Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

Dogmática Jurídica contemporânea. Nem heroína e nem vilã.

Exibindo página 1 de 2
Agenda 28/10/2024 às 15:36

Dogmática Jurídica contemporânea.

Nem heroína e nem vilã.

Contemporary Legal Dogmatics.

Neither heroine nor villain.

 

Resumo: A dogmática jurídica contemporânea espelha a crise de legitimidade do Estado e sua natureza epistemológica questiona o direito positivo vigente sem construir sobre os mesmos juízos de valor. Trata-se de tecer elaboração conceitual onde há coerência na lógica e na praxe forense. A dogmática expõe o formalismo jurídico e formalismo ético e, o que justifica o interesse de juristas e doutrinadores em saber a natureza jurídica dos institutos do direito e, ainda, a preocupação com evolução conceitual de temas como o direito subjetivo, o direito de propriedade, o direito das coisas, direito de família, e direito público em geral. Ultrapassando da divisão entre os dois grandes ramos, o público e privado e produzindo um discurso jurídico universal dotado de completude lógica, metodológica na elaboração das decisões judiciais . Precisa-se reconhecer a relevância da dogmática que continue atuando na construção de critérios intersubjetivamente controláveis de interpretação e aplicação do Direito.

Palavras-chave: Dogmática Jurídica. Filosofia Jurídica. Conceito. Aplicação. Epistemologia Jurídica.

 

Abstract: Contemporary legal dogmatics mirror the legitimacy crisis of the State and its epistemological nature questions the current positive law without building value judgments on it. It is about weaving conceptual elaboration where there is coherence in logic and forensic practice. Dogmatics exposes legal formalism and ethical formalism, which justifies the interest of jurists and scholars in knowing the legal nature of the institutes of law and, also, the concern with the conceptual evolution of topics such as subjective law, property rights, the law of things, family law, and public law in general. Overcoming the division between the two major branches, public and private, and producing a universal legal discourse endowed with logical and methodological completeness in the preparation of judicial decisions. It is necessary to recognize the relevance of dogmatics that continues to act in the construction of intersubjectively controllable criteria for the interpretation and application of Law.

Keywords: Legal Dogmatics. Legal Philosophy. Concept. Application. Legal Epistemology.

 

Deve-se alardear que a dogmática jurídica é expressão polissêmica e seu significado ao longo de sua evolução assumiu as mais distintas conotações, de acordo com os contextos históricos, teóricos e pela doutrina. Em verdade, paradoxalmente a dogmática jurídica ora é tida como heroína e,  ora como vilã. Ousa-se afirmar que o pensamento dogmático com vistas a refletir sobre o direito contemporâneo serve para problematizar noções conceituais e reanalisar as exigências sociais e os avanços teóricos da atualidade dinâmica e feroz.

De fato, a dogmática jurídica deitou raízes no ensino jurídico brasileiro e na praxe forense. Por muito tempo ela foi a principal responsável pela linguagem, racionalidade e identidade do direito, especialmente em nosso país. Trata-se de legado perceptível, palpável e contundente que se debruça sobre o direito positivo, jurisprudência e, que foi adaptando os conceitos, readequando classificações, engendrando ficções jurídicas e desafiando resolver casos concretos.

Ultimamente, a dogmática jurídica é alvo de acirradas críticas do pensamento jurídico, seja por conta da operacionalidade prática, da sua pretensão de legitimidade ou da sua epistemologia. Luís Alberto Warat (2002) chegou aduzir que a dogmática jurídica se apresenta como uma ciência sem epistemologia, com incertos contornos entre as opiniões rapsódicas e os raciocínios sistemático.

Analisando as limitações da dogmática jurídica bem como suas mais basilares características, pode-se apontar que os mecanismos técnicos de decidibilidade conduz aos sacrifícios indesejáveis. Em verdade, o pensamento dogmático limita a priori o campo de investigação, impossibilitando a crítica e tolhendo criações e argumentações.

