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Autoridade de garantias: o poder do delegado de polícia em tipificar condutas em face ao princípio da insignificância

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Agenda 20/12/2024 às 16:17

3. ATUAÇÃO DO DELEGADO DE POLÍCIA NA ATUAL ORDEM CONSTITUCIONAL SOB A ÓTICA DA LEI 12.830/2013

De início, após uma explanação sobre o conceito do princípio da insignificância, sua natureza jurídica e relação com outros princípios do ordenamento jurídico pátrio, passa-se a analisar um dos sujeitos responsáveis pela sua aplicação, qual seja, o Delegado de Polícia.

Assim, ao ser feita uma breve reconstrução da carreira, percebe-se que nem sempre esta foi ocupada por um servidor público concursado e que necessitava ser bacharel em direito para exercer sua função, sendo a figura do Delegado comumente representada por uma pessoa indeterminada que fora investida de poderes públicos por mera liberalidade de terceiro, o que se fazia por incompatível com a atual função exercida pela Autoridade Policial (BRENE & LÉPORE, 2018, p.23)

Nos tempos atuais, pós Constituição Federal de 1988, o Delegado é o primeiro operador do Direito a analisar o fato concreto e a realizar a adequação típica (STF, HC 84548, Rel Min Marco Aurélio, DJ 21/06/2012). Afinal, sua atuação se dá tanto sob a ótica da Polícia Judiciária, auxiliando o Poder Judiciário no cumprimento de suas funções, quanto como representante do Estado-Investigação, apurando as infrações penais, com exceção das militares (BRENE, 2019, p.63).

Para a maioria da doutrina, o sistema processual brasileiro é o acusatório, o qual além de assegurar a igualdade de partes velando pelos princípios da inércia de jurisdição, imparcialidade e isonomia, é caracterizado principalmente pela separação dos sujeitos processuais, desenvolvendo um processo triangular, ou seja, marcado por uma nítida divisão das funções de investigar, acusar, defender e julgar.

Nesse contexto, não é exagero afirmar que o Delegado de Polícia é o responsável, segundo art.144 da Constituição Federal, tanto pela condução da fase investigativa, quanto pela presidência, de forma exclusiva e discricionária do inquérito policial, conforme art.2º, parágrafo 1º da Lei 12.830/2013 e por decisão do Supremo Tribunal Federal (2004), desautorizando qualquer outra autoridade a presidir o inquérito policial (SANNINI & HOFFMANN, 2019, p.41), ipsis litteris:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 9034/95. LEI COMPLEMENTAR 105/01. SUPERVENIENTE. HIERARQUIA SUPERIOR. REVOGAÇÃO IMPLÍCITA. AÇÃO PREJUDICADA, EM PARTE. JUIZ DE INSTRUÇÃO. REALIZAÇÃO DE DILIGÊNCIAS PESSOALMENTE. COMPETÊNCIA PARA INVESTIGAR. INOBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. IMPARCIALIDADE DO MAGISTRADO. OFENSA. FUNÇÕES DE INVESTIGAR E INQUIRIR. MITIGAÇÃO DAS ATRIBUIÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DAS POLÍCIAS FEDERAL E CIVIL. 1. Lei 9034/95. Superveniência da Lei Complementar 105/01. Revogação da disciplina contida na legislação antecedente em relação aos sigilos bancário e financeiro na apuração das ações praticadas por organizações criminosas. Ação prejudicada, quanto aos procedimentos que incidem sobre o acesso a dados, documentos e informações bancárias e financeiras. 2. Busca e apreensão de documentos relacionados ao pedido de quebra de sigilo realizadas pessoalmente pelo magistrado. Comprometimento do princípio da imparcialidade e conseqüente violação ao devido processo legal. 3. Funções de investigador e inquisidor. Atribuições conferidas ao Ministério Público e às Polícias Federal e Civil (CF, artigo 129, I e VIII e § 2º; e 144, § 1º, I e IV, e § 4º). A realização de inquérito é função que a Constituição reserva à polícia. Precedentes. Ação julgada procedente, em parte.

