A teoria finalista, pelo art. 2°, caput, da Lei 8.078/1990 diz que o consumidor é o destinatário fático final e fático econômico da cadeira produtiva, ou seja, aquele que retira o produto ou serviço de circulação e que não o usa como forma de obter lucro. Há uma séria discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da teoria finalista e pela sua mitigação nas decisões reiteradas dos tribunais. Discute-se, por exemplo, se uma sociedade empresária pode ou não se encaixar no conceito de consumidor. Exemplos de defesa da teoria finalista mitigada ou aprofundada são as feitas por Cláudia Lima Marques1 e Flávio Tartuce2. Veremos se, de fato, cabe a mitigação da teoria finalista em sentido estrito nos casos concretos.
Teoria finalista e sua mitigação
Entende-se por teoria finalista aquela adotada pelo caput do art. 2° da Lei 8.078/1990. Enuncia o dispositivo legal o seguinte: “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final” (BRASIL, 1990). Destinatário final é aquele que utiliza o produto ou serviço para o próprio consumo, retirando-o de circulação. Como bem explicita Cláudia Lima Marques3, a respeito da teoria finalista:
“Para os finalistas, como eu, a definição de consumidor é o pilar que sustenta a tutela especial, agora concedida aos consumidores. Esta tutela só existe porque o consumidor é a parte vulnerável nas relações contratuais no mercado, como afirma o próprio CDC no art. 4.°, inciso I. Logo, conviria delimitar claramente quem merece esta tutela e quem não necessita dela, quem é consumidor e quem não é. Os finalistas propõem, então, que se interprete a expressão “destinatário final” do art. 2.° de maneira restrita, como requerem os princípios básicos do CDC, expostos nos arts. 4.° e 6.°. Destinatário final seria aquele destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa jurídica ou física. Logo, segundo esta interpretação teleológica, não basta ser destinatário fático do produto, retirá-lo da cadeia de produção, levá-lo para o escritório ou residência – é necessário ser destinatário final econômico do bem, não adquiri-lo para revenda, não adquiri-lo para uso profissional, pois o bem seria novamente um instrumento de produção cujo preço será incluído no preço final do profissional que o adquiriu. Neste caso, não haveria a exigida “destinação final” do produto ou do serviço, ou, como afirma o STJ, haveria consumo intermediário, ainda dentro das cadeias de produção e de distribuição.”
O Código de Defesa do Consumidor (CDC) não diz sobre a destinação fática econômica, mas ficou a cargo da doutrina definir melhor o conceito de consumidor, restringindo o conceito deste como e estritamente aquele que retira o bem da cadeia produtiva e não utiliza o bem para lucro. Exclui-se, desse modo, as pessoas jurídicas e sociedades empresárias como consumidores, visto que apesar de poderem ser potenciais destinatários fático finais, não são, em regra, fático econômicos.
Entretanto, surge a mitigação da teoria finalista pela doutrina e adota recentemente pela jurisprudência pátria, afirmando a teoria em questão que é possível ampliar o conceito de consumidor para as pessoas jurídicas e sociedades empresárias, mas necessitam estas e aquelas provarem sua vulnerabilidade e, dependendo do caso, sua hipossuficiência fática, técnica, econômica ou jurídica frete às outras empresas.
Cláudia Lima Marques4, sobre a teoria finalista mitigada, enuncia:
“Realmente, depois da entrada em vigor do CC/2002 a visão maximalista diminuiu em força, tendo sido muito importante para isto a atuação do STJ. Desde a entrada em vigor do CC/2002, parece-me crescer uma tendência nova na jurisprudência, concentrada na noção de consumidor final imediato (Endverbraucher) e de vulnerabilidade (art. 4.°, I), que poderíamos denominar aqui de finalismo aprofundado.
É uma interpretação finalista mais aprofundada e madura, que deve ser saudada. Em casos difíceis envolvendo pequenas empresas que utilizam insumos para a sua produção, mas não em sua área de expertise ou com uma utilização mista, principalmente na área dos serviços, provada a vulnerabilidade, concluiu-se pela destinação final de consumo prevalente. Caso contrário, quando não se constata a vulnerabilidade no caso concreto, inclusive por falta de provas, afasta-se a aplicação do CDC, como ocorreu em julgado de 2017: “1. Inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor. Sociedade empresária que não ostenta condição de destinatária final (critério finalista), inexistindo, outrossim, elementos nos autos que possibilitem a análise de sua vulnerabilidade in concreto (finalismo aprofundado). Precedentes. Incidência da Súmula 83/STJ. (AgInt no AREsp 1.027.692/SP, 4.a T., j. em 04.05.2017, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 09.05.2017).
Esta nova linha, em especial do STJ, tem utilizado, sob o critério finalista e subjetivo, expressamente a equiparação do art. 29 do CDC, em se tratando de pessoa jurídica que comprove ser vulnerável e atue fora do âmbito de sua especialidade, como hotel que compra gás. Isso porque o CDC conhece outras definições de consumidor. O conceito-chave aqui é o de vulnerabilidade.”
