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O Trabalho de Cuidado e a Questão de Gênero

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Agenda 07/10/2024 às 17:55

Introdução

O trabalho de cuidado tem sido, ao longo da história, subestimado e invisibilizado, especialmente por estar associado ao ambiente doméstico e a papéis tradicionalmente femininos. Este tipo de trabalho, que inclui a criação de filhos, o cuidado de idosos e doentes, além da manutenção de lares, é essencial para a reprodução social e econômica, mas raramente é reconhecido como tal. Nas palavras de Nancy Fraser (2016), “o trabalho de cuidado é a infraestrutura oculta que sustenta a economia”, sem o qual as engrenagens do capitalismo não funcionariam de forma adequada.

No Brasil, esse trabalho é em grande parte realizado por mulheres, muitas delas negras e de classes sociais mais baixas, o que revela uma sobreposição de desigualdades de gênero e raça. A invisibilização do trabalho de cuidado reflete-se na desvalorização econômica, na falta de direitos trabalhistas adequados e na precariedade das condições laborais dessas trabalhadoras. Este TCC examina o tratamento jurídico do trabalho de cuidado no Brasil, com ênfase nas questões de gênero, destacando as limitações da legislação trabalhista e os desafios enfrentados no processo de judicialização de demandas relacionadas a este tipo de atividade.


Capítulo I: O Conceito de Trabalho de Cuidado e a Divisão Sexual do Trabalho

1.1 A Origem do Trabalho de Cuidado e a Divisão de Gênero

O trabalho de cuidado tem raízes profundas nas sociedades patriarcais, onde a divisão sexual do trabalho segregava as mulheres ao espaço privado e os homens ao espaço público. Segundo Silvia Federici (2017), "o capitalismo se apropriou do trabalho reprodutivo feminino, relegando-o ao lar, sem remuneração, e tratando-o como uma extensão natural da biologia feminina". Essa dinâmica de exploração foi central para o desenvolvimento da economia capitalista, que se baseou no trabalho invisível e não remunerado das mulheres.

Federici argumenta ainda que a divisão sexual do trabalho não foi um fenômeno "natural", mas uma construção social, que consolidou as mulheres como principais responsáveis pelo cuidado e pela reprodução da força de trabalho. Isso resultou na marginalização das atividades de cuidado no campo econômico, ao passo que o trabalho masculino, vinculado ao setor produtivo, foi reconhecido e remunerado.

1.2 O Trabalho de Cuidado e a Feminização da Pobreza

No Brasil, a divisão sexual do trabalho adquire contornos específicos, com uma estreita conexão entre gênero, raça e classe. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2020, as mulheres representam 92% da força de trabalho no serviço doméstico, e, dentre elas, 63% são negras. Essa super-representação das mulheres negras em atividades de cuidado doméstico evidencia um legado histórico de exploração, que remonta ao período escravagista e persiste na estrutura do mercado de trabalho contemporâneo.

A relação entre o trabalho de cuidado e a feminização da pobreza deve ser compreendida dentro do contexto da colonização e da escravidão no Brasil. Durante o período colonial, o trabalho doméstico era realizado quase exclusivamente por mulheres escravizadas, muitas delas negras, que desempenhavam funções associadas ao cuidado e à manutenção da casa grande. Essa herança histórica de exploração racial e de gênero moldou as dinâmicas sociais e econômicas pós-abolição, perpetuando a marginalização das mulheres negras no mercado de trabalho. A socióloga Lélia Gonzalez (1984) aponta que a experiência histórica de mulheres negras no Brasil está profundamente marcada pela exploração em atividades de cuidado, tanto no período escravista quanto nas dinâmicas capitalistas subsequentes, reforçando o ciclo de pobreza e exclusão social.

Após a abolição da escravidão em 1888, as mulheres negras continuaram a ser empurradas para os setores mais precarizados e informais da economia, sobretudo no serviço doméstico, que passou a ser uma extensão das tarefas que realizavam na escravidão. Ao contrário do que ocorreu com outras categorias profissionais, que gradualmente conquistaram formalização e direitos trabalhistas, o trabalho doméstico permaneceu por muito tempo à margem das proteções legais asseguradas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) de 1943. Somente em 2013, com a Emenda Constitucional nº 72 e a posterior Lei Complementar nº 150/2015, conhecida como PEC das Domésticas, houve uma ampliação significativa dos direitos das trabalhadoras domésticas, o que incluiu o reconhecimento de direitos básicos, como a jornada de trabalho limitada e o recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).

