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Recuperação judicial da Americanas:

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Agenda 07/12/2024 às 21:50

6. A conversão dos créditos dos bancos comerciais e de investimentos deveria ter sido realizada através de debêntures

27. Os créditos dos bancos comerciais e de investimentos28 deveriam ter sido convertidos em debêntures inconversíveis em ações ordinárias ou preferenciais a um custo financeiro suficientemente baixo para não pôr em risco a recuperação da Companhia, por eles terem sido temerários, ou melhor, irresponsáveis, ao concederem reiterados e intermináveis volumosos empréstimos “sem garantias” (desconsiderados os recebíveis), estimularem a debacle da Empresa com incontáveis operações de “risco sacado” e ignorarem as normas e padrões para o gerenciamento de riscos dos Acordos de Basiléia I, II e III, replicadas, no país, através das Resoluções BACEN/CMN nºs. 2.682/1999, 4.512/2016, 4.557/2017 e 4.926/2021.

28. Atente-se, por oportuno: é compreensível que, “em tempos de bonança”, em “tempos” de expressivo e contínuo crescimento da clientela, vendas, faturamento, lucros, valor bursátil de suas ações, fossem feitos empréstimos e financiamentos de valores razoáveis sem garantias e operações de “risco sacado” a uma rede varejista centenária, com ótima reputação e crescente escala de operações e volume de vendas; contudo é inaceitável terem continuado, dia após dia, mês após mês, ano após ano, a fornecer bilhões de reais – mais de R$ 37.000.000.000,00 - a uma empresa com notórios problemas de ... caixa, de ... fluxo de caixa e de ... geração de lucros, o que aumentou exponencialmente o passivo da Americanas, que acabou por se tornar impagável!


7. Aplicação do cram down

29. Se a conversão em debêntures estivesse prevista no projeto de plano, os “credores apoiadores” seriam compelidos, sim, compelidos, a aprovar o plano, sob pena29 de aplicação do cram down.

30. Aqui, caberia a indagação: havia a possibilidade de eles votarem contra a aprovação do plano de recuperação judicial?

31. Em tese, sim; na prática, não.

32. No momento em que foi deferido o processamento da recuperação judicial, os bancos comerciais e de investimentos, em virtude de seus créditos representarem um “ativo financeiro com problema de risco de crédito (ativo problemático)”, um “ativo com provável risco de perda”, constituíram “provisões para devedores duvidosos” (PDD), criaram reservas financeiras para suportar prejuízos esperados associadas ao risco de crédito, equivalentes a 100 % (cem por cento) do montante das obrigações e dívidas da Americanas, por ela passar a ser classificada como risco H, o pior em uma escala de 9 (nove) (arts. 1º, IX, c/c. 6º, VIII, da RBACEN/CMN nº 2.682/1999).

33. Ora, se votassem, majoritariamente, contra a aprovação do plano, seria decretada a falência da Empresa e eles, “credores apoiadores”, e os demais credores financeiros perderiam R$ 36.77 bilhões e os fornecedores, R$ 5,504 bilhões.30

34. Se, por absurdo, rejeitassem o plano, o juízo iria enfiá-lo “goela abaixo” dos que votaram contra a sua aprovação, conforme demonstrei no citado artigo (pags. 22. a 38) com fundamento no Direito Comparado e na orientação predominante do Superior Tribunal de Justiça.

35. A respeito do poder dos tribunais de Justiça de imporem o cram down, leia-se o livro Redressement et Liquidation Judiciaires des Entreprises, 31 no qual os professores da Faculdade de Direito da Universidade de Lausanne, Fernand Derrida e Jean-Pierre Sortais, e o diretor do Instituto de Direito francês, Pierre Godé, informam que, na França, a sorte da empresa é decidida pelo tribunal (Le sorte de l’entreprise est ‘arrêté’ par le tribunal)”,32 que dispõe de um poder extremamente extenso (d’un pouvoir extrêmement étendu),33 que o legitima a modificar, como quiser, o plano de recuperação (lui permettant de modeler, à sa guise, le plan de redressement),34 lastreado no princípio da autoridade absoluta (príncipe de l’autorité absolue).35

36. No país, a orientação do STJ sobre o cram down é pacífica:

(a) Terceira Turma, REsp. nº 1.598.130/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 07.03.2017, DJe 14.03.2017: “A Segunda Seção já realizou a interpretação sistemático-teleológica da Lei nº 11.101/2005, admitindo a prevalência do princípio da preservação da empresa em detrimento de interesses exclusivos de determinadas classes de credores.” (grifos nossos)