Ao fixar as condições do que seja juridicamente possível, a dogmática corta o horizonte de um enorme contingente, relegando-se ao plano periférico e juridicamente irrelevante. As abstrações dogmáticas subestimam o valor das singularidades, dinamicidade e complexidade do mundo contemporâneo, mas, talvez, seja uma forma de realizar um corte epistemológico.

A dogmática jurídica tal qual uma moeda possui duas faces, então, vista por uma das faces, é indispensável para possibilitar a estabilização de expectativas nas interações sociais congruentemente generalizadas, e sem tal generalização congruente não poderiam os homens orientar-se mutuamente, não podendo esperar suas próprias expectativas.

A questão da decidibilidade, requer da dogmática certo grau de confiança não apenas pelas expectativas alheias, como também nas próprias, pois possibilita, pelo menos, a seleção de situações comportamentais com menor chance de serem frustradas.

Há outras perspectivas epistemológicas encontrariam maior dificuldade neste mister, a exemplo da filosofia, que tomada como única instância de justificação e aplicação do direito poderia acabar com a efetividade e a validade da norma jurídica em análises filosóficas que, por mais importantes que fossem, poderiam se apresentar como insolúveis. Como prescrutar os limites do bem e do mal, do justo e do injusto, do universal e do relativo (Canotilho, 2003).

Há quem acredite que a dogmática jurídica só propicia um estéril debate acadêmico, porém, salientou Miguel Reale constitui um dos assuntos mais merecedores de atenção por parte dos doutrinadores da epistemologia jurídica.

O real sentido do vocábulo dogma é geralmente atribuído à teologia. E, antes disso, no entanto, seu significado era diverso ao difundido pelo pensamento teológico. Na Antiguidade Clássica indicava apenas uma decisão, um juízo, uma ordem, e o dogma refletia as crenças fundamentais das escolas filosóficas, seus princípios irredutíveis. Mais tarde, o vocábulo passou a ser usado para designar as decisões dos concílios e autoridades eclesiásticas sobre as matérias essenciais da fé.

O termo indicava qualquer concepção doutrinária blindada com autoridade absoluta, sendo impassível dde discussão. E, foi assim usado para Santo Agostinho, ao afirmar que dogmata autem sunt placita sectarum, id es quod placuit singuli sectis. (mas os dogmas são as convenções das seitas, isto é, o que agradou a cada seita.)

Já  na segunda metade do século IV, o sentido sofreu mitigação, considerando-se dogmas apenas as crenças compreendidas pela Igreja Católica como verdades reveladas por Deus (Lousano, 2008) e, isso se deu por um motivo.

No pensamento teológico, os dogmas desempenham significativa função: constituem o ponto de partida de todas as considerações teológicas e são caracterizados pelo fato de serem indiscutíveis (Lousano, 2008).

Cumpre notar que o cristianismo antigo (apostólico e subapostólico) remonta ao período histórico adogmático, em que se permitiam variadas interpretações das escrituras sagradas. Quando, determinadas "verdades" passaram a ser objeto de discussões e dissensos doutrinários gerando dúvidas cruéis entre os fiéis, os dogmas surgem, sendo declarada pela Igreja Católica a impossibilidade de discutir certos pontos da fé (malgrado se tornarem definitivas certas fraturas).

Foi com a Reforma Protestante e as guerras religiosas dos séculos XVI e XVII, agravaram-se as incertezas entre os fiéis, principalmente, diante da ascensão da burguesia. Elevou-se assim, o papel dos dogmas, bem como a preocupação de lhes conferir um caráter sistemático e um ideário de perfeição, haja vista que os conhecimentos teológicos não poderiam ceder lugar a discussões, dúvidas e heresias. E, no direito canônico, fora muito explorado na Idade Média, a idealização de dogmas e de um conhecimento claro e sistemático foi recepcionada pela teoria jurídica.

Nem a dessacralização das artes e  das ciências, influenciado, sobretudo, pelo Renascimento e, a ruptura entre direito e religião, pelo racionalismo moderno europeu, superaram a influência dogmática.