(STF, ADI: 1570 DF, Relator: MAURÍCIO CORRÊA, Data de Julgamento: 12/02/2004, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 22-10-2004 PP-00004 EMENT VOL-02169-01 PP-00046 RDDP n. 24, 2005, p. 137-146 RTJ VOL-00192-03 PP-00838., 2004). Grifo nosso.

Conforme explicado acima, a Constituinte de 1988 posicionou a autoridade policial como detentora das tomadas de decisões no que se refere às investigações, sendo a presidência do inquérito policial uma de suas maiores atribuições. Todavia, os encargos do Delegado de Polícia não se limitaram à Polícia investigativa, mas também aos demais tipos de polícias existentes, cujo exercício é atribuído aos órgãos responsáveis pela segurança pública descritos no art.144 da CF/88.

De modo geral, pode-se dizer que a Polícia Investigativa, exercida pelas polícias civis, polícia federal e por outros órgãos com força investigativa como o Ministério Público, tem por atribuição elucidar a materialidade do fato e os indícios de autoria, tendo como principal objetivo garantir a aplicabilidade dos direitos fundamentais (HOFFMANN, 2017, p.2).

Nessa circunstância, a polícia investigativa se confunde com a Polícia Judiciária, não por sua atribuição, mas sim por ser exercida pela Polícia Federal e pela Polícia Civil, e tem por missão auxiliar o Poder Judiciário no exercício de suas funções, executando mandados de prisão, busca e apreensão e realizando a condução coercitiva de testemunhas por exemplo.

Por outro lado, existe a chamada Polícia Administrativa, aquela que é detentora de poderes preventivos, atuando no policiamento e patrulhamento ostensivo, ficando a cargo da Polícia Militar, Polícia Rodoviária Federal e da Guarda Municipal, evitando assim a superposição de uma instituição policial sobre a outra (SANNINI & HOFFMANN, 2019, p.247).

Conforme verificado, Henrique Hoffmann e Francisco Sannini em suas respectivas obras deixam claro que o Delegado de Polícia irá atuar na repressão de crimes, tanto como chefe do Estado-Investigação, quanto como auxiliar do Poder Judiciário, não se limitando à função investigativa, porém, não terá como encargo a prevenção ostensiva de infrações penais, sendo esta atribuição da Polícia Administrativa.

Trata-se inegavelmente de um avanço proporcionado pelo Texto Constitucional de 1988, visto que a figura do Delegado passa a ser vista não só como um combatente da criminalidade, mas também como um garantidor de direitos fundamentais, devendo ele ser o ponto de equilíbrio entre a punição do fato criminoso desprovida de abusos e a proteção aos bens jurídicos pertencentes a toda uma coletividade.

Todavia, seria um erro afirmar que a Constituição atribuiu o mesmo tratamento conferido às demais instituições responsáveis pela persecução penal e garantia da ordem pública. Assim, reveste-se de particular importância perceber uma disparidade de direitos e garantias conferidas aos órgãos considerados essenciais à justiça, como o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública e a Advocacia em comparação às prerrogativas conferidas à Polícia, tais como questões atinentes à remuneração, inamovibilidade, semelhança de calendários, dentre outros (ZANOTTI & SANTOS, 2014, p.37).

Sob essa ótica, ganha particular relevância a promulgação da lei 12.830/2013, a qual tem como principal objetivo tratar sobre os poderes de investigação da autoridade policial, conforme redação de seu art.1°, suprindo as lacunas deixadas pela Constituição Federal, porém, acima de tudo, estando em consonância com ela (BRENE & LÉPORE, 2018, p.27).

Pode-se dizer que, conforme mencionado pelos autores anteriormente citados, o grande objetivo da mencionada lei foi de explicitar o papel do Delegado de Polícia no âmbito da investigação criminal, deixando claro seu papel único de autoridade na condução do inquérito policial, devendo ser o guardião da legitimidade e legalidade deste.

É preciso, porém, ir mais além e entender que o art.2º,§1º da lei 12.830/2013 ao assegurar que "Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais" deixa exposto que que não cabe apenas à autoridade policial expor os fatos, indicar os autores e colher as provas, mas também, sendo de sua atribuição analisar a presença de todos os elementos do fato típico, assim como eventuais excludentes de ilicitude e de culpabilidade, pois somente assim estará sua atuação em consonância com o que prega o Estado Democrático de Direito(AZEVEDO, 2018).

