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Terceiro setor e arquitetura jurídica das entidades religiosas:

organização religiosa e/ou associação

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Agenda 16/10/2024 às 11:04

SUMÁRIO DA TEMÁTICA:

I - ALINHAMENTO CONCEITUAL DO TERCEIRO SETOR E DAS ENTIDADES RELIGIOSAS.

II - CARACTERIZAÇÕES DAS “ASSOCIAÇÕES” E DAS “ORGANIZAÇÕES RELIGIOSAS” E CENÁRIO QUE IMPACTA NA NATUREZA E ARQUITETURA JURÍDICA DAS ENTIDADES RELIGIOSAS.

III - MODELO DE ARQUITETURA JURÍDICA DE UMA ENTIDADE RELIGIOSA, PERSONIFICADA NO ÂMBITO CIVIL POR UMA ORGANIZAÇÃO RELIGIOSA E POR UMA ASSOCIAÇÃO DE CARÁTER RELIGIOSO E BENEFICENTE, GESTORA PARCEIRA E “CONTROLADORA” DE ASSOCIAÇÕES BENEFICENTES.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

ANEXO – ORGANIZAÇÃO RELIGIOSA OU ASSOCIAÇÃO RELIGIOSA: ARGUMENTAÇÃO EM FACE DE DECISÃO RESTRITIVA DA CORREGEDORIA GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO.

NOTAS.


I - ALINHAMENTO CONCEITUAL DO TERCEIRO SETOR E DAS ENTIDADES RELIGIOSAS.

Neste primeiro item desenvolveremos aspectos relativos ao:

a) perfil das organizações da sociedade civil que integram o denominado terceiro setor, inclusive sobre os “tipos de organizações” que compõem a finalidade religiosa;

b) opção pela qual adotamos o termo genérico “entidades religiosas”;

c) questões preliminares sobre a natureza jurídica de “associação” e “organização religiosa”;

d) considerações sobre as finalidades religiosas e sociais / beneficentes das entidades religiosas, inclusive considerando que a finalidade religiosa não se vincula exclusivamente à natureza jurídica “organização religiosa”;

e) marcos constitucionais que fundamentam a liberdade religiosa e de associação, inclusive considerando aspectos referentes à imunidade tributária das finalidades e atividades religiosas e das sociais / beneficentes;

f) religiões ou tradições religiosas no Brasil, definição de religião, compreensão da secularização e motivações ético-religiosas no terceiro setor.

A expressão “terceiro setor” é utilizada para identificar as atividades da sociedade civil que não se enquadram na categoria das atividades estatais - primeiro setor, representado por entes e órgãos da administração pública - ou das atividades de mercado - segundo setor, representado pelas sociedades empresariais com finalidade lucrativa.

Sobre a entidades ou organizações que compõem o terceiro setor, e já indicando a expressão que atualmente as identifica, assim como a natureza jurídica por elas adotada e aspectos de suas finalidades, apoiamo-nos na publicação “Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil: a construção da agenda no governo federal – 2011 a 2014”, do Governo Federal, elaborada no contexto do processo de construção do texto da Lei 13.019/2014, conhecida como Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC), que estabelece um novo regime jurídico das parcerias, de mútua cooperação e para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, entre a administração pública e as organizações da sociedade civil (OSCs), por meio de novos instrumentos jurídicos: os termos de fomento e de colaboração e os acordos de cooperação:

As organizações da sociedade civil (OSCs) no Brasil têm como atributos: serem de natureza privada, sem fins lucrativos, legal e voluntariamente constituídas e administradas. Do ponto de vista da natureza jurídica e nos termos do que determina o Código Civil brasileiro, as OSCs assumem no Brasil as figuras de associações, fundações e organizações religiosas.

Entre as figuras jurídicas citadas, a maior parte das OSCs enquadra-se nas formas societárias de associação e fundação. As associações são constituídas pela união de pessoas que se organizam para determinados fins, que podem ser voltados à coletividade, como as que promovem os direitos das pessoas com deficiência, ou ser de benefício mútuo e se restringir a um grupo seleto e homogêneo de associados, destinados, por exemplo, à recreação, como é o caso dos clubes.

A fundação, por sua vez, é definida pela destinação de seu patrimônio. Seu momento de criação coincide com a dotação de bens destinados a cumprir uma finalidade social, de acordo com a vontade de seus instituidores, que determinam também as formas como esse patrimônio será administrado. As fundações privadas podem ser instituídas pelo patrimônio de indivíduos ou de empresas. (...)

(...)