Entretanto, apesar desses avanços legislativos, a precariedade e a informalidade permanecem características centrais desse setor. De acordo com estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2019, mais de 70% das trabalhadoras domésticas estavam empregadas de forma informal, sem acesso a direitos básicos como férias remuneradas, aposentadoria ou licença maternidade. Além disso, mesmo entre as trabalhadoras formalizadas, os salários são frequentemente baixos, refletindo uma hierarquia de desvalorização que está intrinsecamente ligada à condição de gênero e raça.

A economista Helena Hirata (2014) utiliza o conceito de "feminização da pobreza" para descrever como a precariedade e a informalidade afetam de maneira desproporcional as mulheres, especialmente aquelas envolvidas no trabalho de cuidado. Para Hirata, "a divisão sexual do trabalho e a divisão racial do trabalho são dois lados da mesma moeda: ambas servem para garantir a subalternidade de determinados grupos sociais, mantendo as desigualdades estruturais no mercado de trabalho". O conceito de feminização da pobreza é central para a compreensão de como o trabalho de cuidado, particularmente o trabalho doméstico, se insere em um sistema econômico que perpetua a desigualdade de gênero e de raça, reforçando ciclos de pobreza entre as mulheres que exercem essas funções.

O trabalho de cuidado é marcado pela falta de reconhecimento econômico, cultural e político, sendo frequentemente considerado uma extensão das obrigações “naturais” das mulheres, como aponta a antropóloga norte-americana Joan Tronto (1993). Segundo Tronto, o cuidado é essencial para a manutenção da vida social, mas o fato de ser relegado quase que exclusivamente às mulheres, e de forma desproporcional às mulheres racializadas e pobres, revela uma hierarquia de valor que desqualifica esse trabalho como "não produtivo" e, portanto, menos digno de reconhecimento e remuneração justa. Tal lógica contribui para a manutenção da feminização da pobreza, ao privar as mulheres cuidadoras de oportunidades econômicas e de participação igualitária no mercado de trabalho.

Além disso, a sobrecarga de responsabilidades de cuidado doméstico que recai sobre as mulheres – muitas vezes em regime de dupla jornada, ao combinarem o trabalho remunerado com as atividades não remuneradas do lar – restringe suas oportunidades de ascensão profissional e de participação em setores mais valorizados da economia. Como observa a socióloga brasileira Heleieth Saffioti (2001), “a sociedade patriarcal não apenas define a divisão sexual do trabalho, mas também faz com que as mulheres assumam o papel de cuidadoras por excelência, limitando suas perspectivas de crescimento e sua inserção em espaços de poder”.

Em suma, a feminização da pobreza, amplamente caracterizada pela precarização do trabalho de cuidado, reflete a interseção de desigualdades de gênero, raça e classe, resultando em condições de vida e trabalho adversas para um amplo contingente de mulheres no Brasil. A falta de proteção jurídica adequada e o baixo reconhecimento social dessas atividades são aspectos que necessitam de reformas estruturais profundas para que seja possível reverter a marginalização histórica que perpetua essas desigualdades.


Capítulo II: A Regulação Jurídica do Trabalho de Cuidado no Brasil

2.1 A Evolução Legislativa: A PEC das Domésticas e a Lei Complementar nº 150/2015

O marco jurídico mais significativo na regulamentação do trabalho de cuidado no Brasil foi a Emenda Constitucional nº 72, de 2013, popularmente conhecida como "PEC das Domésticas". Esta emenda representou uma tentativa de equiparar os direitos dos trabalhadores domésticos aos demais trabalhadores regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Até então, as trabalhadoras domésticas eram historicamente marginalizadas em termos de direitos, recebendo um tratamento diferenciado e inferior em comparação com outras categorias de trabalhadores.