E, retornando às origens, a acepção do termo foi ampliada, assinalando um conhecimento, não necessariamente cristão dotado de certezas inflexíveis e indiscutíveis. No direito, o culto aos dogmas e a uma visão sistemática persistiu.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Atravessando o Oceano Atlântico, é possível afirmar que ainda no Brasil Colônia o direito assinalava nítidos contornos dogmáticos, e de forma distinta de sua corrente acepção. Mesmo o direito oficial, vindo do ordenamento jurídico lusitano foi transplantado para o território pátrio com características centralizadoras e formalistas, calcado em uma matriz escolástica que fortalecia a estrutura burocrático-patrimonialista quee ora se arquitetava. Essa estrutura se enraizou no direito brasileiro, perpassando da monarquia até o republicanismo.

Com a ascensão política e econômica de São Paulo, liderada pelo bacharelismo liberal paulistano, a dogmático assumiu feição positivista e exegética típica do fim do século XIX.

No Dicionário de Filosofia de Abbagnano a referência ao dogmatismo é voltada às concepções teóricas que tendem a absolutizar suas próprias teorias, sem se dispor colocá-las em debate de forma crítica. E, assim, baseada nessa concepção foi erigida a dogmática jurídica europeia e brasileira, sendo atribuída aos dogmas aquela mesma noção de saber exato e inatacável.

Apesar de que não seja essa a derradeira expressão da dogmática jurídica, pois trata-se da estrita observância de um princípio (uma causa primária, um fundamento), sem o qual a operabilidade do direito não pode ser traduzida em nenhum modo utilizável.

A característica mais relevante da dogmática é a inegabilidade dos pontos de partida. Proíbe-se a negação de certas premissas, ainda que arbitrariamente selecionadas, instituindo a vinculação do intérprete a certos materiais (por exemplo: aos textos sagrados, sob a ótica teológica; e as normas jurídicas, sob a ótica do direito).

E, mediante essa vinculação, as inseguranças no processo de decisão do sistema jurídico são simplificadas para questões envolvendo a relação entre o material e seu conceito, entre a vinculação e liberdade (Luhmann, 1983).

No plano da dogmática jurídica, a série argumentativa deve considerar um dado antecedente tido como correto. Uma razão abstrata e apriorística é constituída de forma tendente a lidar com incertezas, melhor dizendo, com o escopo de controlar determinadas questões que apresentam insegurança e imprecisão a um grau que seja suportável socialmente.

Leciona Tercio Sampaio Ferraz  Júnior (2007), a inegabilidade dos pontos de partida impõe aos juristas, em termos de um estudo estrito do direito, a obrigação de procurar sempre compreendê-lo e torná-lo aplicável dentro dos marcos da ordem vigente: “Essa ordem que lhes aparece como um dado, que eles aceitam e não negam, é ponto de partida inelutável de qualquer investigação”.

 Infere-se diante dessa característica que um tom repressivo é indissociável de um saber dogmático, em vista do constrangimento imposto ao intérprete quanto ao ponto de largada, que define se o raciocínio jurídico é dogmaticamente aceitável.

A vinculação a pressupostos conceituais seguros é uma exigência aos postulados de eficiência e  durabilidade almejados por essa matriz epistemológica. O jurista que observa o dogma  confirma a indiscutibilidade de certos princípios, encontrando neles um limite in transponível à sua atividade (LOSANO, 2008). A dogmática, indubitavelmente,  é austera e exigente.

É evidente a função da dogmática jurídica que não consiste na consideração de pontos de partida inegáveis, mas sim, depende destes. Assim, uma vez determinado o ponto de partida (o dogma), imprescindível se faz arquitetar o iter para uma resposta lógica.

A visão dogmática do direito como um sistema reivindica essa atitude, sendo inolvidável que a dogmática é uma técnica destinada à ordenação de determinado objeto, pretendendo estabilizar a matéria tratada. Se assim o é, para a exposição ordenada do direito necessária se faz a observância de certos  requisitos a fim de extrair uma conclusão lógica dos dogmas.

