas circunstâncias sociais, culturais e econômicas que ajudam a contextualizar a problemática da violência de gênero, sobretudo em relação à formação da sociedade fundamentada nas bases do patriarcalismo.
5. Considerações finais
A violência doméstica pode ser compreendida como uma das consequências da sociedade patriarcal e talvez só se tenha uma solução definitiva no momento em que o tecido social seja modificado para reconhecer a mulher como sujeito de direitos e deveres iguais aos homens. O próprio Estado, durante o curso da história, negou a existência do problema e até mesmo criou mecanismos legais para marginalizar a mulher na sociedade.
A psicanálise, embora não possa ser colocada apenas como uma ferramenta que produz soluções, ao inserir dúvidas nas certezas do discurso do Outro muda-se o enfoque da compreensão do problema. Não que a psicanálise vá apresentar respostas exaustivas sobre o assunto. A temática é complexa e deve ser abordada sob a ótica interdisciplinar. Atualmente, no campo jurídico, tanto o agressor quanto a vítima são tratados apenas como partes em um processo judicial e a finalidade está concentrada na punição do indivíduo, estratégia que está se revelando pouco eficiente para reduzir os casos de violência doméstica.
Uma abordagem interdisciplinar de cada caso concreto, sobretudo no campo da saúde mental, pode oferecer caminhos mais frutíferos tanto para o agressor quanto para a vítima romper o ciclo de violência doméstica. Como o femicídio é o último estágio da violência doméstica a intervenção estatal deve se dar antes deste fim trágico. Deste modo, oferecer tratamento psicanalítico tanto para o agressor quanto para a vítima pode representar um avanço para diminuir os casos de violência doméstica.
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