Introdução
O controle externo da administração pública, especialmente no âmbito municipal, envolve sanções aplicadas pelos Tribunais de Contas Estaduais (TCEs), essenciais para a responsabilização dos agentes públicos e proteção dos cofres municipais. No entanto, o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1.011 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) trouxe uma nova perspectiva à aplicação e execução dessas multas, introduzindo distinções importantes sobre a legitimidade dos municípios e estados para executá-las.
O objetivo deste artigo é explorar as implicações desse julgamento, destacando a necessidade de um melhor delineamento das multas aplicáveis conforme o entendimento recente do STF e as lacunas ainda existentes quanto à aplicação de certas categorias de multas pelos TCE’s.
1. A Evolução do Controle Financeiro dos Tribunais de Contas
O papel dos Tribunais de Contas foi consolidado pela Constituição Federal de 1988, que lhes conferiu funções essenciais no controle externo das contas públicas. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/2000) e a Lei nº 4.320/1964 estabeleceram diretrizes para o planejamento e execução das finanças públicas municipais. Essas normas visam garantir o equilíbrio fiscal, impondo limites e regras claras para a gestão dos recursos públicos.
A fiscalização realizada pelos TCEs atua tanto em caráter preventivo quanto punitivo. As sanções impostas incluem desde advertências até multas por irregularidades cometidas no exercício de funções públicas. A questão da legitimidade e da natureza dessas sanções passou a ser objeto de revisão pelo STF, especialmente em casos onde não há danos financeiros diretos aos cofres públicos.
2. O Tema 642 e a ADPF 1.011: Distinção de Modalidades de Multas
O julgamento da ADPF 1.011 pelo STF reafirmou e expandiu o entendimento consolidado no Tema 642 da repercussão geral, distinguindo duas categorias principais de multas aplicáveis pelos TCEs: multas proporcionais ao dano ao erário e multas simples.
A nova redação do Tema 642 estabeleceu que:
“1. O Município prejudicado é o legitimado para a execução de crédito decorrente de multa aplicada por Tribunal de Contas estadual a agente público municipal, em razão de danos causados ao erário municipal.
2. Compete ao Estado-membro a execução de crédito decorrente de multas simples, aplicadas por Tribunais de Contas estaduais a agentes públicos municipais, em razão da inobservância das normas de Direito Financeiro ou, ainda, do descumprimento dos deveres de colaboração impostos, pela legislação, aos agentes públicos fiscalizados”.
Resumimos, no quadro a seguir, a disciplina consignada nova redação do Tema 642:
Modalidade de Multa |
Legitimado para Execução |
Hipótese de Cabimento da Sanção |
---|---|---|
Multa Proporcional ao Dano ao Erário |
Município |
Aplicada quando há dano direto ao patrimônio público municipal. |
Multa Simples |
Estado-membro |
Aplicada por descumprimento de normas de Direito Financeiro ou deveres de colaboração com os TCEs. |
Ocorre, no entanto, que o julgamento da ADPF 1.011 não abordou uma categoria específica de multas que também são aplicáveis pelos TCEs, mas que não se enquadram nessas duas modalidades: multas sancionatórias decorrentes de dano potencial não quantificável e atos de gestão ilegal, ilegítimo ou antieconômico. Essas multas, ainda que essenciais para a responsabilização de atos administrativos, não são diretamente relacionadas a prejuízos financeiros mensuráveis, o que as exclui do escopo da atual redação do Tema 642.
3. Multas Sancionatórias Não Enquadradas na Redação do Tema 642
O STF, ao revisar o Tema 642, não abrangeu algumas modalidades de multas aplicáveis pelos Tribunais de Contas, as quais não envolvem diretamente normas de direito financeiro ou causam danos diretos ao erário. São exemplos:
Multas por Dano Potencial Não Quantificável: multas aplicadas em casos de danos potenciais ou presumidos, sem a possibilidade de quantificação exata do prejuízo.