As organizações religiosas, também consideradas nesta delimitação das OSCs, conquistaram uma figura jurídica própria a partir da Lei nº 10.825/2003, que alterou o Código Civil e incluiu um novo tipo societário. Não foram todas as associações de origem religiosa que adotaram essa nova figura; muitas ainda estão por adotar a nova forma para melhor organizar e separar as suas ações. Sabe-se que igrejas possuem forte e histórica presença na prestação de serviços públicos, sobretudo nas áreas de educação, saúde e assistência social, sendo que, de modo geral, a prestação de serviços é realizada por associações criadas para essas finalidades específicas e, portanto, independentes de atividades confessionais. (BRASIL, 2015, p. 45 - 46; grifamos)

Também a referida publicação - isto se torna relevante, na medida em que a Lei 13.019/2014 introduziu em nosso ordenamento jurídico o termo organização da sociedade civil, com a sigla OSCs – existem esclarecimentos sobre os motivos pelos quais ele substituiu o termo organização não governamental, com a sigla ONG, até então utilizado para se referir às organizações que integram o terceiro setor, e que possuem a natureza jurídica de associação, fundação privada e organização religiosa:

A adoção do termo é uma opção que reforça o caráter afirmativo de protagonismo e de iniciativa própria da sociedade. O termo (...) tem sido disseminado pelo governo federal e por diversas organizações nacionais e internacionais (...), com a intenção ética e política de reafirmar o caráter autônomo, a finalidade pública e a voz própria da sociedade civil organizada

O termo OSC evita, ao mesmo tempo, uma abordagem de negação sugerida pela expressão “organização não governamental” (ONG), que se mostra insuficiente nos dias atuais. Isso porque, em vez de identificar as entidades como não integrantes do governo, afirma sua identidade a partir de sua origem em uma sociedade civil ativa e pulsante. (BRASIL, 2015, p. 27 - 28; grifamos)

Já nossa opção de utilizar de forma genérica a expressão “entidades religiosas”, independentemente da natureza jurídica da organização, liga-se às disposições constitucionais garantidoras da liberdade religiosa, em especial da nova redação da alínea “b”, do inciso VI, do art. 150 da Constituição Federal (CF), efetivada pela Emenda Constitucional (EC) 132/23 que instituiu a recente reforma tributária.

Ao tratar da imunidade de impostos sobre o patrimônio, renda ou serviços, a EC 123/23 incluiu o termo “entidades religiosas”, mantendo também a anterior expressão “templos de qualquer culto”. Ainda, a expressa disposição constitucional incluída pela reforma tributária referente à não incidência de impostos sobre as transmissões “causa mortis” e as doações para as instituições sem fins lucrativos com finalidade de relevância pública e social, também usa em sua redação o termo “entidades religiosas”, ao incluir as organizações assistenciais e beneficentes de entidades religiosas (inciso VII, §1º, do art. 155 da CF).

Elucidamos, que antes da reforma tributária optávamos por utilizar em nossos textos o termo genérico “instituições religiosas”, também para não confundir e diferenciar da natureza jurídica da entidade / instituição que, como detalharemos oportunamente, em regra configura-se como associação ou organização religiosa.

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Neste contexto, enfatizamos que existem expressas disposições em nossa Constituição Federal (CF) para garantir e proteger a liberdade religiosa e consequentemente a liberdade de constituição e funcionamento das entidades religiosas - e liberdade de desenvolver suas finalidades -, com abrangência para todas as religiões ou tradições religiosas. Destacamos as seguintes normas constitucionais pertinentes:

a) “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias" (art. 5º, VI);

b) “é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva" (art. 5º, VII);

c) “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei" (art. 5º, VIII);

d) “é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (..) estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público” (art. 19, I);

e) “(...) é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios (...) instituir impostos sobre: (...) entidades religiosas e templos de qualquer culto, inclusive suas organizações assistenciais e beneficentes (...) as vedações expressas no inciso VI, alíneas "b" e "c", compreendem somente o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas” (art. 150, VI, “b”, § 4º).

A seguir, e antecipando alguns aspectos que serão oportunamente detalhados, indicaremos normas relativas à liberdade de associação e de sua criação e funcionamento e à imunidade das atividades no campo social, uma vez que várias entidades religiosas, em decorrência de seus princípios e valores ético-religiosos, possuem e desenvolvem além de finalidades e atividades religiosas, também finalidades e atividades no campo social, especialmente beneficentes de assistência social nas áreas da assistência social, educação e/ou saúde.