A PEC das Domésticas ampliou direitos fundamentais, como o limite da jornada de trabalho, o pagamento de horas extras e a obrigatoriedade de inclusão no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). No entanto, mesmo com a promulgação da Emenda Constitucional, havia a necessidade de uma legislação complementar que regulasse esses direitos em detalhes e garantisse sua aplicação prática. Isso ocorreu com a Lei Complementar nº 150, de 2015, que regulamentou as novas garantias estabelecidas pela PEC e trouxe avanços significativos no reconhecimento dos direitos trabalhistas dessa categoria.

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Entre os principais direitos garantidos pela Lei Complementar nº 150, destacam-se:

Essas mudanças buscaram mitigar a vulnerabilidade das trabalhadoras domésticas, que historicamente sofrem com a informalidade, a precariedade das condições de trabalho e a ausência de direitos básicos. A Lei Complementar nº 150 inseriu mecanismos que, em tese, ofereceriam maior segurança jurídica e social a essa categoria de trabalhadoras.

Contudo, apesar dos avanços legislativos, a implementação plena dessas garantias enfrenta desafios consideráveis na prática, especialmente no que tange à formalização dos vínculos empregatícios. Segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2021, mais de 70% das trabalhadoras domésticas ainda estavam na informalidade, o que significa que a maior parte delas continuava sem acesso a direitos trabalhistas garantidos por lei, como férias remuneradas, 13º salário e FGTS. Esse índice é um reflexo direto da desvalorização social do trabalho doméstico, associado a estigmas históricos de raça, classe e gênero, que colocam as trabalhadoras domésticas em uma posição de extrema vulnerabilidade no mercado de trabalho.

Segundo o Relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre o trabalho doméstico no Brasil, publicado em 2018, o país ainda enfrenta dificuldades para garantir a plena proteção dos direitos das trabalhadoras do lar, mesmo após as reformas legislativas. Além da alta taxa de informalidade, o relatório destaca que o nível de remuneração das trabalhadoras domésticas continua muito inferior à média salarial de outras categorias, sendo que, em muitos casos, essas trabalhadoras ganham menos que o salário mínimo estipulado pela legislação.

2.2 A Proteção Jurídica dos Cuidadores Institucionais

Embora o foco da legislação sobre o trabalho de cuidado tenha sido historicamente o âmbito doméstico, o trabalho de cuidado prestado em ambientes institucionais – como hospitais, lares de idosos, creches e instituições de saúde – também merece destaque. Esses cuidadores, muitas vezes chamados de auxiliares de enfermagem, técnicos de enfermagem ou educadores infantis, realizam atividades similares às das trabalhadoras domésticas em termos de cuidado direto com pessoas, mas estão formalmente integrados ao regime da CLT.

O trabalho de cuidado institucionalizado enfrenta desafios próprios, ainda que com um grau de formalização maior em comparação ao trabalho doméstico. De acordo com o Censo do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), realizado em 2020, a demanda por serviços de cuidado institucional aumentou substancialmente nos últimos anos, devido ao envelhecimento da população e ao aumento da demanda por cuidados infantis, especialmente em áreas urbanas. Entretanto, a oferta de condições dignas de trabalho para esses profissionais ainda é insuficiente. Muitos cuidadores institucionais sofrem com baixa remuneração, sobrecarga de trabalho e falta de reconhecimento social, fenômeno que se agrava com a feminização dessas profissões.

A legislação brasileira, através do Decreto nº 5.452, que regula a CLT, estabelece normas gerais para os trabalhadores de cuidado institucional. Eles têm direito a intervalos para descanso e refeição, limitação de jornada e pagamento de horas extras, além de proteção contra a dispensa arbitrária em determinados casos, como gestantes ou pessoas em situação de estabilidade pré-aposentadoria. Entretanto, assim como ocorre com o trabalho doméstico, a fiscalização das condições de trabalho é insuficiente, especialmente em pequenas instituições e em ambientes privados.

Estudos realizados pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em 2019 indicam que a sobrecarga de trabalho é uma queixa frequente entre cuidadores de idosos em instituições. Em muitos casos, esses trabalhadores são responsáveis por cuidar de um número excessivo de pessoas, o que compromete a qualidade do serviço prestado e gera desgaste físico e emocional. Esse fenômeno é particularmente preocupante em lares de idosos e unidades de cuidados paliativos, onde a demanda por atenção contínua e específica exige um número adequado de profissionais, o que muitas vezes não é respeitado por razões econômicas.