Niklas Luhmann (1983) ressalvou que os sociólogos não ignoram que algo em si e por si arbitrário não existe, e sabem também que toda comunicação pressupõe a não negação.

 In litteris: “a dogmática jurídica sempre envolve uma  questão de decidibilidade” (FERRAZ JÚNIOR, 2015). E, para decidir racionalmente, é imperativo que haja certa ordenação no sistema jurídico. “El surgimiento de la dogmática, presupone un cierto nivel de organización del sistema jurídico, en concreto la posibilidad de tomar decisiones vinculantes acerca de cuestiones jurídicas” (LUHMANN, 1983).

Segundo Niklas Luhmann (1983): “Desta conclusão se extrai que a determinação do ponto de que se parte não é o suficiente”. O esforço dogmático em relação à atividade do jurista prático concentra-se em dois limites: o dogma, considerado como ponto de partida indiscutível; e o obrigatório ponto de chegada, a resolução do caso concreto (LOSANO, 2008).

Daí a exigência metódica da dogmática, que busca uma resposta aos problemas da praxe jurídica com base em suas fontes, não dando margens a digressões didáticas ou voos filosóficos, o que poderia criar um ambiente assistemático, de instabilidade e irracionalidade.

Técnicas como conceitualização, classificação, princípios, aforismas, instituições, entre outras desenvolvidas pela dogmática não são inócuas, mas ligadas diretamente à necessidade de compor, delinear e circunscrever procedimentos que conduzem a autoridade à tomada de decisão.

Nesse sentido, as questões dogmáticas têm uma função diretiva explícita, visando possibilitar uma decisão e orientar a ação. Tem por escopo a viabilização das condições do juridicamente possível (FERRAZ JÚNIOR, 2015).

Para além de ser uma atividade pretensamente objetiva e rigorosa que, mediante uma elaboração racional das normas vigentes, explicita coerência, buscando mostrar a estrutura lógica inerente ao direito positivo (WARAT, 2002), o pensamento dogmático tenciona fornecer balizas decisórias.

A dogmática jurídica, convém recordar, ganha relevo na modernidade por sua aspiração sistemática de abarcar todos os  fenômenos sociais, supondo que seriam passíveis de solução pela manipulação das  normas jurídicas, tomando como referência a atividade jurisdicional.

 Miguel Reale (1992) compreendeu haver funda mentalmente quatro posições atribuíveis à dogmática jurídica, reconhecendo que cada uma das posições apontadas comporta variantes e particularidades de singular alcance.

A primeira posição é ocupada pelos que pura e simplesmente a repudiam, considerando-a como uma fase de compreensão não problemática da experiência jurídica, por isso, uma etapa superada pela ciência do direito.

Outra colocação dada à dogmática jurídica  é a que a identifica como arte ou técnica jurídica, reconhecendo sua manifestação como processo técnico-operacional em relação ao qual o jurista deve se subordinar.

A terceira acepção amplia significativamente a posição anterior, considerando a jurisprudência como a ciência dogmática do direito. Por fim, há os que a concebem como momento culminante da ciência do direito, enquanto determina e sistematiza conceitos necessários à compreensão dos modelos normativos que estruturam a experiência jurídica, ao passo que indaga as condições de realização desses modelos no campo da  atividade jurisdicional.

As diversas veredas relacionadas à dogmática jurídica,  o doutrinador a entende como o auge da ciência do direito na plenitude de sua existência – sob a perspectiva da regra já posta (ex post norma), momento em que a experiência jurídica se projeta como efetivo sistema jurídico, “como horizonte de sua objetividade, e o horizonte não se põe jamais como limite definitivo, mas é linha móvel a projetar-se sempre à frente do observador em marcha” (REALE, 1992).