O ponto chave dessa teoria é o quesito de vulnerabilidade. Pode esta ser técnica, jurídica ou fática. Segundo o entendimento doutrinário de Cláudia Lima Marques, a teoria finalista mitigada aplica-se nos casos de comprovadamente haver vulnerabilidade técnica, jurídica ou fática (ela adiciona mais uma, chamada de vulnerabilidade informacional) da pessoa jurídica frente a uma outra pessoa jurídica ou mesmo entre sociedades empresárias, o que faz mitigar a teoria finalista do caput do art. 2° da Lei 8.078/1990.
O CDC preza pela defesa dos vulneráveis, e um de seus princípios fundamentais, de ordem constitucional e pública (art. 1° da Lei 8.078/1990), é a proteção dos vulneráveis nas relações de consumo, incluindo pessoas jurídicas vulneráveis frente às hiper suficientes. Por que não uma pessoa jurídica, sendo destinatária final econômica ou final fática e comprovadamente vulnerável na relação de consumo não poderia encaixar-se no conceito de consumidor? Segundo entendimento do STJ, em casos tais, deve-se considerar e reconhecer que algumas empresas, de fato, são consumidoras de produtos ou serviços fornecidos no mercado.
Esclarecimento do STJ quanto à mitigação da teoria finalista, com inclusão de empresas como consumidoras
Colacionar-se-á alguns recursos do STJ como meio exemplificativo dos argumentos apresentados pelo autor deste trabalho. Em primeiro lugar, o AgInt nos EDcl no AREsp 2223089/SE, o STJ decidiu que cabe, mesmo se não houver destinação final fática e destinação final econômica pela empresa do caso, mitigação da teoria finalista, porquanto há vulnerabilidade e hipossuficiência atestadas nas provas do processo:
AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. REGRA DE INSTRUÇÃO. INCIDÊNCIA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. TEORIA FINALISTA. ABRANDAMENTO. SÚMULA N. 83 DO STJ. DEMONSTRAÇÃO DE HIPOSSUFICIÊNCIA TÉCNICA, JURÍDICA OU ECONÔMICA. VERIFICAÇÃO. SÚMULA N. 7 DO STJ. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NÃO CONHECIDO. DECISÃO MANTIDA. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.
1. Inexiste negativa de prestação jurisdicional quando a corte de origem examina e decide, de modo claro e objetivo, as questões que delimitam a controvérsia, não ocorrendo nenhum vício que possa nulificar o acórdão recorrido.
2. A inversão do ônus da prova é realizada a critério do juiz e se caracteriza como regra de instrução e não regra de julgamento, motivo pelo qual a decisão judicial que a determina deve ocorrer, preferencialmente, antes da etapa instrutória, ou quando proferida em momento posterior, garantir a parte a quem foi imposto o ônus a oportunidade de apresentar suas provas.
3. É possível a aplicação das normas de proteção ao consumidor à pessoa física ou jurídica que, mesmo não sendo destinatária final do produto ou serviço, tenha reconhecida sua situação de vulnerabilidade.
4. Rever o entendimento do tribunal de origem acerca das premissas firmadas com base na análise do acervo fático-probatório dos autos atrai a incidência da Súmula n. 7 do STJ.
5. A incidência da Súmula n. 7 do STJ quanto à interposição pela alínea a do permissivo constitucional impede o conhecimento do recurso especial pela divergência jurisprudencial sobre a mesma questão.
6. Agravo interno desprovido.
(AgInt nos EDcl no AREsp n. 2.223.089/SE, relator Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 11/11/2024, DJe de 13/11/2024).
Ainda há outro julgado da mesma corte superior, negou o STJ provimento ao recurso em questão por falta de vulnerabilidade da sociedade empresária, evidenciando que apenas em casos de vulnerabilidade e hipossuficiência atestadas pode-se mitigar a teoria finalista – a regra no Direito do Consumidor:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. 1. JULGAMENTO CITRA PETITA. REQUISITOS PARA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. QUESTÃO JÁ DECIDIDA. PRECLUSÃO CONSUMATIVA. CONSONÂNCIA DO ACÓRDÃO RECORRIDO COM A JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE. 2. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO DE DISPOSITIVO OU TESE. SÚMULAS N. 282 DO STF E 211 DO STJ. 3. CERCEAMENTO DE DEFESA. SUFICIÊNCIA DE PROVAS ATESTADA PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO DO JULGADOR. INVERSÃO DO JULGADO. IMPOSSIBILIDADE. REEXAME DE PROVAS. SÚMULA 7/STJ. 4. FALTA DE INTERESSE PROCESSUAL. AUSÊNCIA DE DOCUMENTOS INDISPENSÁVEIS PARA PROPOSITURA DA AÇÃO. REQUISITOS DE EXIGIBILIDADE DO TÍTULO EXECUTIVO. MODIFICAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7 DO STJ. 5. EXCESSO NA EXECUÇÃO. APLICABILIDADE DA TAXA VINCULADA AO ÍNDICE CDI. POSSIBILIDADE. ABUSIVIDADE NÃO DEMONSTRADA. REVISÃO. SÚMULAS 5, 7 E 83/STJ. 6. NÃO INCIDÊNCIA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. PESSOA JURÍDICA. TEORIA FINALISTA. MITIGAÇÃO. VULNERABILIDADE NÃO CONSTATADA. REVISÃO DO JULGADO. SÚMULAS 7 E 83/STJ. 7. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL PREJUDICADO. 8. EFEITO SUSPENSIVO AO AGRAVO INTERNO. INEXISTÊNCIA DOS REQUISITOS. 9. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO.