Outro aspecto que merece atenção é o reconhecimento profissional. Embora o trabalho de cuidado prestado em ambientes institucionais seja formalmente regulamentado, ele não recebe o mesmo nível de valorização social e econômica que outras profissões. Muitas vezes, o trabalho de cuidador é visto como uma extensão das tarefas domésticas, refletindo os estereótipos de gênero que associam o cuidado à natureza feminina e, por isso, à desvalorização econômica. A Organização Internacional do Trabalho (OIT), em seu relatório de 2020, chama atenção para a necessidade de políticas que promovam o reconhecimento social e a dignidade do trabalho de cuidado, tanto no âmbito doméstico quanto institucional, considerando sua importância crucial para o funcionamento da sociedade e a garantia do bem-estar de populações vulneráveis, como crianças, idosos e pessoas com deficiência.

Portanto, embora a legislação brasileira tenha avançado na proteção jurídica tanto das trabalhadoras domésticas quanto dos cuidadores institucionais, ainda existem desafios estruturais que precisam ser superados para que esses trabalhadores tenham condições dignas de trabalho. O fortalecimento da fiscalização, a formalização dos vínculos empregatícios e a valorização social e econômica dessas profissões são passos essenciais para garantir que as atividades de cuidado sejam devidamente reconhecidas e remuneradas de forma justa.

3.1 Desafios no Acesso à Justiça Trabalhista

O acesso à justiça é um direito fundamental garantido pela Constituição Federal de 1988, mas as trabalhadoras de cuidado, especialmente as domésticas, enfrentam obstáculos significativos ao tentarem recorrer à Justiça do Trabalho. Esses desafios estão intimamente ligados à precariedade das condições de trabalho, à baixa escolaridade e ao desconhecimento dos próprios direitos, o que frequentemente impede essas trabalhadoras de buscarem a proteção legal. Dados do Tribunal Superior do Trabalho (TST) revelam que os processos movidos por trabalhadoras domésticas representam uma fração muito pequena do total de ações trabalhistas no Brasil, o que evidencia o sub-registro das violações de direitos nessa categoria.

Historicamente, o trabalho doméstico tem sido marginalizado no Brasil, tanto no que diz respeito ao reconhecimento legal quanto à inclusão nos mecanismos formais de justiça. As trabalhadoras domésticas enfrentam barreiras socioeconômicas que limitam sua capacidade de acessar o sistema judiciário. Essas barreiras incluem a falta de recursos financeiros para custear os trâmites processuais, o medo de represálias dos empregadores e a ausência de organização sindical robusta que possa representá-las coletivamente. Estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) demonstram que, em 2019, 76% das trabalhadoras domésticas no Brasil tinham apenas o ensino fundamental incompleto, o que contribui para sua vulnerabilidade no ambiente de trabalho e para a dificuldade de entenderem seus direitos e os mecanismos de proteção legal disponíveis.

O desconhecimento dos direitos trabalhistas é um fator especialmente crítico. Muitas trabalhadoras de cuidado, ao longo da história, foram empregadas de forma informal, sem a proteção de contratos formais e sem acesso às garantias previstas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) ou na Lei Complementar nº 150/2015, que regula o trabalho doméstico. O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), em levantamento de 2020, identificou que apenas uma parcela dessas trabalhadoras tem pleno conhecimento dos seus direitos trabalhistas, o que contribui para a baixa judicialização de questões que envolvem a categoria.

Outro aspecto importante a ser considerado é o contexto de vulnerabilidade socioeconômica em que essas mulheres vivem. A maioria das trabalhadoras domésticas e cuidadoras no Brasil é composta por mulheres negras, que pertencem às camadas mais baixas da pirâmide social. De acordo com o Censo de 2020 do IBGE, a maioria das trabalhadoras domésticas está inserida em famílias de baixa renda, muitas vezes como a principal (ou única) provedora. Esse cenário cria uma dependência econômica em relação ao empregador, o que leva essas mulheres a hesitarem em buscar a justiça trabalhista, com receio de perderem seu emprego ou de serem retaliadas no mercado de trabalho.