Também levamos em conta que entidades religiosas, além de adotarem a natureza jurídica “organização religiosa”, adotam a natureza jurídica de “associação”, ou mesmo, conforme sua opção de arquitetura jurídica, configuram-se pelas 2 (duas) naturezas jurídicas, ou seja: 1ª) para as finalidades e atividades religiosas assumem a natureza jurídica de “organização religiosa”, que passa a personificar juridicamente a entidade religiosa; 2ª) para as atividades no campo social adotam a natureza jurídica de “associação”, que podem também representar a personalidade jurídica civil da entidade religiosa ou apenas representar entidades ou organizações da sociedade civil instituídas e/ou “controladas” pela entidade religiosa para o desenvolvimento das finalidades e atividades no campo social - beneficentes de assistência social, de solidariedade social, de promoção humana etc.:

a) “ é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar" (art. 5º, XVII);

b) “a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento" (art. 5º, XVIII);

c) “as associações só poderão ser compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por decisão judicial, exigindo-se, no primeiro caso, o trânsito em julgado" (art. 5º, XIX);

d) “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado” (art. 5º, XX);

e) “(...) é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios (...) instituir impostos sobre: (...) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei (...) as vedações expressas no inciso VI, alíneas "b" e "c", compreendem somente o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas” (art. 150, VI, ”c”, § 4º) – a doutrina e a jurisprudência também incluem as instituições de saúde;

f) “compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: I - transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos (...) o imposto previsto no inciso I: (...) não incidirá sobre as transmissões e as doações para as instituições sem fins lucrativos com finalidade de relevância pública e social, inclusive as organizações assistenciais e beneficentes de entidades religiosas e institutos científicos e tecnológicos, e por elas realizadas na consecução dos seus objetivos sociais, observadas as condições estabelecidas em lei complementar” (art. 155, §1º, VII).

g) “são isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei” (art. 195, § 7º) – a doutrina e jurisprudência entendem que se trata de imunidade e, considerando a legislação infraconstitucional (Lei Complementar 187/2021), é considerada entidade beneficente de assistência social, “a pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, que presta serviço nas áreas de assistência social, de saúde e de educação, assim certificada na forma desta Lei Complementar”.

Passamos, agora, a detalhar alguns aspectos do perfil e da dimensão das organizações da sociedade civil (OSCs) que integram o terceiro setor, com fundamento na pesquisa do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) “Perfil das Organizações da Sociedade Civil no Brasil”, publicada em 2018 e com dado de 2016, dando ênfase às organizações da sociedade civil que possuem a finalidade religiosa e desde já destacando que o referido estudo indica que a finalidade religiosa não se vincula exclusivamente à natureza jurídica “organização religiosa”, uma vez que OSCs com finalidade religiosa possuem tanto a natureza jurídica de “associações” – em sua maioria – quanto a natureza jurídica de “organização religiosa”.

Esclarecemos que esta publicação está vinculada à plataforma “Mapa das OSCs” (“https://mapaosc.ipea.gov.br/”) e vem sofrendo ajustes metodológicos, como também elucidamos que optamos em considerar a publicação de 2018 com os dados de 2016, pois ela traz vários detalhamentos sistematizados que entendemos ser oportunos. Sobre essa publicação e considerando o escopo deste artigo, prestamos as seguintes informações de forma sintética:

a) 820,1 mil OSCs em 2016 - com posterior ajuste metodológico passou à 795,1 mil -, dentre matrizes e filiais. Já em 2023, segundo o “Mapa das OSCs”, são 879,3 mil OSCs;

b) Em 2026, 709 mil (86%) tinham natureza jurídica de “associações”, 99 mil (12%) de “organizações religiosas” e 12 mil (2%) de “fundações privadas”;

c) 208 mil (25,4%) tinham a religião como finalidade de atuação (grupo “religião”), em 2016, com também que no grupo de finalidade “desenvolvimento e defesa de direitos e interesses” foi constatada a existência de 5 mil OSCs com atuação na religião;

d) no tocante à natureza jurídica do grupo “religião”, em 2016, 107,5 mil figuraram na natureza jurídica de “associação”, 98,5 mil como “organização religiosa” e 2 mil como “fundação privada”.

Sobre os aspectos referentes à natureza jurídica de “associação” e de “organização religiosa” das OSCs com finalidade religiosa, transcrevemos, a seguir, trechos do mencionado estudo:

Os dados sobre a natureza jurídica das organizações da sociedade civil (OSCs) precisam de esclarecimentos sobre as classificações oficiais incluídas. Três naturezas jurídicas foram utilizadas para calcular o total de OSCs do país: associações privadas, fundações privadas e organizações religiosas pessoas de direito privado sem fins lucrativos previstas no Código Civil – Lei nº 10.406/2002. (...)