Em vetor diametralmente oposto, Hugo de Brito Machado Segundo (2008)  nega o status de cientificidade à dogmática jurídica. Confundindo-a com uma concepção  estritamente positivista do direito e valendo-se de um paralelismo extremado entre  a dogmática jurídica e a dogmática teológica, o doutrinador concebe que contemporaneamente,  no plano epistemológico, conhecimento científico e conhecimento dogmático são  conceitos antônimos.

Indiferente ao devir histórico, Machado Segundo (2008)  afirma com veemência que “foi a ânsia por rotular o conhecimento do direito como  científico, portanto, que mais o distanciou de tudo quanto o caracterizaria como tal,  vale dizer, o não-dogmatismo, a crítica e a evolução” concluiu o doutrinador, pela necessidade  de expurgar essa terminologia do vocabulário jurídico.

Tratando a dogmática jurídica como paradigma da ciência do direito, Vera Regina Pereira de Andrade (2003) adverte de forma mais abalizada que “o paradigma  dogmático deve ser visto como conceito ‘histórico’, enquanto guarda uma vinculação  essencial com uma determinada estrutura histórica, a respeito da qual adquire um conteúdo  e sentido precisos”.

A autoimagem da dogmática jurídica, aquilata a doutrinadora, identifica-se  com a ideia de ciência do direito que tem por objeto o direito positivo vigente  em um dado tempo e espaço e por tarefa metódica (imanente) “a ‘construção’ de um  ‘sistema’ de conceitos elaborados a partir da ‘interpretação’ do material normativo, segundo procedimentos intelectuais (lógico-formais) de coerência interna” (ANDRADE,  2003). Sua finalidade é ser útil à vida, instrumentalizando a aplicação do direito.

Diante das várias perspectivas de doutrinadores  que se debruçam no estudo da dogmática jurídica, sem alongar em demasia acerca das diversas concepções teóricas existentes – cuja variação de matizes inviabilizaria o prosseguimento deste trabalho –, releva reiterar a posição teórica da qual se parte,  o olhar que se opta por seguir’.

Eis que, alinha-se aqui ao entendimento de Tercio Sampaio Ferraz Júnior (2015), perspectiva esta que alberga as características da dogmática jurídica já desenvolvidas. Para o doutrinador, a função da dogmática jurídica é lidar com questões que envolvem a decidibilidade, preocupando-se com mecanismos de condução à tomada de decisão jurisdicional ou, como dito anteriormente, os limites do  juridicamente possível.

 Nesse mesmo sentido é o entendimento de Eros Roberto Grau (2003), para quem a “dogmática tem por objeto  o estudo de problemas jurídicos, a serem resolvidos mediante a aplicação, sobre as situações a que respeitam, das  normas desse direito. Está voltada, assim, à indicação de critérios a serem adotados para a solução de litígios.

A dogmática jurídica não se atém à determinação daquilo que historicamente se entende por direito, tampouco à finalidade de descrever aquilo que pode ser o direito, mas se ocupa com a adequação de decisões em vista do que deve ser direito.

“Nesse sentido, seu problema não é primordialmente uma questão de verdade, porém de decidibilidade” (FERRAZ JÚNIOR, 2015), o modus operandi da aplicação do direito,  a extração de uma resposta a partir do relacionamento entre os casos submetidos ao Judiciário e as normas jurídicas postas.

 Ao envolver uma questão de decidibilidade, a dogmática jurídica manifesta-se como um pensamento tecnológico. Este possui algumas características do pensamento científico stricto sensu, na medida em que parte das mesmas premissas que este. No entanto, seus problemas têm uma relevância prática – possibilitar decisões –, o que exige uma interrupção na possibilidade de indagação das ciências em geral, no sentido de que a tecnologia fixa seus pontos de partida e problematiza apenas a sua aplicabilidade na solução de conflitos (FERRAZ JÚNIOR, 2015).