A situação se agravou ainda mais com a Reforma Trabalhista de 2017, introduzida pela Lei nº 13.467, que alterou significativamente a dinâmica do processo trabalhista no Brasil. Um dos principais pontos de crítica à reforma foi a introdução da sucumbência, ou seja, a obrigatoriedade de a parte perdedora arcar com os custos processuais, incluindo honorários advocatícios e periciais. Antes da reforma, o Processo do Trabalho no Brasil tinha uma característica distintiva: a gratuidade ampla para trabalhadores de baixa renda. Com as mudanças, no entanto, essa gratuidade foi restringida, e trabalhadores que recorrem à justiça, caso percam a ação, são obrigados a pagar os custos processuais, salvo se demonstrarem incapacidade financeira.

Para as trabalhadoras de cuidado, especialmente aquelas inseridas na informalidade ou em condições de baixa remuneração, esse novo regime jurídico representa um obstáculo significativo à judicialização. O medo de perder a causa e acabar endividadas dissuade muitas trabalhadoras de buscar seus direitos na Justiça do Trabalho, mesmo quando enfrentam graves violações, como a falta de pagamento de salários, jornadas excessivas ou assédio moral e sexual no ambiente de trabalho. De acordo com estudo conduzido pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) em 2018, o número de ações trabalhistas envolvendo trabalhadores domésticos diminuiu em mais de 30% após a reforma, o que sugere que a reforma teve um impacto negativo sobre a capacidade dessas trabalhadoras de acessar a justiça.

Outro fator que agrava a situação é a demora na resolução das ações trabalhistas. Para trabalhadoras que já enfrentam dificuldades econômicas, a duração prolongada dos processos pode ser um fator desmotivador. Muitas vezes, as trabalhadoras de cuidado não conseguem se manter financeiramente enquanto aguardam uma decisão judicial, o que as leva a preferirem resolver os conflitos diretamente com os empregadores, sem recorrer ao sistema judicial, ainda que isso implique na renúncia de seus direitos.

O índice de informalidade também desempenha um papel crucial na dinâmica de acesso à justiça. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2020, mais de 70% das trabalhadoras domésticas no Brasil não tinham carteira de trabalho assinada. A informalidade impede que essas trabalhadoras tenham acesso aos direitos garantidos pela legislação trabalhista, como o pagamento de férias, 13º salário, licença-maternidade e FGTS. Sem um contrato formal, muitas delas sequer podem comprovar a existência da relação de trabalho perante a Justiça, o que dificulta ainda mais o processo de reivindicação de direitos.

Nesse contexto, as trabalhadoras de cuidado acabam frequentemente à margem do sistema de proteção jurídica, não apenas devido às suas condições socioeconômicas, mas também em função de uma estrutura processual que, ao invés de facilitar o acesso à justiça, muitas vezes o inviabiliza. A falta de um suporte adequado para essas trabalhadoras é um reflexo das desigualdades de gênero e raça que permeiam o sistema jurídico e trabalhista brasileiro.

Por fim, é importante destacar a ausência de políticas públicas voltadas à assistência jurídica para trabalhadoras de cuidado e domésticas. O Ministério Público do Trabalho (MPT) tem desempenhado um papel importante em iniciativas voltadas à proteção dessas trabalhadoras, mas a criação de canais de denúncia acessíveis e a oferta de assistência jurídica gratuita e especializada são fundamentais para garantir que essas mulheres possam exercer seus direitos de maneira plena. Sem políticas que democratizem o acesso à Justiça do Trabalho, as violações de direitos trabalhistas que afetam desproporcionalmente as trabalhadoras de cuidado continuarão a ser invisibilizadas.

3.2 A Judicialização de Questões de Gênero no Trabalho de Cuidado

Os tribunais brasileiros ainda enfrentam dificuldades para lidar com as especificidades das questões de gênero no contexto do trabalho de cuidado. Casos de assédio moral e sexual, discriminação de gênero e irregularidades contratuais são comuns, mas muitas vezes subestimados no julgamento das ações trabalhistas.

A doutrinadora Alice Monteiro de Barros (2018) destaca que “o Direito do Trabalho, embora protecionista em sua essência, ainda carece de uma abordagem mais sensível às questões de gênero, especialmente no tocante ao trabalho de cuidado, que permanece à margem do sistema de proteção tradicional”. Essa lacuna no tratamento judicial das demandas das trabalhadoras de cuidado reflete-se na ausência de precedentes sólidos que garantam uma maior proteção e igualdade de tratamento.