-
Multas por Ato de Gestão Ilegal, Ilegítimo ou Antieconômico: aplicáveis a atos que configuram infração à legalidade administrativa (não relacionados à hipótese de multa simples, por inobservância de “normas de Direito Financeiro ou, ainda, do descumprimento dos deveres de colaboração impostos, pela legislação, aos agentes públicos fiscalizados”), sem que ocorra dano ao erário.
Essas multas sancionatórias, embora essenciais, não encontram previsão na redação do Tema 642, especialmente no que tange à competência para sua execução.
Para ilustrar estas hipóteses de multas não são enquadradas nas duas categorias descritas na nova redação do tema 642, transcrevemos, o artigo 73 da Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (LEI Nº 12.600, DE 14 DE JUNHO DE 2004):
Art. 73. O Tribunal de Contas, mediante deliberação de órgão colegiado, poderá aplicar multas, até o limite de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) independentemente da condenação ao ressarcimento dos prejuízos ou danos causados ao Erário e adotando, se necessário, outras providências legais cabíveis aos responsáveis por:
I - prática de ato de gestão ilegal, ilegítimo ou antieconômico que não seja de natureza grave e que não represente injustificado dano ao Erário: multa no valor compreendido entre 5% (cinco por cento) e 50% (cinquenta por cento) do limite fixado no caput deste artigo, respeitado o teto máximo do valor correspondente ao prejuízo dado ao Erário;
II - ato de gestão ilegal, ilegítimo ou antieconômico de que resulte injustificado dano à Fazenda: multa no valor compreendido entre 10% (dez por cento) e 100% (cem por cento) do limite fixado no caput deste artigo, respeitado o teto máximo do valor correspondente ao prejuízo dado ao Erário;
III - ato praticado com grave infração a norma legal ou regulamentar de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional ou patrimonial: multa no valor compreendido entre 10% (dez por cento) e 50% (cinquenta por cento) do limite fixado no caput;
...
V - não atendimento, no prazo fixado e sem causa justificada, de diligência determinada pelo Relator e pelo Conselheiro ou Auditor Substituto de Conselheiro, no exercício da competência fixada no art. 57-A desta Lei: multa no valor compreendido entre 5% (cinco por cento) e 30% (trinta por cento) do limite fixado no caput.
...
VII - atraso injustificado ou não envio da Prestação de Contas: multa no valor compreendido entre 10% (dez por cento) e 100% (cem por cento) do limite fixado no caput;
VIII - omissão injustificada da autoridade competente para a instauração de Tomada de Contas Especial: multa de 30% (trinta por cento) do limite fixado no caput deste artigo;
IX - interposição de Embargos de Declaração julgados manifestamente protelatórios: multa de 10% (dez por cento) do limite fixado no caput deste artigo;
X - atraso injustificado no encaminhamento de documentos e/ou informações solicitadas pelo Tribunal na forma estabelecida no Regimento Interno: multa de 10% (dez por cento) do limite fixado no caput deste artigo, acrescidos de 1 (um por cento) do limite fixado no caput deste artigo por dia de atraso, contado a partir do segundo dia após o vencimento do prazo previsto, sendo limitado ao valor estipulado no caput deste artigo;
XI - descumprimento, por parte dos agentes e autoridades do Tribunal de Contas, de determinação constante de Provimento da Corregedoria Geral: multa de R$ 500,00 (quinhentos reais).
XI - descumprimento, por parte dos agentes e autoridades do Tribunal de Contas, de determinação constante de Provimento da Corregedoria Geral: multa de 1% do limite fixado no caput deste artigo.
XII - descumprimento de Decisão colegiada ou monocrática do Tribunal de Contas: multa no valor compreendido entre 10% (dez por cento) e 50% (cinquenta por cento) do limite fixado no caput deste artigo.