A dogmática jurídica, portanto, preocupa-se com a resolução de conflitos com o mínimo de perturbação social. Dessa maneira, os enunciados dogmáticos, caracteristicamente, voltam-se a favor da problemática relacionada à realização de modelos comportamentais, assim como as normas jurídicas, e das consequências de sua realização social (o que lhes dá certo sentido crítico): “Sendo um pensamento conceitual, vinculado ao direito posto, a dogmática pode instrumentalizar-se a serviço da ação sobre a sociedade”.

Revela-se, portanto,  a dogmática jurídica é um pensamento fechado à problematização de determinados pressupostos. Para que os conflitos possam obter uma resposta jurídica, alguns elementos são subtraídos à dúvida.

Entre perguntas e respostas, pende-se favoravelmente a estas. Como tecnologia do direito, premissas e conceitos básicos da dogmática jurídica não são receptíveis a críticas. 

Em sendo assim, certos problemas capazes de gerar infindáveis dissensos sob a ordem filosófica ou sociológica (pense-se, por exemplo, o problema relacionado ao justo e ao  injusto, ao certo e ao errado) são tratáveis do ponto de vista dogmático.

O problema central para a ciência do direito, a sua questão peculiar, é a alternativa entre verdadeiro e falso: “O conhecimento científico está às voltas com esta questão, a de descobrir o que pode e o que não pode ser entendido como verdadeiro” (COELHO, 2005).

Diferentemente, o problema da dogmática dirige-se em fornecer pautas para a decisão: “O problema máximo da dogmática é a decidibilidade e, por isto, ela não tem um caráter científico, mas sim tecnológico” (COELHO, 2005). Entre um problema e outro não há hierarquia ou oposição, são simplesmente diferentes os objetivos a alcançar.

O doutrinador Fábio Ulhoa Coelho (2005) exemplifica a distinção entre essas formas de raciocínio jurídico. Para a ciência jurídica, enunciados normativos opostos não podem conviver. As formas de compreendê-los, do ponto de vista científico, são limitadas. Ou apenas um deles é verdadeiro ou ambos são falsos. Eles se excluem mutuamente.

O método científico tem por obrigação revelar o enunciado verdadeiro (e a consequente falsidade do outro enunciado)ou constatar a falsidade dos dois enunciados em oposição.

Noutro viés, a coexistência de enunciados opostos no interior da dogmática jurídica não é um óbice.  Ainda que o tecnólogo procure apresentar uma solução excludente da oposição, isso não passa de uma questão retórica, não se cuida de uma afirmação de cunho epistemológico. Alternativas podem ser selecionadas sem que com isso possibilidades sejam eliminadas.

 A ciência do direito pode não afetar diretamente a produção normativa e a realidade fática, pois a veracidade de seu enunciado pode se situar apenas em um plano teórico, sem precisar reverter necessariamente em uma técnica utilizável. Não cindindo a questão da decidibilidade, a preocupação científico-jurídica supera uma visão prática, indo muito além das fronteiras dogmáticas, ela não precisa se abdicar de sonhos, esperanças e utopias.

A premissa de que dogmática e ciência jurídica não são a mesma coisa não converge a uma noção de que o pensamento tecnológico é um rival da ciência. Ao revés, a dogmática como tecnologia não só integra como também complementa a ciência do direito, “realizando operações transformadoras consistentes na relevância atribuída a  certas conclusões das teorias científicas para a solução de problemas práticos” (FERRAZ  JÚNIOR, 2015).

A dogmática jurídica respeita certas premissas da ciência, e seu  esforço é no sentido de implementá-las junto aos sistemas normativos vigentes. Exemplo disso é a inter-relação entre a criminologia e a dogmática do direito penal.