(b) Terceira Turma, AgInt no AREsp n. 1.632.988/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 30/5/2022, DJe. 2/6/2022: “A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é firmada no sentido de ser possível a concessão da recuperação judicial pelo magistrado, ainda que não alcançado o quórum do artigo 58 da Lei nº 11.101/2005, a fim de evitar o abuso do direito de voto por alguns credores e para garantir a preservação da empresa. Incidência da Súmula nº 568/STJ.” (grifos nossos)

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(c) No mesmo sentido, Quarta Turma, REsp. nº 1337989/SP, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, j. 08/05/2018, DJe. 04/06/2018), e Quarta Turma, AgInt. no AREsp. nº 1.551.410/SP, Rel. Min. Antônio Carlos Ferreira, j. 29.03.2021, DJe. 24/05/2022.


Notas

1 “Proteger a minoria nas companhias listadas (em bolsa de valores) significa proteger o mercado financeiro.” Mario Compobasso é Professor de Direito Comercial na Universidade de Nápole, in La tutela delle minoranze nelle società quotate, disp. www.cij.up.pt

2 Meu livro Direito dos Acionistas, Campus, 2011, págs. 35/44

3 Na companhia ou sociedade anônima, os proprietários de ações são chamados de “sócios ou acionistas” (LSA, art. 1º).

4 Em uma companhia de capital “pulverizado” pode haver “controle minoritário”, conforme ensina Fábio Konder Comparato: “(...) o fenômeno do controle minoritário, isto é, o fundado em número de ações inferior à metade do capital votante, (...) assenta no absenteísmo do corpo acionário e é implicitamente reconhecido na LSA, ao fixar as regras de quorum e maioria no funcionamento da assembleia-geral.” (O poder de controle na sociedade anônima, Forense, 4ª. ed., p. 64/65, nº 14). Calixto Salomão Filho, autor das notas, afirma: “(...) No Brasil, a lei societária consagra o controle minoritário como princípio dentro do capital social. (...) O sistema brasileiro pode, portanto, ser caracterizado como um sistema em que há opção clara pelo controle minoritário.” (p. 68, nota de texto nº 9).

5 Sobre “acionistas de referência”, Paulo Cezar Aragão, O aperfeiçoamento do mercado de capitais e como evitar as armadilhas, disp. https://exame.com/colunistas/coriolano-gatto/o-aperfeicoamento-do-mercado-de-capitais-e-como-evitar-as-armadilhas/; Ricardo Villela Mafra Alves da Silva, O acionista de referência e sua qualificação jurídica para fins da Lei nº 6.404/1978, disp. www.e.publcações.uerj.br,, e os artigos Definições e limites do acionista de referência e Acionista de referência: deveres e responsabilidades, disp. www.capitalaberto.com.br. A meu ver, os “acionistas de referência”, neste caso, exercem um “controle minoritário” na classificação de Berle e Means, in A moderna sociedade anônima e a propriedade privada, Nova Cultural, 2ª. ed., p. 95/98.

6 Comparato, ob. cit., p. 35, nº 4.

7 Comparato, idem, p. 135, nº 32.

8 BRC S.À.R.L., Cathos Holding S.À.R.L., Cedar Trade LLC, S-Velame S.À.R.L. e Carlos Alberto Sicupira com 2,03% na pessoa física. Na lição de Carvalhosa, o “trio” seria classificado como um “grupo autocrático que governa a sociedade”, in Comentários à LSA, Saraiva, 4ª. ed., vol. 2º, p. 477

9 Modesto Carvalhosa ensina: “(...) Controlar uma companhia, portanto, é o poder de impor a vontade nos atos sociais e, via de consequência, de dirigir o processo empresarial, que é o seu objeto” (Ob. e vol. cits., p. 489). Paes Leães leciona: “(...) entende-se como acionista controlador a pessoa natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas, que seja titular da maioria deliberante nas assembleias. (...) Não é preciso, pois, na caracterização do acionista controlador, a titularidade da maioria do capital, ou mesmo da maioria do capital votante; basta a maioria deliberante concretamente presente nas assembleias gerais (...)”, in Comentários à Lei das Sociedades Anônimas, Saraiva, 1978, 2º vol., págs. 252/253. Ascarelli definiu-o de forma simples e incontroversa: (controle é) “a possibilidade de uma ou mais pessoas imporem a sua decisão à assembleia da sociedade”, apud Comparato, ob. cit., p. 39, nº5, e, por igual, Champaud, “Controlar uma sociedade e deter o controle dos bens sociais (direito de dispor como um proprietário) de tal maneira que seja o patrão da atividade econômica da empresa social”, apud Carvalhosa, ob. e vol. cits.m p. 489, nota 702.