Para garantir maior proteção às trabalhadoras de cuidado e reduzir as desigualdades de gênero no mercado de trabalho, é fundamental que sejam implementadas reformas legislativas e políticas públicas eficazes. Essas medidas devem focar na formalização do trabalho de cuidado, no fortalecimento da fiscalização trabalhista, na adoção de ações afirmativas e na ampliação do acesso à justiça. A seguir, abordam-se algumas propostas detalhadas.

Fortalecimento da Fiscalização Trabalhista

Um dos principais obstáculos à efetivação dos direitos trabalhistas no Brasil é a falta de fiscalização adequada. Embora o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Secretaria de Inspeção do Trabalho tenham um papel central na supervisão e garantia do cumprimento da legislação trabalhista, a capacidade desses órgãos é muitas vezes limitada devido à falta de recursos e de pessoal especializado. Segundo estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2020, a quantidade de auditores fiscais do trabalho no Brasil vem diminuindo ao longo dos anos, o que compromete a fiscalização, especialmente em áreas mais vulneráveis, como o trabalho doméstico.

A fim de mitigar esse problema, é necessário investir na capacitação e ampliação dos quadros de auditores fiscais, permitindo maior abrangência e eficácia nas operações de fiscalização. Campanhas de conscientização em parceria com entidades de classe e organizações não governamentais também podem desempenhar um papel relevante na educação das trabalhadoras de cuidado sobre seus direitos e nas estratégias para denunciar irregularidades, especialmente em setores com alta informalidade. Além disso, a criação de linhas de denúncia anônimas e o uso de tecnologia de monitoramento digital podem facilitar o acesso de trabalhadoras ao sistema de fiscalização.

Formalização do Trabalho de Cuidado

A formalização do trabalho de cuidado é um passo crucial para garantir a proteção jurídica das trabalhadoras e combater a precariedade no setor. Segundo o IBGE (2020), cerca de 70% das trabalhadoras domésticas atuam na informalidade, o que significa que uma grande parte delas está desprovida de direitos fundamentais, como férias remuneradas, 13º salário e aposentadoria. A Lei Complementar nº 150/2015, que ampliou os direitos das trabalhadoras domésticas, foi um avanço importante, mas sua plena implementação depende de mecanismos que incentivem a formalização.

Uma possível medida seria a criação de incentivos fiscais para empregadores que formalizam o vínculo de trabalho com cuidadoras. Esses incentivos podem incluir a redução de encargos trabalhistas temporários, o que tornaria mais atrativo para os empregadores formalizarem seus empregados. Além disso, campanhas educativas poderiam ser promovidas para conscientizar a sociedade sobre a importância da formalização não apenas para o cumprimento das obrigações legais, mas também para garantir um trabalho digno e seguro para as trabalhadoras.

Outro aspecto importante é a facilitação do processo de registro de empregadas domésticas, que, embora tenha sido simplificado pela criação do sistema eSocial, ainda enfrenta resistência e dificuldades por parte de muitos empregadores, sobretudo em regiões mais carentes e com menor acesso à informação. Tornar o processo mais acessível, especialmente via plataformas digitais simplificadas, pode contribuir para aumentar a formalização no setor.

Adoção de Medidas Afirmativas

A promoção da equidade de gênero no mercado de trabalho também requer medidas afirmativas, capazes de corrigir desigualdades estruturais que afetam desproporcionalmente as mulheres, sobretudo aquelas envolvidas no trabalho de cuidado. Políticas de cotas para mulheres em cargos de liderança e programas de qualificação profissional são exemplos de iniciativas que podem melhorar a inserção das mulheres no mercado formal de trabalho e aumentar suas oportunidades de ascensão social.

Programas de qualificação voltados especificamente para trabalhadoras de cuidado, como cuidadoras de idosos, crianças e pessoas com deficiência, podem desempenhar um papel importante no aumento da profissionalização e reconhecimento dessas atividades. Tais programas poderiam ser implementados em parceria com instituições públicas e privadas, como universidades e escolas técnicas, oferecendo cursos de curta e longa duração, adaptados às necessidades e disponibilidade de tempo das trabalhadoras.