A partir da Lei nº 10.825/2003, que alterou o Código Civil, as organizações religiosas foram reconhecidas como uma espécie própria de pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos, diversa das associações ou fundações.

Esta alteração produziu uma complexidade adicional para classificar a finalidade de atuação, pois religião tornou-se tanto base para classificar OSCs quanto definir uma finalidade de atuação das OSCs. (...)

(...)

(...) O relevante a notar é que a mudança introduzida em 2003 faz com que organizações com finalidade religiosa estejam parcialmente na natureza associação privada e parcialmente na natureza jurídica organização religiosa.

(...)

A finalidade de atuação religiosa não se vincula exclusivamente às organizações cuja natureza jurídica é a de “organização religiosa”. A tabela 3 [2] aponta que aproximadamente 107 mil OSCs exercem a atividade religiosa como principal atividade e figuram na natureza jurídica “associação privada”. (BRASIL, 2018, p. 45 e 51; grifamos)

Outro aspecto extremamente relevante é a compreensão do que é “religião” e de quais são os “tipos de organizações” que compõem a finalidade religiosa – que integram o grupo “religião” para a pesquisa -, o que, diga-se, demonstrará que as entidades religiosas abrangem todas as religiões ou tradições religiosas. Segundo a publicação, em seu “Apêndice A – Notas Explicativas sobre as Finalidades de Atuação das OSCs”:

Grupo 5 – Religião

5.1 Religião

Este subgrupo compreende:

• atividades de organizações religiosas ou filosóficas;

• atividades de igrejas, mosteiros, conventos ou organizações similares;

• atividades de catequese, celebração ou de organização de cultos;

• igrejas, mosteiros, fraternidades, pastorais, conventos, templos, irmandades, sinagogas, terreiros, comunidades cuja principal finalidade era de natureza religiosa. (BRASIL, 2018, p. 165 – 165)

Aproveitamos o momento, para elencar as seguintes religiões ou tradições religiosas no Brasil, indicadas na “Amostra – Religião do Censo 2010”, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, elucidando que a listagem está em ordem alfabética: Budismo, Candomblé, Católica Apostólica Brasileira, Católica Apostólica Romana, Católica Ortodoxa, Espírita, Espiritualista, Evangélica, Hinduísmo, Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, Islamismo, Judaísmo, Não Determinada e Múltiplo Pertencimento, Novas Religiões Orientais, Testemunhas de Jeová, Tradições Esotéricas, Tradições Indígenas, Umbanda, Umbanda e Candomblé, Outras Declarações de Religiosidades Afrobrasileira, Outras Religiões Orientais, Outras Religiosidades, e Outras Religiosidades Cristãs (BRASIL, 2010).

Sobre religião a presença e as motivações ético-religiosas no terceiro setor, noticiamos que escrevemos o livro “Terceiro Setor e Religião: caridade, ética e direito na construção da cidadania”, publicado em 2011, cujo resumo explicita os temas tratados:

Com uma inovadora abordagem interdisciplinar que envolve várias áreas do conhecimento (administração, direito, economia, história, sociologia, serviço social, antropologia, filosofia, ética, teologia, ciências da religião etc.), este livro trata de um tema de interesse pouco explorado consistente na investigação da presença e influência dos valores ético-religiosos no terceiro setor e na demonstração de que os fatores religiosos e éticos são importantes elementos de análise para uma compreensão ampla e realista desse “setor sem fins lucrativos”, que contribui com a construção da cidadania e execução das políticas públicas.

Para tanto, relacionamos ética, direito, caridade, cidadania e catolicismo e averiguamos as formas de intervenção social (caritativa/assistencial, cidadã/promocional, libertadora/transformadora) e suas articulações em nosso Estado Democrático de Direito Secular; revelamos a complexidade do terceiro setor, suas características, suas faces, as pressões envolvidas, sua parte “lucrativa” e sua função em uma formação social capitalista; desvendamos o significado da religião – inclusive no que creem os que não creem - e revelamos o incontroverso e as controvérsias da secularização. Mostramos, ainda, a racionalidade da articulação religião-ética-condução de vida, inclusive a compatibilidade e complementaridade entre valores e fins (entre o amor e a eficiência) na gestão de uma organização não-governamental (ONG), e, finalmente, para evidenciarmos a afinidade eletiva entre ética católica e ativismo no setor social, investigamos as tensões, ambiguidades, complementaridades, articulações e fluidez envolvendo a forma de intervenção da Igreja Católica nas questões socioeconômicas.