10 Meu artigo Governo da Sociedade Empresária, Tratado de Direito Comercial, coord. Fábio Ulhoa Coelho, Saraiva, 1ª. ed., p. 175/206.

11 Meu livro Direito Concursal, Cap. I, Evolução Histórica do Direito Concursal, Forense, 1999, 3ª. ed., p. 3/6.

12 Nem sempre foi assim, pois o Decreto nº 21.536, de 1932, que instituiu as ações preferenciais no país, não fixou limites para a sua emissão; contudo, devido aos abusos de acionistas majoritários, v.g., formação do capital social com até 90% (noventa por cento) de ações dessa espécie, o Decreto-Lei nº 2.627/1940 limitou a emissão até 50% (cinquenta por cento) do capital social. Não há restrição às preferenciais, v.g., em Delaware, Delaware General Corporation Law (DGCL), arts. 102(a)(4) e 151(a); em Nova York, New York Business Corporation Law (NYBCL), arts. 501(a) e 502(a); no Reino Unido, Companies Act 2006, Seções 629, 630 e 541.

13 Aristóteles, na Ética a Nicômaco, trata da “justiça corretiva”, que visa à reparação de desequilíbrios dos direitos das pessoas; Roberto Noziack, em Anarquia, Estado e Utopia, ao versar sobre os direitos individuais e os direitos de propriedade privada, diz que eles devem ser respeitados; Amartya Sen, em A Ideia de Justiça, leciona que a justiça deve orientar-se por questões práticas para reduzir as injustiças reais e concretas.

14 Só sabiam e ganharam, segundo amplo noticiário da mídia impressa e digital, alguns gestores, que se reuniam, às portas trancadas, “no que chamavam de "sala blindada", que nada mais era que uma sala comum na sede das Americanas, no centro do Rio de Janeiro. Lá, temas sensíveis e planos de ação eram discutidos pelo grupo supostamente envolvido nas fraudes”, disp. https://www.terra.com.br/economia/americanas-executivos-se-reuniam-em-sala-blindada-e-envolviam-bancos-em-fraudes,9911e19bb187e31a8ed51f4bbda97ceckm6b5say.html

15 https://valor.globo.com/empresas/noticia/2024/07/16/americanas-diz-ter-sido-vtima-de-fraude-contbil-e-quer-ser-ressarcida-por-prejuzos.ghtml

16 A Americanas, hoje listada no Novo Mercado, que só permite a emissão de ações ordinárias, migraria, voluntariamente, para o BOVESPA NÍVEL 1, onde já se encontram a Eletrobrás, Bradesco, Itaú Unibanco Holding, Gerdau, Brasken, entre outras megacorporações, ou para o BOVESPA NÍVEL 2 e juntar-se-ia à Raizen, entre outras. Quanto à realização da OPA, parece-me que, no momento, não seria interessante para os minoritários, porque o “preço justo” não repararia os prejuízos que lhes foi causado, razão pela qual, em assembleia especial, os acionistas deveriam dispensá-la na forma do art. 44. do Regulamento do Novo Mercado.

17 Disp. https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2023/01/americanas-nas-redes-e-nas-lojas-funcionarios-temem-pelo-futuro-da-empresa.ghtml

18 Meu artigo Proteção do Acionista Minoritário, RDM nº 105, janeiro/março de 1997.

19 No artigo Ativismo dos Acionistas, Gazeta Mercantil de 08/03/2004, inspirado na experiência americana, anotei: “(...) o século dos acionistas passivos, dispersos e desinformados está prestes a acabar” (infelizmente, entre nós, após 20 anos, pouco mudou, sobretudo porque as class actions não foram assimiladas pelo Judiciário: aqui, os pré-requisitos, exigidos pela Lei nº 7.347, de 24/07/1985, restringem, em demasia, a propositura da demanda de reparação de perdas e danos. Nos EUA, preenchidos os pré-requisitos do Federal Rule of Civil Procedure 23 (a), a saber, “numerosity, commonality, typicality, and adequacy of representation), a ação coletiva pode ser ajuizada por uma ou mais pessoas físicas e jurídicas (General tel. Co. v. Falcon, 457 U.S.147 (1982), decisão da Suprema Corte, disp. supreme.justia.com).