Nesse sentido, conforme Zanotti e Santos (ZANOTTI & SANTOS, 2014, p. 37):

"essa posição clássica da doutrina merece uma releitura, pois uma visão constitucional do cargo de Delegado de Polícia impõe não só a possibilidade, mas a necessidade de serem analisadas todas as questões que compõem o conceito analítico de crime e as hipóteses de extinção da punibilidade (Art.107 do CP), a fim de demonstrar ao Ministério Público e ao Poder Judiciário que existem questões que devem ser analisadas ao longo da ação penal, caso existente".

Desta feita, de acordo com o art. 2, §6º, da lei 12.830/13, o Delegado possui o poder-dever de atribuir a alguém a condição de autor ou partícipe de uma infração penal, desde que haja indicativos de sua responsabilidade. A tal prerrogativa dar-se o nome de indiciamento e, para que tal análise seja possível, é impossível não ser feita a análise da tipicidade material pelo próprio Delegado, pois somente assim pode-se afirmar se ocorreu, de fato, o crime (BRENE & LÉPORE, 2018, p.30).

Caso contrário, conforme explicado acima, a atividade exercida pela autoridade policial não seria considerada como um mister jurídico, detentor de um caráter decisório, a partir das circunstâncias fáticas de cada caso.

Não se trata, portanto, de atividade designada a qualquer órgão representante da justiça, sendo o indiciamento honraria destinado unicamente à autoridade policial, não podendo ser feito pelo Magistrado ou pelo Ministério Público, conforme julgado do STF, a seguir destacado:

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HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME CONTRA ORDEM TRIBUTÁRIA. REQUISIÇÃO DE INDICIAMENTO PELO MAGISTRADO APÓS O RECEBIMENTO DENÚNCIA. MEDIDA INCOMPATÍVEL COM O SISTEMA ACUSATÓRIO IMPOSTO PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988. INTELIGÊNCIA DA LEI 12.830/2013. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CARACTERIZADO. SUPERAÇÃO DO ÓBICE CONSTANTE NA SÚMULA 691. ORDEM CONCEDIDA. 1. Sendo o ato de indiciamento de atribuição exclusiva da autoridade policial, não existe fundamento jurídico que autorize o magistrado, após receber a denúncia, requisitar ao Delegado de Polícia o indiciamento de determinada pessoa. A rigor, requisição dessa natureza é incompatível com o sistema acusatório, que impõe a separação orgânica das funções concernentes à persecução penal, de modo a impedir que o juiz adote qualquer postura inerente à função investigatória.

(STF, HC: 115015, SP, Relator: Min. TEORI ZAVASCKI, Data de Julgamento: 27/08,2013, Segunda Turma, Data de Publicação: Dje- 179 DIVULG 11-09-2013 PUBLIC 12-09-2013). Grifei.

Cabe ressaltar que tal ato de indiciamento está intimamente ligado ao §1º do art. 304. do Código de Processo Penal, o qual autoriza o Delegado a analisar de forma cabal a situação a ele apresentada decidindo, por exemplo, acerca da existência ou não do crime, não sendo suficiente para tal tarefa a simples análise formal da tipicidade, devendo ser considerada também a lesão ou ameaça de lesão ao bem jurídico que se está protegendo (CESAR, 2015).

Desse modo, de acordo com a doutrina de Brene (BRENE, 2019, p.186-187):

Se a imputação de um crime consiste no juízo positivo, a decisão jurídica pela não imputação da infração penal ao investigado ganha contornos de juízo negativo, por essa razão, as causas de exclusão de cada um dos elementos do conceito analítico de crime é tarefa complexa e devem ser levadas em consideração pela autoridade policial, pois a função ostenta natureza jurídica, como chancela a Lei 12.830 de 2013, art. 2º, bem como a análise deve operar-se de forma técnico-jurídica, em despacho devidamente motivado, como determina o art. 2º, §6º, do Estatuto do Delegado.