1. Efetivamente, em relação a ocorrência de julgamento citra petita e da questão acerca da ausência dos requisitos autorizadores da desconsideração da personalidade jurídica o aresto recorrido entendeu que estariam acobertada pela preclusão consumativa, nos termos da jurisprudência desta Corte Superior. Precedentes.
2. A jurisprudência consolidada neste Tribunal Superior firmou-se no sentido de que a análise de tese no âmbito do recurso especial exige a prévia discussão perante o Tribunal de origem, sob pena de incidirem as Súmulas 282 do STF e 211 do STJ, não sendo o caso de prequestionamento implícito.
3. Nos termos da jurisprudência vigente nesta Corte Superior, a prova constitui elemento de formação da convicção do magistrado acerca dos fatos, tendo como destinatário o juiz, o qual possui a prerrogativa de livremente apreciá-la através de motivada decisão.
3.1. Infirmar o entendimento alcançado pelo acórdão recorrido com base nos elementos de convicção juntados aos autos, a fim de se concluir pela imprescindibilidade da complementação ou da produção de nova prova pericial, tal como busca a parte insurgente, esbarraria no enunciado n. 7 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça.
4. Ademais, modificar as conclusões do Tribunal local, acerca da falta de interesse processual do banco, assim como da ausência de documentos indispensáveis para a propositura da ação e dos requisitos de exigibilidade do título executivo extrajudicial, incorrerá em reexame de matéria fático-probatória, o que é inviável, devido ao óbice da Súmula 7/STJ.
5. Com efeito, a jurisprudência desta Corte, pelas duas Turmas que compõem a Segunda Seção, convergem no sentido de que não é ilegal a estipulação da taxa de juros remuneratórios vinculada ao CDI - Certificado de Depósito Interbancário. A aferição de eventual abusividade deverá ser feita no caso concreto, pelo julgador, comparando o percentual do contrato com a taxa média praticada pelo mercado e divulgada pelo Banco Central do Brasil para operações da mesma espécie.
5.1. Na hipótese, verifica-se que rever o entendimento do acórdão recorrido, acerca da inaplicabilidade da CDI e da abusividade do encargo, ensejaria o reexame do conjunto fático-probatório da demanda e de termos contratuais, providência vedada no âmbito do recurso especial, ante as Súmulas 5 e 7 do Superior Tribunal de Justiça.
6. De fato, a jurisprudência do STJ admite a incidência do Código de Defesa do Consumidor nas hipóteses em que a pessoa jurídica seja a consumidora, desde que ela seja destinatária final dos bens e/ou serviços prestados, ou que seja demonstrada a sua vulnerabilidade em face do contratado.
6.1. No caso, infirmar a convicção alcançada pelo Colegiado de origem, que com base nas particularidades fáticas da causa, entendeu não ser possível a incidência da legislação consumerista à relação estabelecida entre as partes, exige o reexame dos elementos fático-probatórios dos autos, o que é vedado em recurso especial pela Súmula 7 do Superior Tribunal de Justiça.
7. A incidência da Súmula n. 7/STJ impede o conhecimento do recurso lastreado, também, pela alínea c do permissivo constitucional, dado que falta identidade entre os paradigmas apresentados e os fundamentos do acórdão recorrido, tendo em vista a situação fática de cada caso.
8. A parte agravante não se desincumbiu do ônus de demonstrar, concretamente, a probabilidade do direito e o risco de demora na prestação jurisdicional, inviabilizando o pedido de atribuição de efeito suspensivo ao presente recurso.
9. Agravo interno improvido.
(AgInt no AREsp n. 2.462.005/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 30/9/2024, DJe de 2/10/2024).
Ante o exposto, vê-se claramente que o STJ adota a mitigação da teoria finalista, esclarecendo, no entanto, que para considerar uma sociedade empresária como consumidora, deve-se constatar por exame probatório a vulnerabilidade e hipossuficiência no caso, se não, de fato, não há que se falar em mitigação da teoria finalista. Concordo com o entendimento do STJ, visto que há pessoas jurídicas que litigam abusivamente, tentando aproveitar-se da condição de vulnerabilidade dada pela Lei 8.078/1990, mas em alguns casos, realmente, há que se falar em mitigação da teoria finalista, principalmente tangente ao microempresários (MEI) e empresas de pequeno porte (EPP) frente às megacorporações no capitalismo contemporâneo.
MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman Vasconcellos; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 9 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2021.︎
TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim assumpção. Manual de Direito do Consumidor: Direito Material e Processual. 13 ed. São Paulo: Editora Método, 2024.︎
MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman Vasconcellos; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 9 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2021, v. único, p. 161.︎
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MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman Vasconcellos; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 9 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2021, v. único, p. 168.︎