Resumo: a presente reflexão tem por finalidade analisar, de forma detida, se a dispensa de controle de ponto aos procuradores municipais deveria alcançar os procuradores legislativos, cujas funções não são similares, conforme defendido pela APROLEGIS para justificar seus super-salários.
Palavras-chave: Constituição. Município. Advocacia Pública. Procuradores.
A Constituição Federal de 1988, em seus artigos 131 e 132, trata da Advocacia Pública da União e dos Estados, sendo lacônica quanto a Advocacia dos Municípios, num suposto silêncio eloquente.
Sem embargo, nesses dispositivos são extremamente rudimentares, relegando a lei complementar a regulamentação da matéria, sendo nesse particular a função essencial à justiça que menor atenção recebeu do poder constituinte originário, apesar de sua complexidade intrínseca.
Nessa senda, caberia a lei especial de cada ente federativo dispor sobre a exoneração do controle de ponto de seus representantes judiciais.
Oportunamente, é bom que se diga que a Constituição da República também não trata da dispensa do controle da jornada para os magistrados, Ministério Público e Defensores Públicos ou Delegados de Polícia, não sendo, dessa forma, uma prerrogativa inata de qualquer carreira jurídica, como sói ser a vitaliciedade e a inamovibilidade.
De seu turno, o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, quando trata da situação do Advogado Empregado, prescreve que a relação de emprego, na qualidade de advogado, não retira a isenção técnica nem reduz a independência profissional inerentes à advocacia. Ademais, determina que:
Art. 18: (...)
§ 2º As atividades do advogado empregado poderão ser realizadas, a critério do empregador, em qualquer um dos seguintes regimes:
I - exclusivamente presencial: modalidade na qual o advogado empregado, desde o início da contratação, realizará o trabalho nas dependências ou locais indicados pelo empregador;
II - não presencial, teletrabalho ou trabalho a distância: modalidade na qual, desde o início da contratação, o trabalho será preponderantemente realizado fora das dependências do empregador, observado que o comparecimento nas dependências de forma não permanente, variável ou para participação em reuniões ou em eventos presenciais não descaracterizará o regime não presencial;
III - misto: modalidade na qual as atividades do advogado poderão ser presenciais, no estabelecimento do contratante ou onde este indicar, ou não presenciais, conforme as condições definidas pelo empregador em seu regulamento empresarial, independentemente de preponderância ou não.
Destarte, segundo a Lei Federal n. 8.906/1994, a fixação da jornada de trabalho do advogado empregado será realizada a critério do empregador, que poderá optar por três modalidades de jornada: presencial, home office ou mista.
Portanto, inexistindo lei regulamentadora no ente público, as disposições do Estatuto da OAB poderão ser aplicadas, por força de seu artigo 3º, § 1º1.
De outro vértice, para os procuradores celetistas, perfeitamente aplicável, em caso de omissão legislativa própria, o disposto no artigo 75-A da Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-Lei n. 5.452/1943), a qual dispõe que a prestação de serviços pelo empregado em regime de teletrabalho observará o disposto neste Capítulo.
Ademais, o Conselho Federal da OAB, em relação ao Advogado Público, possui entendimento já antigo quando a inexigibilidade do registro de ponto, verbis:
Súmula 9 – O controle de ponto é incompatível com as atividades do Advogado Público, cuja atividade intelectual exige flexibilidade de horário.2
No entanto, poderíamos concluir pelo entendimento autárquico que qualquer atividade intelectual exigiria flexibilidade de horário, o que ampliaria por demasia a honraria para a maioria dos empregados ocupantes de funções técnicas ou científicas, o que não parece ser o intento da OAB.
Antigamente, a jurisprudência era avessa a reconhecer aos Procuradores Municipais a prerrogativa da dispensa do ponto, em nome dos princípios da isonomia e da eficiência, além da discricionariedade administrativa. Vejamos alguns julgados:
ADMINISTRATIVO. PROCURADOR MUNICIPAL. CONTROLE DE FREQÜÊNCIA POR MEIO DE PONTO ELETRÔNICO. POSSIBILIDADE. COMPATIBILIDADE COM A NATUREZA DO CARGO. ATO DISCRICIONÁRIO. SENTENÇA MANTIDA. 1. Em consonância com a jurisprudência firmada por esta Corte, a implementação de controle de frequência dos Procuradores Municipais, por meio de ponto eletrônico, não tem o condão de ferir a independência, liberdade e autonomia garantida pelo Estatuto da Advocacia, uma vez que tal controle não impede o exercício de atribuições fora do recinto da repartição. 2. É consentâneo com o princípio da independência profissional entender-se compreendido no período de trabalho o afastamento da repartição para a realização de pesquisas, audiências, reuniões e demais atividades que se reputem como de serviços externos. Eventuais atrasos ou ausências devem ser justificados junto à chefia imediata, sem prejuízos à autonomia do Procurador. 3. O controle da frequência dos agentes públicos em geral, estando ai inclusos os Procuradores Municipais, consubstancia verdadeiro ato discricionário da Administração Pública, cuja análise do mérito, conveniência e oportunidade foge ao Poder Judiciário, que não está autorizado a retirar das chefias do Poder Executivo o poder regulamentar e hierárquico sobre seu quadro de pessoal. (…) 5. Apelação não provida.