O autor deixa claro que o foco da lei nº 12.830 de 2013 foi demonstrar o papel garantista que possui o Delegado de Polícia à luz de todo o ordenamento jurídico. Esse é o motivo pelo qual a referida lei destacou o aspecto jurídico da atuação da autoridade policial, sendo de sua atribuição não só a pura investigação da materialidade e autoria do crime, ou a simples verificação do encaixe da conduta criminosa no tipo penal correspondente, mas também, como citado acima, a análise de todo o conceito analítico de crime.

Por todas essas razões, fica evidente que houve uma grande evolução no tocante à carreira da autoridade policial, visto que passou a ser considerada de natureza jurídica, na medida em que o Delegado deve passar a ser considerado tanto como um agente de segurança pública, quanto como precursor de uma função essencial à justiça (ZANOTTI & SANTOS, 2014).

No entanto, para desempenhar todos os atributos constitucionais e legais que se encontram sob seu dever de ofício deve ter respeitada sua discricionariedade e liberdade para analisar o suposto fato criminoso em sua integralidade e não apenas focar em aspectos formais, visto que, para que seja efetivamente um protetor dos direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal, deve a autoridade policial ser instrumento tanto de punição quanto de limitação do poder estatal para evitar abusos no exercício do jus puniendi, fazendo valer assim um Direito Penal que busca punir os fatos e não o autor da conduta em si.

3.1. DELEGADO COMO INSTRUMENTO DE GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS, DA LEGALIDADE E DA JUSTIÇA

Como é sabido, para que o Estado exerça o seu jus puniendi, faz-se necessária a existência da persecução penal, ou seja, de um somatório de atos administrativos feitos pelo Estado com o fim de retirar a norma penal do plano abstrato e aplicá-la ao infrator da lei, sendo composta de uma fase judicial e de uma fase preliminar, a qual possui como um dos principais instrumentos de investigação o inquérito policial (TÁVORA & ALENCAR, 2013, p.97).

Nesse contexto, cabe destacar que a fase judicial da persecução penal tem como titular o Ministério Público, o qual será responsável pelo oferecimento da denúncia e pelo acompanhamento da ação penal no decorrer do processo. Todavia, para que tal tarefa seja desempenhada, faz-se necessária a ocorrência de uma investigação preliminar para que se extraia da "notitia criminis" os indícios de autoria e a prova de materialidade do crime (TOURINHO FILHO, 2009, p.195). Tal fase preliminar é desempenhada pela Polícia Investigativa (Art.144, §4º, CF) sob a condução do Delegado de Polícia, autoridade responsável por dar os primeiros passos na análise do fato concreto, direcionando o rumo da investigação (BRENE & LÉPORE, 2018, p.26).

Desta feita, pode-se dizer que segundo Capez (CAPEZ, 2010, p.315-317), o inquérito policial pode ser compreendido como sendo um procedimento de caráter administrativo, presidido e instaurado pela autoridade policial, com o objetivo de colher elementos informativos relacionados à autoria e materialidade do crime para que o titular da ação penal possa ingressar em juízo.

Sob esta ótica, fica claro que a natureza jurídica do inquérito policial é puramente administrativa, ou seja, somente deste procedimento não resultará sanção penal alguma. Assim, não é exagero afirmar que o fato isolado de o inquérito não ter a presença do contraditório e da ampla defesa não fere o sistema acusatório adotado pelo Código de Processo Penal, tendo em vista sua roupagem de procedimento dotado de discricionariedade e não de processo em si (MACHADO, 2010, p.56).

É interessante, aliás, perceber que se faz mais apropriado afirmar que o inquérito policial é um procedimento apuratório, e não inquisitivo, visto não haver a concentração de funções em uma única autoridade e pelo fato de o investigado não ser tratado como objeto na persecução penal, mas sim, como sujeito de direitos, sendo esta uma das funções da autoridade policial enquanto guardiã dos direitos fundamentais (HOFFMANN, 2019, p.29).

Conforme explicado acima, pode-se extrair do conceito de inquérito policial que além deste ser um procedimento administrativo e conduzido exclusivamente pelo Delegado de Polícia, tal autoridade o faz mediante um juízo de prognose e diagnose. O primeiro juízo é realizado no início da investigação e no decorrer desta, o qual remete a um leque de possibilidades e diligências que podem ser tomadas pelo Delegado a fim de colher elementos probatórios suficientes da autoria e materialidade do crime, sempre baseado na sua discricionariedade de ação e na proporcionalidade das medidas à necessidade do caso. Por outro lado, o segundo juízo se refere ao destino que terão os elementos probatórios colhidos na investigação, coincidindo com o fim das diligências a serem feitas e com a análise técnico-jurídica do fato, passando a responsabilidade da persecução penal para o membro do Ministério Público, titular da ação penal (HOFFMANN, 2016).