Em síntese, propomos nesta obra que a compreensão da função e da relação entre religião, ética e direito no terceiro setor é um aliado na construção de uma sociedade livre, justa, solidária e cidadã. (PEREIRA, 2011, contracapa)

Dentre vários referenciais do livro, trazemos duas oportunas definições sobre “religião” e sobre o incontroverso da “secularização”, sem antes destacarmos o alerta do sociólogo Peter Berger (2000) – ele também é um referencial da mencionada obra de nossa autoria: “Mas há uma afirmação que se pode fazer com bastante confiança: arriscam-se muito aqueles que negligenciam o fator religioso em suas análises das questões contemporâneas” (BERGER, 2000, p. 23).

Sobre a definição de religião, apoiamo-nos na resposta do professor Frank Usarski à seguinte pergunta a ele feita pelos alunos do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-SP:

Como você define “religião”? (...)

A partir dessas considerações, dividimos o conceito de religião em quatro elementos:

Primeiro, religiões constituem sistemas simbólicos com plausibilidades próprias.

Segundo, do ponto de vista de um indivíduo religioso, a religião caracteriza-se como a afirmação subjetiva de que existe algo transcendental, algo extra-empírico, algo maior, mais fundamental ou mais poderoso do que a esfera que nos é imediatamente acessível através do instrumentário sensorial humano.

Terceiro, religiões se compõem de várias dimensões: particularmente temos de pensar na dimensão da fé, da dimensão institucional, na dimensão ritualista, na dimensão da experiência religiosa e na dimensão ética.

Quarto, religiões cumprem funções individuais e sociais. Elas dão sentido à vida, alimentam esperanças para o futuro próximo ou remoto, sentido esse que algumas vezes transcende o da vida atual, e com isso possui a potencialidade de compensar sofrimentos imediatos. Religiões podem ter funções políticas, no sentido ou de legitimar e estabilizar um governo ou de estimular atividades revolucionárias. Além disso, religiões integram socialmente, uma vez que membros de determinada comunidade religiosa compartilham a mesma cosmovisão, seguem valores comuns e praticam sua fé em grupos (USARSKI, 2006, p. 125-126).

Já sobre a “secularização”, se nos restringirmos à secularização como um processo jurídico-político, ou seja, “secularização do Estado, da lei, da normatividade jurídica geral”, podemos concluir que esse é um processo irreversível e com acentuado caráter incontroverso, representado pela separação entre Estado e religião. No texto “De olho na modernidade religiosa”, o sociólogo Antônio Flávio Pierucci ratifica sua opção de identificar a secularização com a separação Igreja e Estado e, assim, enfatizar a secularização do Estado com seu ordenamento jurídico.

Já eu, dou-me por satisfeito em fincar pé no primeiro: a separação Igreja e Estado. Em matéria de modernidade secular, se eu puder escolher, fico com a “secularização do Estado”. (...) Toda vez que falo propositivamente em secularização, refiro-me com ênfase à secularização do Estado com seu ordenamento jurídico, e menos à secularização da vida, que essa pode mesmo refluir, mas a do Estado não. (...) Em vez de ficarmos a nos agastar girando em falso em torno de uma controvérsia insolúvel a respeito da extensão maior ou menor da secularização entendida como secularização da vida das pessoas, ou mesmo, vá-la, da secularização cultural, seja lá o que isso queira dizer, creio que só teremos a ganhar, tanto no plano teórico, quanto no prático, se voltarmos a pensar que a secularização que importa em primeiro lugar – a secularização que nos concerne imediatamente, seja enquanto estudiosos, seja principalmente enquanto cidadãos – sujeitos-de-direitos empenhados em preservar e ampliar as liberdades civis e políticas de cada um e de todos “sob o domínio da lei” num “Estado democrático de direito”, interessados praticamente, portanto, e não só teoricamente, na observância universalizada de leis revisáveis porque não mais divinamente reveladas -, a secularização que importa antes de tudo, repito, é a secularização do Estado como ordem jurídica. Noutras palavras, a laicização constitucional disto que a conhecida definição de Kelsen denomina Estado formal (PIERUCCI, 2008, p. 11 e 12).

Sobre o autor
Rodrigo Mendes Pereira

Consultor e advogado graduado em direito pela USP, doutor em serviço social pela PUC-SP, mestre em ciências da religião com ênfase em terceiro setor pela PUC-SP, especialista no MBA Gestão e Empreendedorismo Social pela FIA/USP, com diversos cursos de extensões em terceiro setor, projetos sociais e políticas sociais pela EAESP/FGV, pelo CEDEPE/PUC-SP e por outras instituições.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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