(TRF-1 - AC: 00034584420124013814, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL FRANCISCO NEVES DA CUNHA, Data de Julgamento: 15/05/2019, SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: 03/06/2019)
APELAÇÃO CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. MUNICIPIO DE DONA FRANCISCA. PORTARIA Nº 086/2017. CONTROLE DE FREQUÊNCIA. PONTO ELETRÔNICO E BIOMÉTRICO. PEDIDO DE INTERVENÇÃO DA OAB COMO AMICUS CURIAE INDEFERIDO. 1. Descabe o pedido de intervenção da AOB como amicus curiae. 2. A inconformidade do impetrante diz respeito à Portaria nº 086/2017, que instituiu o ponto biométrico para todos os servidores municipais, incluindo os Procuradores do Município. 3. A referida Portaria goza de presunção de legalidade e legitimidade, além de observar o princípio da isonomia, uma vez que a determinação tem aplicação a todos os servidores municipais. 4. O aperfeiçoamento tecnológico no processo de controle da frequência dos servidores públicos relaciona-se com o princípio da eficiência, ínsito ao exercício de qualquer competência administrativa. 5. Em que pese as alegações acerca das peculiaridades das funções que desempenha e da necessidade de assegurar autonomia, a exigência de controle de ponto não ofende independência e ao livre exercício da profissão. Havendo a necessidade do cumprimento de atividades fora do local de trabalho, o que, por óbvio, ocorre, não há óbice que haja o devido registro e o cômputo como jornada laboral, sem qualquer prejuízo ao desempenho das funções.Precedentes desta Corte. APELO DESPROVIDO.
(TJ-RS - AC: 70081491698 RS, Relator: Leonel Pires Ohlweiler, Data de Julgamento: 04/06/2020, Terceira Câmara Cível, Data de Publicação: 14/09/2020)
Malgrado, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, numa decisão um tanto bizarra, aduziu que
ADVOGADOS PÚBLICOS – MUNICÍPIO DE JARAGUÁ DO SUL – CONTROLE DE PONTO – VALIDADE. A advocacia é atividade essencial, uma prerrogativa da cidadania, Nem por isso, porém, há razão para tratar os advogados públicos, que antes de tudo são servidores, como uma categoria escoteira, alheia aos deveres que são próprios de todos e, especialmente, não trazem nenhuma (nenhuma!) ofensa à liberdade funcional. Pode-se exercer com perfeição ética a profissão na repartição e em horários previamente delimitados. Sentimento republicano que não permite casuísmo, cabendo a cada unidade federativa fixar autonomamente a forma de controle de trabalho de seus funcionários; aliás, não fosse assim, seria o caso de ser defendido que nem sequer os advogados privados estariam submetidos a comparecer às sedes de seus empregadores. Só que a tese só surge ante a Administração, como se ali não houvesse espaço para um isonômico rigor na frequência ao labor. Recurso desprovido.
(Mandado de segurança n. 5000665-13.2019.8.24.0036)
Ora, no julgado, o tribunal classificou a advocacia pública como categoria escoteira, mas olvidou que escoteiras são as categorias nas quais chovem penduricalhos em seus membros, a revelia do interesse público3.
Sem embargo, no Recurso Extraordinário n. 1.400.161-SC, o Supremo Tribunal Federal reformou o acórdão acima ementado, nos seguintes termos:
“...Ante o exposto, dou provimento ao recurso para afastar o controle da jornada de trabalho dos Procuradores do Município de Jaraguá do Sul por meio de cartão ponto ou ponto eletrônico, sem prejuízo dos seus vencimentos, nos termos do art. 932, V, c, do CPC e do art. 21, § 2º, do RISTF, concedendo, de consequência, a segurança como pleiteada pela Impetrante na origem.”
Além disso, no julgado o Ministro Edson Fachin bem enfatizou:
É necessário esclarecer que liberdade inscrita no dispositivo inclui independência e flexibilidade na atuação funcional, além dos limites físicos do ambiente de trabalho, compreendendo compromissos externos, exercício em horários além da jornada, feriados e fins de semana para que sejam atendidos os prazos processuais. (g. n.)
Nesse particular reside nossa meditação: quais são os compromissos externos do procurador legislativo em horários além da jornada senão os particulares? Quais são os prazos processuais que eles devem atendem?