Assim, dentre as tantas características atribuídas ao inquérito policial, existem duas que se sobrepõem: seu caráter preservador e preparatório. Ora, o objetivo do inquérito não é limitado, apenas, a dar base ao Ministério Público para dar início a ação penal, sendo esta sua função preparatória. Além disso, tal procedimento também impede a instauração de um processo infundado e destituído de elementos de materialidade e autoria, preservando, assim, o direito fundamental à liberdade da pessoa inocente, bem como a movimentação desnecessária da máquina estatal (HOFFMANN, 2015).

Em outras palavras, inquérito policial consiste no processo administrativo apuratório levado a efeito pela polícia judiciária, sob a presidência do delegado de polícia natural; em que se busca a produção de elementos informativos e probatórios acerca da materialidade e autoria da infração penal, admitindo que o investigado tenha ciência dos atos investigativos após sua conclusão e se defenda da imputação; indispensável para evitar acusações infundadas, servindo como filtro processual; e que tem a finalidade de buscar a verdade, amparando a acusação ao fornecer substrato mínimo para a ação penal ou auxiliando a própria defesa ao documentar elementos em favor do investigado que possibilitem o arquivamento, sempre resguardando direitos fundamentais dos envolvidos (HOFFMANN, 2019, p. 31).

Logo, vê-se que essa realidade está intimamente ligada com o papel exercido pela autoridade policial de garantidor dos direitos fundamentais, da legalidade e da justiça, ampliando, em larga escala, a aplicabilidade do conceito de inquérito policial. Assim, mais do que oferecer subsídios para eventual ação penal que possa vir a surgir, deve o inquérito ser sinônimo de imparcialidade, garantindo a ambas as partes todos os direitos e garantias previstos pela Constituição (BARBOSA, 2017, p.187).

Então, para isso, é necessário que exista uma flexibilização de direitos fundamentais em detrimento de outros, pois só assim teremos a chamada investigação criminal constitucional (SANNINI NETO, 2012) qual seja aquela que evita, simultaneamente, o abuso do poder punitivo estatal contra o investigado e a proteção insuficiente da sociedade.

3.2. O PODER DISCRICIONÁRIO DO DELEGADO DE POLÍCIA

Conforme visto anteriormente, da mesma forma que o Ministério Público é titular da ação penal, o Delegado de Polícia é o titular do inquérito, o qual possui a discricionariedade como uma de suas principais características, ou seja, o Delegado de Polícia em seu mister investigativo não está obrigado a instaurar tal procedimento administrativo e, uma vez instaurado, está aberto a um leque de possibilidades, tais como a oitiva da vítima, das testemunhas e do investigado, diligências no local do crime, interceptação telefônica, dentre outras, não estando preso a uma linha investigativa fixa, devendo tomar decisões baseadas na análise técnico-jurídica do fato e na sua opinio delicti (SANNINI & HOFFMANN, 2019, p.41), conforme redação do artigo 14 do Código de Processo Penal:

Art. 14. O ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade.

Todavia, o inquérito não é a única espécie de procedimento investigativo existente no âmbito da polícia judiciária que é marcado pela discricionariedade. Nesse contexto, se faz pertinente trazer ao debate tanto o Auto de Prisão em Flagrante, quanto o Termo Circunstanciado de Ocorrência, instrumentos de caráter investigativo que também estão atrelados a análise do conceito analítico do crime por parte da autoridade policial.

Pode-se dizer que existem duas maneiras de dar início a um inquérito policial: ou por portaria, ou mediante o auto de prisão em flagrante (TOURINHO FILHO, 2009). Nessa circunstância, surge a seguinte questão: está a autoridade policial obrigada a lavrar o auto de prisão em flagrante? Seguindo uma linha de pensamento mais tradicional, entende-se que o Delegado somente pode fazer uma análise do fato típico em seu aspecto formal no momento de lavrar ou não lavrar o auto de prisão em flagrante, ou seja, analisar se aquele fato se enquadra em alguma conduta criminosa descrita na lei. Em caso positivo, possui o Delegado a obrigação de lavrar o auto de prisão em flagrante (MACHADO, A., 2010, p.56).