Ao recomendar o debate sobre a dogmática jurídica, vindicando a necessidade de analisar seus conceitos e características com os olhos de hoje, abalizando os anseios sociais, as necessidades da praxe forense e os avanços das teorias do conhecimento. Como visto, a dogmática jurídica é complexa, e, em que pesem suas cicatrizes deixadas pela lógica moderna, há espaço para questionar algumas das suas mais relevantes características:

Quais são os pontos de partida desse pensamento num paradigma constitucional-democrático? Quais são os limites do juridicamente possível diante de uma sociedade dinâmica, complexa e multifacetária? Em que medida o direito positivo oficial pode se sobrepor aos reclames sociais e à historicidade?  O que realmente legitima uma decisão judicial?[i]

O crescente número de mortos no Estado do Rio de Janeiro durante as intervenções policiais foi o fundamento da ADPF 635, ajuizada em 2019 pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). Isso ficou conhecido como “ADPF das Favelas”.

Nesta ADPF, o STF determinou que uma série de medidas para redução da letalidade policial e controle das violações aos direitos humanos pelas forças de segurança. STF. Plenário. ADPF 635 MC-ED/RJ, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 2 e 3/02/2022 (Info 1042).

Em operações de segurança pública, à luz da teoria do risco administrativo, será objetiva a responsabilidade civil do Estado quando não for possível afastá-la pelo conjunto probatório, recaindo sobre ele o ônus de comprovar possíveis causas de exclusão.

STF. Plenário. ARE 1.385.315/RJ, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 11/04/2024 (Repercussão Geral tema 1.237) (Info 1132).

Vide as Teses fixadas pelo STF: (i) O Estado é responsável, na esfera cível, por morte ou ferimento decorrente de operações de segurança pública, nos termos da Teoria do Risco Administrativo;

(ii) É ônus probatório do ente federativo demonstrar eventuais excludentes de responsabilidade civil;

(iii) A perícia inconclusiva sobre a origem de disparo fatal durante operações policiais e militares não é suficiente, por si só, para afastar a responsabilidade civil do Estado, por constituir elemento indiciário.

STF. Plenário. ARE 1.385.315/RJ, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 11/04/2024 (Repercussão Geral - Tema 1237) (Info 1132).

No âmbito do MPRJ, antes mesmo do ajuizamento da ADPF 635, já tramitavam procedimentos relacionados aos pedidos e à causa de pedir da ação. Após o deferimento das liminares pelo STF, as portarias dos procedimentos foram aditadas para compatibilização e acompanhamento da decisão da Suprema Corte.

O papel do Supremo Tribunal Federal tem sido alvo de constante debate político, jornalístico e doutrinário. E, o julgamento de casos concretos recentes, com grande repercussão no país. São exemplos paradigmáticos, nesse sentido, os julgamentos sobre a constitucionalidade da execução provisória da pena depois do julgamento em segunda instância2, a constitucionalidade da quebra do sigilo bancário, independentemente de decisão judicial, para fins tributários e penais, e, ainda, a questão da nulidade dos processos penais em função da ordem que deve ser adotada entre defesa e acusação nas alegações finais.

É nesse contexto de críticas e defesas ao protagonismo político dos Ministros da Corte Constitucional brasileira, questiona-se: o que fazem os estudiosos do Direito? Esta pergunta, de aparência singela, é uma das mais difíceis de serem respondidas no âmbito da Teoria do Direito.

Ao analisar o modelo descritivista de dogmática jurídica, inspirado no ideal do empirismo, e suas limitações para a transposição de suas conclusões ao Direito. A ideia é demonstrar que o Direito não é uma entidade física, mas uma realidade discursiva, que não pode ser meramente descrita porque precisa da participação do intérprete para a sua reconstrução.

Em outras palavras, o Direito não é um objeto pronto e acabado, ou seja, um  objeto previamente dado, cujo conteúdo dependa exclusivamente de atividades  cognoscitivas reveladoras de sentidos predeterminados. Trata-se de uma composição  entre atividades semânticas e argumentativas, que dependem de um processo  decisional que possui caráter axiológico.

 Enfim, a dogmática jurídica nem é heroína nem vilã[ii].  Acreditamos que a dogmática jurídica deva ser problematizada como uma tecnologia  aberta a ideologias, passível de ser embebida pelos ditames do constitucionalismo e da  democracia, em sintonia com o ambiente social vivido, uma ferramenta capaz de potencializar o caráter emancipador do direito sem cair em irracionalidades e decisionismos.

