4. Homicídio privilegiado ou qualificado?
É ponto pacífico: as circunstâncias do homicídio privilegiado (motivo nobre; violenta emoção) convivem faticamente com certas circunstâncias de caráter objetivo que, em tese, qualificariam o homicídio (traição, emboscada, asfixia, veneno etc.). As desavenças, porém, parecem perpetuar-se no momento em que se busca o tipo criminal correspondente.
Para Heleno Fragoso (Lições de direito penal: parte especial, v. 1, 1983, p. 51) o próprio Código Penal contém a chave-mestra de resolução do conflito. Refere-se ao antigo art. 49 (atual art. 67), que torna obrigatória a preponderância – e exclusividade – dos motivos determinantes, ou seja, os do art. 121, § 1º. Magalhães Noronha, contudo, vislumbra na "disposição técnica" do Código o claro sinal de outro caminho. Prevalece o homicídio qualificado: "Elementar conhecimento de técnica legislativa levaria o legislador, se quisesse estender o privilégio ao homicídio qualificado, a definir este em primeiro lugar, isto é, antes da causa de diminuição que, então, vindo depois dele e do homicídio simples, indicaria que a pena era tanto a de um como a de outro"(Direito penal, v. 2, 1986, p. 26).
Há jurisprudência para todos os gostos. Com uma boa retórica se consegue justificar, inclusive, o homicídio simples ("os opostos se anulam") e até uma nova categoria de homicídio, ainda sem rubrica no Código: homicídio qualificado-privilegiado!
Sendo assim, como fica o princípio da reserva legal? Que lei é essa que permite na prática, e mesmo no seio de eminentes doutrinadores, enquadramentos díspares, inconciliáveis? Modernamente, inclusive, o tema retoma sua gravidade por força da Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/90), energicamente criticada pelos penalistas, como é o caso de Alberto Silva Franco (Crimes hediondos: notas sobre a lei 8.072/90, 1994), Alberto Zacharias Toron (Crimes hediondos: o mito da repressão penal, 1996) e João José Leal (Crimes hediondos: aspectos político-jurídicos da lei nº 8.072/90, 1996). Este último, embora sublinhando a primazia do art. 121, § 1º, lembra que "parte da doutrina e da jurisprudência ainda admite a figura híbrida do homicídio qualificado-privilegiado". Indaga, então, se o agente "sofreria as conseqüências gravosas da LCH". E responde, com firmeza: "É evidente que não" (p. 61).
Explicação cabível: se o homicídio qualificado constitui crime hediondo e se as conseqüências desse fato representam, como pensa João José Leal, um verdadeiro desastre no âmbito da política criminal e penitenciária, é claro que agora, mais do que nunca, se haveria de pleitear maior cuidado e menos pressa na reinterpretação da matéria.
5. Para concluir: o jogo das premissas.
Quais as lições que podem ser novamente colhidas, no campo teórico-penal? Desde logo, lições relacionadas com o próprio "jogo das premissas". A imagem é correta, pela ambigüidade e incerteza da própria expressão jogo, indicativa pelo menos da possível conjugação de duas importantes variáveis: habilidade e sorte de quem dele participa como intérprete ou sofre seus efeitos, na condição de acusado.
O princípio da tipicidade exige efetivamente que se aponte a lei como premissa do raciocínio jurídico, mas a outra vertente – o intérprete com força normativa – não vem recebendo, nos compêndios, a atenção que deveria receber. E é nos crimes dolosos contra a vida, quando levados a julgamento, e bem antes, na fase das investigações, da acusação formal, da pronúncia; ou depois, por ocasião dos recursos, que fica bem mais clara, mais nítida, mais visível a reversão dos papéis. A premissa não está na lei, está no intérprete.
Crime, em todas as suas modalidades, não é aquilo que o legislador diz ser crime (a redundância é proposital). Crime não é o que os doutos afirmam através de confusas ontologias conceituais. Crime é fenômeno jurídico e, como tal, se consubstancia normativamente na seqüência de atos e omissões de toda uma comunidade, melhor dizendo, de atos e omissões daqueles que, nas circunstâncias, detêm o poder de mando e comando, o poder de investigar, de identificar, de requerer, de opinar, de convencer, de decidir.
As divergências interpretativas (e de quem? dos entendidos!) constituem um livro aberto, a base inesgotável da percepção de um impossível direito penal ao mesmo tempo dogmatizado pelo legislador e esmiuçado (sintonia fina) pela sabedoria hermenêutica dos jurisconsultos.
Não significa isso que se devam abandonar as conquistas ideológicas do chamado Estado Democrático de Direito preconizado na Constituição da República. Significa, no entanto, que uma disciplina jurídica – a dogmática do direito penal – ainda não tomou consciência de sua inconsistência, da fraqueza e relatividade de seus cânones.
Não se trata de negar validade às inúmeras tentativas de sistematização doutrinária para efeito de ensino e retransmissão acadêmica, negativa por sinal inútil, irrealista, além de suicida em relação a quem exerça o magistério. Trata-se, tão somente, de um sinal de alerta para com os limites da dogmática em seus postulados contraditórios, em confronto com uma realidade fático-normativa em estado permanente de franca rebeldia, embora em si mesma igualmente assistemática e contraditória.