Como muito bem obtemperou a APROLEGIS4:
(i) A fixação dos vencimentos de servidores dos poderes Executivo e Legislativo deve atentar para a aplicação do princípio da separação dos poderes;
(ii) os advogados públicos dos poderes Executivo e Legislativo exercem a advocacia de acordo com a peculiaridades de cada esfera, não havendo que se falar em identidade ou similitude de funções;
(iii) os advogados públicos do Poder Legislativo não percebem honorários sucumbenciais, razão pela qual o vencimento básico do respectivo cargo nunca poderia ser adotado, isoladamente, como referência para eventual comparação com os vencimentos dos advogados públicos quer atuam perante o Poder Executivo. (g. n.)
Portanto, como acertadamente salientou a associação dos procuradores legislativos, os procuradores dos poderes executivo e legislativo exercem a advocacia de acordo com as peculiaridades de cada esfera, não havendo que se falar em identidade ou similitude de funções, ou seja, os legislativos não cumprem prazos processuais e sequer possuem compromissos públicos além da jornada, pois não precisam ir ao fórum analisar processos e solicitar providências.
Além de tudo, complementar esse raciocínio o teor da Súmula 525 do Superior Tribunal de Justiça, estabelecendo que a Câmara de Vereadores não possui personalidade jurídica, mas apenas personalidade judiciária. Isso significa que a Câmara só pode entrar com ações judiciais para defender os seus direitos institucionais, como a sua autonomia, independência e funcionamento, isto é, possuem uma atuação processual deveras circunscrita.
Outrossim, nos autos n. 0019802-45.2012.4.01.3800, o juízo federal de Minas Gerais asseverou em relação a Procuradoria-Geral do Estado que5
"O Procurador do Estado não pode deixar de terminar o recurso ou a defesa no prazo legal, ou abandonar a audiência, simplesmente porque a sua jornada de trabalho diário se encerrou, o que só vem a reforçar a incompatibilidade de sua atividade profissional com o controle de jornada de trabalho por meio eletrônico ou biométrico, com registrados de horários de entrada e saída".
Dessa forma, fica mais uma vez reforçada nossa conclusão no sentido de que somente os procuradores do Poder Executivo gozam da prerrogativa de não terem seus pontos controlados pela administração, pois não podem perder prazos processuais, cujo transcurso gera preclusão, ou abnegar uma audiência, seja presencial ou virtual, unicamente por terem cumprido a sua carga horária diária.
Assim, temos que atos normativos como o editado pela Câmara de Vereadores de Santa Bárbara d’Oeste (SP) são inconstitucionais. Vejamos o dispositivo do ato da mesa n. 72/2021, verbis:
Art. 4º Em razão da natureza própria das funções jurídicas da Procuradoria, ao menos um membro da Procuradoria comparecerá, na forma regulamentada por ato próprio da sua chefia, presencialmente:
a) nos dias de reuniões ordinárias e extraordinárias; e
b) nos dias de reuniões definidas pelo Presidente da Câmara ou Mesa Diretora.
Parágrafo único. O controle de frequência com enfoque na produtividade dos Procuradores da Câmara será aferido por relatórios escritos de produção de atividades jurídicas consultivas e contenciosas, sob responsabilidade do Procurador Chefe e direcionados ao Presidente da Câmara.6
Por conseguinte, fica lídimo que, por serem atividades distintas, não devem receber idêntico tratamento, não se aplicando o brocardo ubi eadem ratio ibi idem jus (onde há a mesma razão, aplica-se o mesmo direito).
Dessarte, são inconstitucionais os atos normativos editados com a finalidade de dispensar os procuradores legislativos do controle de jornada, por violação dos princípios constitucionais da legalidade, da moralidade, da finalidade e da supremacia do interesse público.
Notas
1 Exercem atividade de advocacia, sujeitando-se ao regime desta lei, além do regime próprio a que se subordinem, os integrantes da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria da Fazenda Nacional, da Defensoria Pública e das Procuradorias e Consultorias Jurídicas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas entidades de administração indireta e fundacional.
2 Disponível em: https://advocaciapublica.sites.oabpr.org.br/sumulas-da-comissao-de-advocacia-publica-do-conselho-federal-da-oab-2
3 Disponível em: https://www.campograndenews.com.br/brasil/cidades/cnj-quer-ouvir-tjms-sobre-bonus-que-ja-rendeu-r-1-milhao-para-desembargador
4 Disponível em: https://aprolegis.org.br/reuniao-com-o-subprocurador-geral-de-justica/
5 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/154885/justica-libera-procuradores-de-ponto
6 Disponível em: https://www2.camarasantabarbara.sp.gov.br/Sino.Siave/Documentos/Documento/141676