É interessante, aliás, perceber que esta não é a posição que mais se coaduna com uma atuação garantista da autoridade policial, visto que, para lavrar ou não lavrar o auto de prisão em flagrante deve o delegado analisar todo o conceito analítico de crime, qual seja, o fato típico, ilícito e culpável. Desta feita, seguindo uma doutrina mais moderna (SILVA, M., 2020, p.435), entende-se que a autoridade policial não está obrigada a lavratura do auto de prisão em flagrante, pois, não deve se contentar com a mera subsunção do fato à norma criminalizadora. Portanto, deve ser feita a oitiva de todas as pessoas envolvidas no contexto do suposto ato criminoso, como a de quem conduziu a vítima até a delegacia, das testemunhas, bem como a oitiva da vítima em termos de declarações, a concedendo o direito ao silêncio e de não produzir provas contra si, Como também, é preciso realizar a apreensão formal de eventual material que tenha sido subtraído, juntamente com a produção de despacho fundamentado com as razões técnico-jurídicas que justifiquem a não lavratura do auto de prisão em flagrante, seja por motivos de atipicidade ou ausência de ilicitude ou culpabilidade.

Por fim, deve a autoridade policial, após reunir todas essas informações, remetê-las ao Ministério Público via ofício, pois este é o detentor da opinio delicti e é o órgão acusador oficial, o qual possui a liberdade de concordar com o Delegado e promover o arquivamento do feito junto ao judiciário, ou então, de discordar e requisitar a instauração de inquérito policial ou, até mesmo, ajuizar diretamente a ação penal com base nas peças de informação que já foram coletadas, visto ser o inquérito policial dispensável, com base no art. 12. do Código de Processo Penal (SILVA, M., 2020, p. 440).

Nesse mesmo sentido, no intuito de deixar clara a não obrigatoriedade de lavratura do auto de prisão em flagrante pela autoridade policial, foram aprovados os enunciados nº 7, 10, 11 e 12 no 1º Congresso Jurídico de Delegados da Polícia Civil do Rio de Janeiro, os quais dispõem que:

ENUNCIADO Nº 7: É atribuição privativa do Delegado de Polícia a decisão acerca da lavratura do Auto de Prisão em flagrante conforme seu livre convencimento motivado, não estando sujeito à requisição ou ordem emanada dos Poderes Judiciário, Executivo ou Ministério Público.

ENUNCIADO Nº 10: O Delegado de Polícia pode, mediante decisão fundamentada, deixar de lavrar o auto de prisão em flagrante, justificando o afastamento da tipicidade material com base no princípio da insignificância, sem prejuízo de eventual controle externo.

ENUNCIADO Nº 11: O Delegado de Polícia, no exame fático-jurídico do estado flagrancial, pode, mediante decisão fundamentada, afastar a lavratura do auto de prisão em flagrante, diante do reconhecimento de causa excludente de ilicitude, sem prejuízo de eventual controle externo.

ENUNCIADO Nº 12: O Delegado de Polícia poderá deixar de lavrar o auto de prisão em flagrante, através de decisão fundamentada, se reconhecer a existência manifesta de uma causa de exclusão da culpabilidade, sem prejuízo de eventual controle externo.

Ademais, conforme explicado acima deve este mesmo raciocínio ser aplicado também à lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), espécie de procedimento investigatório atinente à Lei dos Juizados Especiais, que, apesar de cuidar das infrações de menor potencial ofensivo, também exige da autoridade policial a demonstração de conhecimento jurídico sobre o fato e todas as suas circunstâncias (HOFFMANN, 2017, p.129), vejamos.