Como se observa, a hipótese do inciso I (“prática de ato de gestão ilegal, ilegítimo ou antieconômico que não seja de natureza grave e que não represente injustificado dano ao Erário”), assim como a parte inicial do inciso III (“ato praticado com grave infração a norma legal”, sem imputação de débito), não correspondem a imputação de dano ao erário (tratada no inciso II), bem como não se enquadra em situação de “descumprimento dos deveres de colaboração impostos, pela legislação, aos agentes públicos fiscalizados” (tratadas nos incisos VI, VI, VII, VIII, IX, X, XI e XII) , assim como não decorrerem da inobservância de “normas de Direito Financeiro” (tratada parte final do inciso III).
Para corroborar e melhor ilustrar situações que não se como hipótese de inobservância de “normas de Direito Financeiro”, apresentamos quadro com compêndio das principais Normas de Direito Financeiro Aplicáveis aos Municípios:
Principais Normas de Direito Financeiro Aplicáveis aos Municípios
Norma |
Matéria Regulada |
Constituição Federal de 1988 |
Regula o processo orçamentário, a distribuição de competências financeiras entre os entes federados e a aplicação dos recursos. Estabelece princípios gerais sobre finanças públicas e o regime de responsabilidade fiscal. |
Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/2000) |
Estabelece regras sobre planejamento e transparência na execução orçamentária, controle da dívida pública e limites de endividamento, gastos com pessoal, e equilíbrio fiscal para manter as contas públicas equilibradas. |
Lei nº 4.320/1964 |
Dispõe sobre normas gerais de direito financeiro para a elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, Estados, Municípios e Distrito Federal. Regula a execução orçamentária, o controle interno e externo dos recursos, e as regras para receitas e despesas públicas. |
Lei Complementar nº 173/2020 |
Estabelece o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus e dispõe sobre a suspensão temporária de aumentos salariais no setor público e limitação de novas contratações. |
Lei Complementar nº 178/2021 |
Atualiza a Lei de Responsabilidade Fiscal com medidas adicionais de ajuste fiscal e saneamento das finanças públicas, além de estabelecer regras para o equilíbrio fiscal dos municípios. |
Plano Plurianual (PPA), LDO e LOA |
São instrumentos de planejamento exigidos pela Constituição e pela Lei nº 4.320/1964. O PPA define metas e prioridades de governo para quatro anos, a LDO estabelece metas anuais e orienta a LOA, que detalha a previsão de receitas e despesas para o ano. |
Resoluções do Tribunal de Contas |
Os Tribunais de Contas emitem normas e orientações que devem ser seguidas pelos gestores municipais, estabelecendo limites para endividamento, gastos com pessoal e execução orçamentária, além de fiscalizar as contas públicas. |
Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011) |
Obriga a divulgação de informações sobre gestão financeira, licitações e execução orçamentária, promovendo transparência e participação social na fiscalização do uso de recursos públicos. |
Decreto nº 7.185/2010 (Lei da Transparência) |
Regulamenta a disponibilização, em tempo real, de informações detalhadas sobre a execução orçamentária e financeira, exigindo a criação de portais de transparência para acesso público. |
Lei nº 10.028/2000 - Infrações Administrativas contra as Leis de Finanças Públicas |
Prevê infrações administrativas e sanções patrimoniais para o descumprimento das leis de finanças públicas. Inclui punições como: - Deixar de divulgar ou enviar ao Legislativo e ao Tribunal de Contas o relatório de gestão fiscal nos prazos estabelecidos; - Propor lei orçamentária sem metas fiscais; - Não expedir ato limitando empenhos e movimentação financeira conforme exigido por lei; - Não tomar medidas para redução de despesa total com pessoal que exceda o limite legal. A s sanções incluem multa de 30% dos vencimentos anuais do agente responsável pelo descumprimento, a ser julgada pelo Tribunal de Contas. |
Resta evidenciado que situações tais como as descritas nas hipótese do inciso I e parte inicial do inciso III do artigo LOTCEPE, quais sejam, “prática de ato de gestão ilegal, ilegítimo ou antieconômico que não seja de natureza grave e que não represente injustificado dano ao Erário”, “ato praticado com grave infração a norma legal”, sem imputação de débito), não se enquadram na hipóteses previstas na redação atual do tema 642, quais sejam de multa simples, por inobservância de “normas de Direito Financeiro ou, ainda, do descumprimento dos deveres de colaboração impostos, pela legislação, aos agentes públicos fiscalizados” ), tampouco de “multa proporcional ao dano causado ao erário, infligido ao patrimônio público”.