"A ação e o posicionamento do homem diante da vida fazem a realidade do direito; mas a teoria jurídica em seus diversos matizes, se pretende a objetividade epistemológica, não consegue alcançar uma hierarquia de critérios que determinem as alternativas, ela não pode sugerir diretrizes de condutas para futuros conflitos e, muito menos, para todo o sempre". A observação é de João Maurício Adeodato, que já havia notado que "democracia, competência, despotismo esclarecido, eficiência, busca da felicidade são topoi argumentativos e a persuasão que deles eventualmente pode decorrer constitui, sem sombra de dúvida, uma das formas do discurso normativo e também um caminho para a teoria do direito. Mas a realidade jurídica admite também outras formas de comunicação: a autoridade, o engodo, a força e mesmo a ausência de discurso – a violência – têm seu papel na decisão dos conflitos" (Filosofia do direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência, 1996, p. 215/216).
O direito penal – a questão é pedagógica – precisa ser encarado de frente, em sua concretude histórica e, não, através de teorias que, a pretexto de renovação terminológica, o envelhecem; e, a pretexto de clareza ou aprofundamento ôntico-ontológico, o tornam ainda mais confuso, alienado de si mesmo, inacessível à compreensão da grande maioria dos mortais. O direito penal constitui o espelho e o retrato da interação dialética de suas fontes: a lei, o intérprete, o grupo social. Em outras palavras, funda suas raízes no exercício compartilhado da força, poder, vontade, liberdade.
Paradoxo: o intérprete, porque existem opções, "vê-se obrigado a criar direito" (Nilton de Freitas Monteiro). Mas a escolha se dá "por questões sociológicas, por preferências ideológicas, por piedade ou por interesses escusos, na hipótese ruim. Porém não é possível manter a ilusão de que se está sendo um simples cientista, mera ''boca da lei ou escravo da lei''. De alto a baixo, permanece sempre a liberdade" (O poder invisível: legitimidade política do aplicador do direito, Justiça e Democracia, cit., p. 125). Quer dizer, quaisquer que sejam as pretensões de nossos melhores jurisconsultos, na área dogmática, ou de nossos melhores operadores jurídicos, no foro jurídico-penal, permanece uma ponderável zona de incerteza normativa a ser preenchida faticamente, no entrechoque das circunstâncias.
Se os doutos não se entendem, o que esperar de um jovem bacharel em início de carreira, convocado a examinar ou oferecer uma denúncia, a identificar e distinguir os crimes em espécie, a conduzir-se concretamente no emaranhado e no labirinto de novas e velhas teorias? Que dogmática é essa, no campo dos crimes dolosos contra a vida, que sabe de um conselho de sentença legalmente compelido (CPP, art. 464) a revogar a própria lei, desde que incompatível com a sua "consciência e os ditames da justiça"?
Consciência e sentimento de justiça não os têm, a seu modo, os demais operadores jurídicos? Por que o tratamento diferenciado?
Não é bem assim, para isso existem as constituições e seus preâmbulos, as leis de introdução, os princípios gerais do direito, as técnicas hermenêuticas – responderiam, com justeza, os que percebem a complexidade do tema. Só que precisamente por isso, por essa complexidade, salta aos olhos a liberdade de opção do operador jurídico, com seus "motivos conscientes e racionais", já que os outros motivos, "superado, embora, o mito ingênuo ou mistificador da interpretação neutra (e não apenas imparcial) – são, de regra, indevassáveis: não que os queira ocultar o intérprete, mas porque, na grande maioria das vezes, é ele próprio o primeiro a ignorá-los". A lição é de João Paulo Sepúlveda Pertence, então presidente do STF (Um prefácio afinal desnecessário, In: Interpretação e aplicação da constituição, de Luís Roberto Barroso, 1996, p. XI).
Sublinhando: motivos racionais e conscientes; motivos inconscientes; mito ingênuo ou mistificador da interpretação neutra. Oportuna a síntese de Luís Roberto Barroso: "A interpretação, em qualquer domínio científico, não é um fenômeno de caráter absoluto ou atemporal. Ao revés, ela espelha o nível de conhecimento e a realidade de cada época e sofre a influência das crenças e dos valores da sociedade em geral e do intérprete em particular" (ob. cit., p. 263).
Tentativa de homicídio ou simples delito de exposição a perigo (art. 132)? Omissão de socorro qualificada pela morte (art. 135, parágrafo único) ou homicídio doloso praticado por omissão? Homicídio privilegiado ou homicídio qualificado? A indiscutível relevância das perguntas não constitui empecilho à constatação empírica dos desencontros exegéticos da doutrina e da jurisprudência. Esta, aliás, em suas contradições, é que traduz o direito vivo, real, palpável, mensurável. A dogmática jurídica, mais do que reveladora do direito, vale como hipótese, como sugestão, no momento em que se aventura nos detalhes, distinções e subdistinções.
Todavia, quando ali se fala em progresso, em "descobertas" de novas estruturas, em direito penal de primeiro mundo, em concurso aparente de normas, em razão universal, convém uma parada estratégica, em termos crítico-metodológicos. Afinal, todos os penalistas de renome, sem exceção alguma, modificam seus argumentos (seus dogmas) com a mesma desenvoltura de um camaleão, tristemente associado à imagem do estelionatário.
Não há, propriamente, em seu caso – dos penalistas – malícia ou esperteza. Há, sim, um compromisso com a fatalidade, porque são obrigados a escolher, a optar. E se eles embelezam a mercadoria o fazem por fidelidade a si mesmos, a suas convicções político-filosóficas.
Não importa se no dia seguinte, recuperados de seu entusiasmo, renascem para uma nova dogmática, ainda mais "humana", mais "científica", "neutra", "pura", "objetiva", "desinteressada". Tudo isso faz parte do jogo. Como as águias, sempre altaneiras, e não como balões de gás, eles sabem que precisam retornar à planície, que os espera com o húmus sazonado de suas velhas e novas retóricas – marca registrada, mas esquecida, da legitimidade do próprio direito.
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