20 Esse artigo, que fixa o percentual de 10% das ações em circulação no mercado, deve ser entendido e interpretado em consonância com o espírito da RCVM nº 70/2022.

21 Acepção empregada por Jean Paillusseau, La Société Anonyme. Technique d’organisation de l’entreprise, Sirey, 1967, p. 49.

22 Meu livro Da Recuperação da Empresa no Direito Comparado, Cap. III, A Crise da Empresa: A Busca de Soluções, Lumen Juris, 1993, p.35/46.

23 Ensinou o filósofo espanhol Adolfo Sãnchez Vãzquez: “A ética é a teoria ou a ciência do comportamento moral dos homens em sociedade”, in Ética, Civilização Brasileira, 18ª. ed., p.12. Vide Sobre a ética e a economia, Capítulo I, Comportamento econômico e sentimentos morais, de Amartya Sen, Cia. das Letras, 8ª. reimpressão, p. 17.

24 Meu artigo Responsabilidade dos administradores de companhias abertas na falência e recuperação judicial, Valor de 17/10/2014.

25 A fidúcia é uma relação de absoluta confiança entre a companhia, os administradores e os acionistas, por isso, os administradores devem, com honestidade, lealdade e diligência, agir para lograr os fins e no interesse da companhia e, por conseguinte, de todos os acionistas. (LSA, arts. 153. a 157). Vide Modesto Carvalhosa e Fernando Kuyven, Dever fiduciário do controlador, in Tratado de Direito Empresarial, Sociedades Anônimas, RT, 3ª. ed., p.456 e segs.

26 Meu artigo Erros e riscos de gestão de empresas, Gazeta Mercantil de 07/12/2005, no qual trato da “regra da administração responsável” (business judgement rule).

27 Meu artigo Princípio da função social da empresa, Gazeta Mercantil de 01/06/2006.

28 De acordo com o site ADVFN, o MPF e a PF investigam suposto conluio entre a Americanas e certos bancos, envolvendo artifícios fraudulentos relacionados à antecipação de verbas de propaganda e operações de cartão de crédito. Disp. https://br.advfn.com/jornal/2024/06/americanas-btg-e-daycoval-pediam-contrapartida-a-companhia-em-suposto-artificio-com-verba-de-propaganda. Matéria mais extensa está no Uol - Podcast Uol Prime # - com José Roberto Toledo, Mariana Desidério e Felipe Mendes, que tem como título “Americanas: bancos faziam parte da estratégia de fraudes”, disp. https://www.youtube.com/watch?v=jzv2G_YEa4E.

29 Solução criativa dos norte-americanos para equilibrar os interesses de credores insatisfeitos com as condições do plano de recuperação e a manutenção da empresa, o cram down tem caráter punitivo, porque o juiz pode impor o plano aos dissidentes.

30 Estudo de Viabilidade AP-01104/23-01, laudo de avaliação do Plano de Recuperação Judicial, elaborado pela empresa Apsis Consultoria Empresarial Ltda., com data base de 31.12.2023.

31 Dalloz, 3ª. ed. O livro é baseado na Lei nº 85-98, de 25/01/1985. Sobre a revisão do Código de Comércio francês, leia-se Reforme du droit des entreprises en difficulté, de Karine Lemercier, professora da Universidade de Maine, e François Mercier, administrador judicial. Disp. www.dalloz-actualite.fr.

32 Ob. cit., p. 156, nº 241.

33 Idem, p. 157, nº 245.

34 Ibidem., p 157, nº 245/6.

35 Loc. cit.

Sobre o autor
Jorge Lobo

Mestre em Direito da Empresa da UFRJ e Doutor e Livre-Docente em Direito Comercial da UERJ. Curador de Massas Falidas do MPRJ e é advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOBO, Jorge. Recuperação judicial da Americanas:: desprezo pelos acionistas minoritários. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7829, 7 dez. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/112124. Acesso em: 19 dez. 2024.

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