Referências

ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. Tradução Alfredo Bossi. 5ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

 ANDRADE, V. R. P. de. Dogmática jurídica: escorço de sua configuração e identidade. 2ª. ed. Porto  Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. 3 Aufl. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996.

ATIENZA, Manuel. “La dogmatica jurídica como tecno-praxis”. In: NÚNEZ, Álvaro. (Coord). Modelando la ciência jurídica. Lima: Palestra, pp. 115-159, 2014.

BARROSO, Luís Roberto. “Contramajoritário, representativo e iluminista: os papéis das supremas cortes e tribunais constitucionais nas democracias contemporâneas”. Revista Interdisciplinar de Direito, v. 16, n. 1, p. 217-266,  jun. 2018.

BELTRÃO, Demétrius Amaral; GUIMARÃES, Henrique Cassalho. Dogmática Jurídica: Notas para Reflexão. Revista Direito Mackenzie. 2018. v. 12. n.2. p.. 117.

 BOBBIO, N. O positivismo jurídico. Tradução Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos Rodrigues. São  Paulo: Ícone, 1995.

 CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª. ed. Coimbra: Almedina, 2003.

 COELHO, F. U. Direito e poder: ensaio de epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 2005.

FERRAZ JÚNIOR, T. S. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 5ª. ed. São Paulo: ‘Atlas, 2007.

FERRAZ JÚNIOR, T. S. Função social da dogmática jurídica. 2ª. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

FERRAZ JÚNIOR, T. S.; MARANHÃO, J. S. de A. Função pragmática da justiça na hermenêutica jurídica: lógica do ou no direito? Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, v. 1, p. 273-318, 2007.

 FRACASSINI, U.; ROSA, E. Dogma. Disponível em: http://www.treccani.it/enciclopedia/dogma_ (Enciclopedia-Italiana)/. Acesso em: 15.7.2024.

 GRAU, E. R. O direito posto e o direito pressuposto. 5ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

 HESPANHA, A. M. Cultura jurídica europeia: síntese de um milénio. Coimbra: Almedina, 2012.

LEÃO, Martha Toríbio. O objeto da Dogmática Jurídica: o que fazem os estudiosos do Direito? Revista Faculdade Direito UFMG. Belo Horizonte. n. 76 pp. 359-372, jan./jun. 2020.

 LOSANO, M. Sistema e estrutura do direito: das origens à escola histórica. Tradução Carlo Alberto  Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

 LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na  sociologia do conhecimento. Tradução Juarez Guimarães e Suzanne Felicie Léwy. 7ª. ed. São Paulo:  Cortez, 2000.

 LUHMANN, N. Sistema jurídico y dogmática jurídica. Traducción Ignácio de Otto Pardo. Madrid:  Centro de Estudios Constitucionales, 1983.

 MACHADO SEGUNDO, H. de B. Por que dogmática jurídica? Revista da Faculdade de Direito do Sul  de Minas, Pouso Alegre, n. 27, p. 59-86, jul./dez. 2008.

NOBRE, M. Apontamentos sobre a pesquisa em direito no Brasil. Novos estudos. CEBRAP, v. 66,  p. 145-154, 2003.

 REALE, M. O direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1992.

RODRIGUEZ, J. R.; PÜSCHEL, F. P.; MACHADO, M. R. de A. (org.). Dogmática é conflito: uma visão crítica da racionalidade jurídica. São Paulo: Saraiva, 2012.

ROSS, Alf. Direito e Justiça. 2ª. ed.  Trad. de Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 2007.

STEVENSON, Charles Leslie. “Persuasive definitions”, Mind, v. 47, n. 187, Oxford University.

 STRECK, L. Lições de crítica hermenêutica do direito. 2ª. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016.

 WARAT, L. A. Introdução geral ao direito II: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: SafE, 2002.

 WARAT, L. A. Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou. Florianópolis: Boiteux, 2004


Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!