Ainda que o TCO não seja complexo, sua lavratura não consiste em simples atividade mecânica, mas jurídica e investigativa, na qual o delegado de polícia decide sobre uma série de questões, tais como tipificação formal e material da infração penal, concurso de crimes, qualificadoras e causas de aumento de pena, nexo de causalidade, tentativa, desistência voluntária, arrependimento eficaz e arrependimento posterior, crime impossível, justificantes e dirimentes, conflito aparente de leis penais, incidência ou não de imunidade, erro de tipo, apreensão dos objetos arrecadados, restituição de objetos apreendidos, requisição de perícia, requisição de documentos e dados cadastrais, representação por medidas assecuratórias, representação por busca e apreensão domiciliar, reprodução simulada dos fatos, entre outras atribuições de polícia judiciária e de apuração de infrações penais comuns. (HOFFMANN, 2017, p. 130).

Por todas essas razões, pode-se afirmar que as decisões tomadas pelo Delegado de Polícia, sejam elas realizadas no âmbito do inquérito policial ou de outros procedimentos investigativos, devem ser reflexo da independência funcional da carreira e da liberdade na tomada de decisões. Afinal, não é exagero afirmar que a autoridade policial se constitui como a primeira fonte de proteção dos direitos fundamentais, tanto da vítima que teve seu bem jurídico lesado, quanto do próprio investigado, não devendo sofrer interferências de outros órgãos da persecução penal na sua imparcialidade e preservação da dignidade da pessoa humana (SANNINI & HOFFMANN, 2019, p.41).

3.3. FUNÇÃO DE DECISÃO E DE REPRESENTAÇÃO DA AUTORIDADE POLICIAL POR MEDIDAS CAUTELARES

Conforme tem sido abordado neste trabalho, por força do artigo 5º, §3º, da Constituição Federal, após se deparar com a notícia de um fato aparentemente criminoso deve a autoridade policial, antes de tomar qualquer providência, verificar a procedências das informações prestadas. Desta feita, se achar pertinente, pode determinar a instauração de inquérito policial ou de outro procedimento de investigação, estabelecendo todas as diligências necessárias para desvendar autoria, materialidade e circunstâncias do crime.

Sob esta ótica, dentre o vasto rol de providências a serem tomadas no bojo da atividade investigativa, é muito provável que surja a necessidade de decretação de determinadas medidas cautelares, ou seja, espécies de diligências investigativas que podem ser decretadas de ofício pelo Delegado, como a oitiva de testemunhas e a requisição de perícias, mas também, providências condicionadas à ordem judicial, a exemplo da busca e apreensão domiciliar, prisão temporária e interceptação telefônica (ZANOTTI & SANTOS, 2014, p.99).

Desta feita, antes de adentrarmos na discussão acerca da capacidade postulatória da autoridade policial, se faz pertinente trazer à baila que o Delegado de Polícia, ao invés de requerer, ele representa pelo deferimento da medida cautelar. Sendo assim, em tese, uma das principais características do Delegado é a sua imparcialidade, ou seja, este não faz parte do processo, não possuindo interesse na decisão final que será concedida pelo Judiciário (BRENE, 2019, p.63). Ou seja, o objetivo da autoridade policial é demonstrar a necessidade de decretação de determinadas medidas indispensáveis para o alcance da finalidade do inquérito policial, qual seja, se chegar o mais próximo possível da verdade real dos fatos, deixando o pedido legal (requerimento) ao encargo de outros órgãos, tais como o Ministério Público (SANNINI NETO, 2014). Por este motivo, entende-se que a representação, quando indeferida, não admitirá recurso, diferentemente do que ocorre no requerimento, visto se tratar de um pedido no bojo do processo (SANNINI NETO, 2016).

É interessante, aliás, perceber entendimento contrário ao poder de representação conferido ao Delegado, sob o argumento de que se trata de uma afronta ao sistema acusatório adotado pelo Código de Processo Penal conceder legitimidade processual a quem não faz parte da tríade processual, devendo a representação ser endereçada ao titular da ação penal, o Ministério Público, e não ao Judiciário (BRESSAN, 2018).

Sob esta visão, como o Ministério Público, conforme disposição expressa do artigo 129, inciso I da CF, é quem impulsiona o Poder Judiciário para que a ação penal pública seja instaurada, nesta estariam também incluídas as medidas cautelares, o que confirmaria a falta de capacidade postulatória por parte da autoridade policial (CABETTE, 2011), vejamos:

A titularidade privativa do Ministério Público para a promoção da ação penal pública, diz respeito também a todos os demais procedimentos e processos de natureza cautelar.

