4. A NECESSIDADE DE RECONHECIMENTO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PELA AUTORIDADE POLICIAL
Como já abordado nos capítulos anteriores, quando diante de um fato insignificante aos olhos do Direito Penal, a autoridade policial possui não só o poder, mas também, o dever de, por exemplo, deixar de lavrar auto de prisão em flagrante ou até mesmo deixar de instaurar inquérito policial, desde que motive suas razões sob a ordem do art.2, §6º, do Estatuto do Delegado. Ou seja, o reconhecimento e a aplicação do princípio da insignificância ao caso concreto não estão, necessariamente, conectados somente a análise judicial, visto que, o Delegado, na posição de presidente do inquérito e de chefia da Polícia Judiciária, também se mostra como figura apta a realizar este juízo prévio sobre a materialidade do fato (MASSON,2015).
Conforme verificado por BARBOSA (2017, p.41-42), a depender da autoridade que venha a tomar determinada decisão, a jurisdição pode ter um caráter absoluto ou relativo.Trata-se, inegavelmente, de um sistema adotado pela Constituinte de 1988 e pelas normas infraconstitucionais a ela subordinada, no sentido de delimitar, durante a fase de investigação criminal, quais medidas serão tomadas exclusivamente por ordem do Estado-Juiz (reserva absoluta de jurisdição) e quais medidas serão decididas pelo Estado-investigador com o controle a posteriori do judiciário (reserva relativa de jurisdição).
Assim, reveste-se de particular importância entender como um erro atribuir ao Poder Judiciário o dever de se manifestar previamente sobre todos os atos que antecedem o processo, visto que nem todos estão abarcados na esfera da reserva absoluta. Sob essa ótica, o Poder Judiciário se molda como detentor da primeira e última palavra, visto atuar, também, como revisor da primeira decisão. Todavia, em sede de reserva relativa, o pontapé inicial pode ser tomado por outra autoridade também detentora de legitimidade decisória, qual seja, o Delegado de Polícia, o que não impede o controle judicial ao final da investigação (BARBOSA, 2017, p.43).
Nesse sentido, a melhor maneira de compreender esse processo é considerar que o sistema atual não é o mesmo de quando o Código Penal de 1940 foi promulgado, pois, naquela época, a análise sobre o dolo ou a culpa e a tipicidade material era feita no âmbito da culpabilidade, ou seja, tal juízo de valor só era feito pelo Juiz no momento de aplicar a pena o que, portanto, suprimiu o poder decisório e democrático dos demais órgãos participantes da persecução penal (BARBOSA, 2019, p.38-39).
Por esta razão, existem correntes doutrinárias, as quais ainda são influenciadas pelo direito penal do autor e por ideais causalistas, que defendem que o Delegado de Polícia não realiza juízo de valor sobre a situação fática concreta que chega ao seu conhecimento, devendo se limitar apenas a análise formal da tipicidade, deixando a cargo do Ministério Público a cognição jurídica sobre o que é ou não é insignificante ao caso concreto (MOUSINHO,2018).
Pode-se dizer que tal visão se mostra equivocada e ultrapassada sob a ótica de um Estado Democrático de Direito, visto que, vai de encontro ao que prega o princípio da proporcionalidade, corolário do Garantismo Penal. Neste contexto, para Queiroz (2014) fica claro que o princípio da proporcionalidade é um princípio constitucional implícito que deve ser analisado em duas vertentes: a proibição do excesso e a proibição de uma proteção deficiente do Estado.
A primeira, conhecida como garantismo negativo, refere-se a uma relação de compatibilidade entre a pena cominada e o bem jurídico que está sendo protegido. Por outro lado, a segunda vertente se refere ao garantismo positivo, ou seja, ao dever que possui o legislador de conceder não só ao Estado, mas também, à coletividade, uma intervenção jurídico penal suficiente (QUEIROZ, 2014).
Desse modo, o autor deixa claro que para que o Direito Penal incida de maneira a respeitar os princípios norteadores de sua atuação, deve haver um equilíbrio entre o direito punitivo do Estado e a proteção aos bens jurídicos da sociedade, resultando no chamado Garantismo Integral (ALMEIDA, 2017).
Conforme mencionado, o mais preocupante é constatar que, na realidade, há uma predominância do garantismo negativo em detrimento do garantismo positivo, ou seja, o encarceramento a qualquer custo, o qual considera apenas o encaixe entre o fato e a norma penal anteriormente prevista, toma lugar de destaque no momento do Estado exercer o seu jus puniendi.
Assim, a autoridade que busca ir de encontro a esse raciocínio punitivo, é, nas palavras de Morais da Rosa (2015):
" alguém que impossibilita a realização da vontade de punir e, assim, posta-se no lugar de limite. E todo aquele que se coloca no lugar de fazer barreira, em uma sociedade sedenta por bodes expiatórios que possam aparentemente quitar a nossa culpa de todos os dias, acaba sendo tratado como desertor".
Conforme explicado acima, no contexto atual existem situações em que é exigido do Delegado de Polícia um posicionamento contrário à cultura punitiva, tendo em vista que este possui como atribuição não só reunir prova da culpa, mas também atuar como um defensor das arbitrariedades e dos excessos cometidos pelo próprio Estado, de forma a tutelar a liberdade individual do indivíduo inocente, sendo uma verdadeira autoridade de Garantias (BARBOSA, 2012).