A política de cotas é uma medida que tem sido amplamente debatida, e sua implementação pode ser uma forma eficaz de aumentar a presença feminina em posições de decisão. A adoção de cotas para mulheres, especialmente mulheres negras, em cargos de liderança ou funções estratégicas em empresas e no setor público pode contribuir para a promoção de uma sociedade mais igualitária. Estudos do Banco Mundial (2019) indicam que a diversidade nas equipes de liderança aumenta a inovação e melhora o desempenho organizacional.

Ampliação do Acesso à Justiça

A Reforma Trabalhista de 2017, introduzida pela Lei nº 13.467, trouxe uma série de mudanças no Processo do Trabalho que impactaram diretamente o acesso à justiça pelas trabalhadoras de baixa renda, especialmente as trabalhadoras domésticas e de cuidado. A introdução da sucumbência, que obriga a parte perdedora a arcar com os custos processuais, tornou o acesso ao judiciário mais oneroso e arriscado para essas trabalhadoras. Segundo dados do Tribunal Superior do Trabalho (TST), houve uma redução significativa no número de ações trabalhistas após a reforma, o que sugere que muitas trabalhadoras estão desincentivadas a buscar a justiça por temerem os custos processuais.

Para garantir o acesso pleno à justiça trabalhista, seria necessário rever as disposições da Reforma Trabalhista, especialmente no que se refere à sucumbência. Uma solução possível seria a criação de isenções ou subsídios para trabalhadoras de baixa renda, de forma que possam ter acesso ao judiciário sem medo de incorrer em custos que não podem arcar. Além disso, a ampliação de programas de assistência jurídica gratuita, com o fortalecimento da Defensoria Pública e parcerias com organizações da sociedade civil, pode ser uma ferramenta importante para garantir que as trabalhadoras de cuidado tenham acesso à justiça de maneira mais efetiva.

4.2 O Papel do Direito na Transformação Social

O Direito do Trabalho desempenha um papel central na transformação das condições sociais e econômicas das trabalhadoras de cuidado no Brasil. Historicamente, o Direito do Trabalho tem sido um instrumento de justiça social, com a função de proteger os trabalhadores mais vulneráveis e equilibrar as relações de poder entre empregados e empregadores. Como afirma Delgado (2020), "o Direito do Trabalho deve ser um instrumento de inclusão e justiça social, capaz de reverter desigualdades históricas e proporcionar uma maior igualdade de oportunidades".

Nesse sentido, a luta pela valorização do trabalho de cuidado e pela igualdade de gênero é também uma luta por reconhecimento. O trabalho de cuidado, tanto no âmbito doméstico quanto no institucional, desempenha um papel fundamental na sustentação da economia e na reprodução social. Sem o trabalho de cuidadoras, grande parte das atividades produtivas da sociedade moderna não seria possível. No entanto, como argumenta a socióloga Nancy Fraser (2016), esse trabalho é frequentemente invisibilizado e desvalorizado justamente por ser associado a mulheres, e especialmente a mulheres pobres e negras.

O Direito do Trabalho tem, portanto, o potencial de reverter as desigualdades estruturais que afetam as trabalhadoras de cuidado, ao promover políticas de reconhecimento e de proteção aos direitos dessas mulheres. Além disso, ao garantir a efetivação dos direitos já conquistados, como os previstos na Lei Complementar nº 150/2015, o Direito pode atuar como uma força de transformação social, promovendo uma sociedade mais justa e igualitária.

A inclusão das trabalhadoras de cuidado em regimes de proteção social, a criação de políticas públicas que valorizem esse tipo de trabalho e a ampliação das oportunidades de acesso à educação e qualificação profissional são alguns dos caminhos para promover a justiça social e o reconhecimento das contribuições dessas mulheres para o desenvolvimento do país. Dessa forma, o Direito não é apenas um reflexo das dinâmicas sociais, mas um agente ativo na construção de uma sociedade mais equitativa.

Sobre a autora
Helena Figueiredo

Advogada (UCAM). Mestranda em Política Social (UFF). Especialização em Direito Previdenciário (CBPJUR/OAB). Sempre em busca do melhor benefício previdenciário. Contato: (021) 99794-2067

Informações sobre o texto

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