P ara além da tão (re)conhecida compreensão de que o titular das ações acessórias seja, necessariamente, o titular da ação principal, firme-se que devido ao caráter nitidamente instrumental das primeiras em relação à última, devem ser elas conduzidas pelo titular segundo a estratégia processual considerada eficiente para viabilizar a ação principal.

O manejo de qualquer ação judicial, notadamente das cautelares, somente cabe a quem esteja na legítima condição de parte para o possível e futuro processo principal. É nessa perspectiva que se mostra necessária toda uma revisão acerca do manejo das ações cautelares atualmente cabíveis no âmbito estreito da persecução penal. Nesse particular, afigura-se que ainda oportuna, não obstante o tempo de vigência da atual Constituição Federal brasileira, adequar, senão mesmo corrigir, o devido processo legal no âmbito da restrição cautelar de direitos fundamentais na persecução penal. (UNIÃO, 2012, p. 68).

Todavia, tais argumentos não devem prosperar, visto que, à luz de uma constituição garantista, a melhor maneira de compreender esse processo é considerar que ao Estado-Investigação é legítimo demonstrar junto ao Judiciário, detentor da palavra final, a necessidade de deliberar sobre a relativização de certos direitos em detrimento de outros no âmbito da persecução penal (BARBOSA, 2017, p.42-43), conforme expresso no enunciado n° 23 do 1º Congresso Jurídico dos Delegados de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro:

ENUNCIADO Nº 23: Cabe exclusivamente ao Delegado de Polícia exercer a primeira análise técnico-jurídica acerca das prisões captura de conduzidos trazidos à sua presença, devendo fundamentar as razões de fato e de direito da decisão de lavrar ou não o Auto de Prisão em Flagrante, assim como representar por prisão preventiva ou propor medidas cautelares diversas, quando pertinentes.

Portanto, conforme explicado acima, não se trata de uma interpretação seca e isolada do art. 129, inciso I da Constituição Federal, mas sim, de extrair o sentido do ordenamento jurídico como um todo, ou seja, compreender que o art. 144, §4º, da CF conferiu à autoridade policial não só a possibilidade de representar por medidas cautelares que entender necessárias ao caso concreto, mas também, os poderes necessários para que a execute (ZANOTTI & SANTOS, 2014, p.99).

Desse modo, se posiciona Zanotti e Santos:

Entendimento em sentido contrário esvaziaria o conteúdo do art. 144, §4º, da Constituição Federal. Essa posição pode ser reforçada pela aplicação da teoria dos poderes implícitos. De acordo com essa teoria, sempre que a Constituição Federal confere uma atribuição ou competência a determinado órgão ou instituição, confere também, implicitamente, os poderes necessários para a execução dessa atribuição ou competência, desde que não haja limitação expressa. Com base nessa teoria, se o Delegado de Polícia possui a incumbência funcional de apurar as infrações penais, possui também, implicitamente, os meios necessários para esse fim, como é o caso de postular diretamente ao Poder Judiciário as medidas acauteladoras (ZANOTTI & SANTOS, 2014, pp. 99-100).

Fica evidente, diante desse quadro, que o fato de a autoridade policial não poder recorrer diante da negativa de sua representação, não retira sua aptidão de se valer desse instrumento jurídico com o fim de representar ao Poder Judiciário acerca dos fundamentos que embasam a decretação da medida cautelar mais adequada aos fatos.

Vê-se, pois, que o Poder Constituinte Originário não conferiu ao Delegado de Polícia o status de titular da investigação criminal e comandante da Polícia Judiciária em vão, sendo indiscutível o fato de que tal autoridade, além de investigar a materialidade, autoria e circunstâncias do crime, também possui a função de ser instrumento para que o Judiciário desempenhe seu poder punitivo da melhor maneira possível, seja demonstrando a presença do fumus boni iuris, do periculum in mora e da proporcionalidade da medida, ou se manifestando pela ausência de tais elementos de forma a resguardar direitos e garantias individuais do investigado.

Sobre o autor
Davi Afonso Coimbra de Melo

Pós-graduando em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).︎

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