Cite-se, como exemplo da hipótese do inciso I (“prática de ato de gestão ilegal, ilegítimo ou antieconômico que não seja de natureza grave e que não represente injustificado dano ao Erário”) uma situação na qual o tribunal de constas estadual tenha considerado um conjunto de compras diretas de determinado item que exceda o limite de que trata o inciso II c/c §1º do art. 75. da Lei 14.133/2021 ou ainda situação na qual o tribunal de contas julgue ilegais contratos temporários por excepcional interesse público firmados sem prévia seleção simplificada, sem que se atribua dano ao erário liquidável e imputável.
Como exemplo de situação enquadrada na primeira parte do inciso III (ato praticado com grave infração a norma legal”) cite-se hipótese de julgamento ilegal por indícios convergentes ou prova efetiva de fraude a licitação, do qual igualmente não se atribua dano ao erário liquidável e imputável.
Em nenhuma destas citadas situações (inciso I e parte inicial do inciso III do artigo 73 da LOTCEPE se tem presente imputação de danos ao erário1, tampouco a inobservância de “normas de Direito Financeiro ou, ainda, do descumprimento dos deveres de colaboração impostos, pela legislação, aos agentes públicos fiscalizados” , que são as hipóteses tratada na nova redação do tema 642.
4. A Necessidade de Nova Delimitação Jurisprudencial
A não inclusão dessas situações no escopo da redação atual do Tema 642 exige uma revisão do entendimento jurisprudencial. A ampliação do tema, tal como ocorreu no julgamento da ADPF 1.011, é necessária para incluir essas multas que, embora não causem prejuízos financeiros mensuráveis, são cruciais para a proteção da integridade administrativa e do interesse público.
Defende-se que a legitimidade para a cobrança de multas aplicáveis a atos de gestão ilegal, ainda que não quantificáveis financeiramente, deve pertencer ao ente federativo municipal. Esta é a ratio decidendi consagrada no voto do Min. Alexandre de Moraes no RE 1.003.433, onde o Ministro ressaltou que “não há sentido em que o valor da multa reverta para os cofres do Estado-membro, ao qual está vinculado o Tribunal de Contas, quando o prejuízo foi ao município”.
Conclusão
O julgamento da ADPF 1.011 pelo STF trouxe um avanço significativo no que tange à legitimidade para a execução de multas aplicadas pelos Tribunais de Contas. No entanto, as lacunas evidenciadas neste artigo demonstram a necessidade de uma revisão mais aprofundada, para que o Tema 642 contemple todas as modalidades de multas impostas pelas Cortes de Contas, especialmente aquelas que envolvem atos de gestão sem imputação de dano e tampouco a inobservância de “normas de Direito Financeiro ou, ainda, do descumprimento dos deveres de colaboração impostos, pela legislação, aos agentes públicos fiscalizados” , que são as hipóteses tratadas na atual redação da tese do tema 642.
A proteção da boa governança e da legalidade administrativa exige que o STF e o legislador promovam ajustes na delimitação da competência de execução dessas multas, assegurando que a fiscalização e a sanção sejam efetivas, completas e proporcionais ao impacto causado ao ente público, porém a luz do princípio do federalismo cooperativo, com discriminações claras de responsabilidades e de repartições de créditos oriundos da atividade sancionatória dos tribunais de contas estaduais.
Notas
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Ressalva-se entendimento defendido por parte da doutrina no sentido de que estas multas, dissociadas de imputação de dano ao erário, não possuem guarida constitucional na previsão do art. 71, VIII da CF, que pressupões seja a multa “proporcional ao dano causado ao erário”).