Como forma de retratar essa realidade, podem ser citados os mais variados casos de delegados que são pressionados a sofrerem responsabilização civil, administrativa e até penal, por exemplo, ao não lavrar o auto de prisão em flagrante em virtude do fato cometido ser insignificante aos olhos do Direito Penal. Um desses casos foi exposto pela imprensa do Estado do Paraná, em que foram encaminhados à Corregedoria da Polícia cerca de 30 pedidos de processos administrativos disciplinares pelo Poder Judiciário em conjunto com o Ministério Público contra seis delegados, sob o argumento de que teriam extrapolado suas prerrogativas ao aplicarem o princípio da insignificância (KHALED JR; MORAIS DA ROSA, 2014).
Assim, conclui-se que o Delegado de Polícia é visto, nas palavras de Eduardo Fontes (2019, p.329) "como um mero fazedor de B.O", sendo considerado violador da lei quando vai além da análise formal do delito, posição esta, deve-se destacar, que nada se coaduna com os pressupostos democráticos e isonômicos conferidos a todas as carreiras jurídicas .
Nesse mesmo sentido, é o pensamento de Machado (2017, p.31):
Não é à toa que as autoridades públicas que se colocam no contrafluxo histórico do poder punitivo são constantemente estigmatizadas e até mesmo criminalizadas. Sublinhe-se que tal afirmação não é mero exercício retórico ou figura de linguagem. Os casos são absolutamente reais! Citem-se os inúmeros delegados de polícia que foram (e ainda são) ameaçados de responsabilização civil, administrativa e criminal pela não lavratura de auto de prisão em flagrante nas hipóteses de bagatela. Ao não prenderem por insignificâncias, tornam-se os grandes responsáveis pela "insegurança coletiva", o que normalmente é visto como dado problemático à imagem das instituições públicas que representam perante a sociedade. No fundo, diante de todas as cobranças internas e externas, públicas ou veladas, essas "autoridades dissidentes" arriscam-se, oferecem a "cabeça a prêmio" simplesmente por se recusarem a atuar no palco do Estado Penal.
O autor deixa claro na citação acima que a autoridade policial, ao aplicar o princípio da insignificância, não está protegendo o culpado da punição penal, mas sim, está protegendo direitos de um indivíduo que, a uma primeira análise técnico-jurídica dos fatos, não praticou fato típico e, portanto, não violou a lei penal. Todavia, vale ressaltar que não pertence ao Delegado de Polícia a decisão final sobre a aplicação de tal princípio, tendo como dever encaminhar as peças de informação ao Poder Judiciário, para que em um juízo posterior o Ministério Público realize sua análise dos fatos e se manifeste no mesmo sentido ou em sentido diverso ao despacho fundamentado da autoridade policial.
Nesse sentido é o escólio do Delegado de Polícia Eduardo Fontes:
"Assim, quando a notícia de um crime é levada ao conhecimento da Autoridade Policial, caberá ao Delegado de Polícia realizar uma análise criteriosa acerca da viabilidade ou não da instauração do inquérito policial. Não havendo justa causa para tanto, deve o Delegado de Polícia fundamentadamente abster-se de instaurar o inquérito e encaminhar as peças de informação ao membro do Ministério Público, uma vez que o arquivamento somente ocorre mediante decisão judicial, em decorrência do princípio da obrigatoriedade da ação penal (art. 28. do CPP)". (FONTES, 2019, p.332).
Conforme citado acima, de forma a complementar tal raciocínio, é imperioso ressaltar que não há na legislação pátria dispositivo que limite a atuação do Delegado de Polícia à análise do fato em seu aspecto formal (HOFFMANN, 2017, p.49). Tanto é verdade, que um dos objetivos do inquérito policial é chegar ao fumus boni iuris, que no processo penal ganha a alcunha de fumus comissi delicti, ou seja, almeja-se ao final do procedimento investigatório ter elementos que demonstrem a prova da existência do crime e indícios de sua autoria.
Assim, é importante ressaltar que a partir do momento em que instaura-se o inquérito policial baseado em um fato flagrantemente desassistido de tipicidade material e, portanto, desacompanhado do fumus comissi delicti, acaba-se por contribuir para com a movimentação desnecessária da máquina pública, o que acarreta um desmedido prejuízo financeiro aos cofres públicos com um processo que está fadado a ser arquivado em seu decorrer (HOFFMANN, 2017, p.50).
Ora, se o Delegado não aplica o princípio da insignificância ao caso concreto e acaba por instaurar inquérito policial, possui o Ministério Público o dever de pedir o arquivamento dos autos, visto tratar-se de fato materialmente atípico. Todavia, caso o membro do parquet resolva ajuizar a ação, o que se espera do Poder Judiciário é que faça cumprir a norma descrita no art. 395. do Código de Processo Penal e rejeite a denúncia sob o argumento de falta de justa causa para a ação penal. Porém, em um cenário mais drástico, pode o Poder Judiciário receber a denúncia, a qual resultará em dois caminhos possíveis: ou na absolvição sumária do réu por atipicidade do fato que está sendo imputado (Art.397,III, do CPP) ou no julgamento improcedente da ação através da sentença do Juiz (NUCCI, 2014).
No entanto, até chegar à decisão definitiva, um enorme prejuízo já foi causado tanto ao Estado, no tocante aos gastos com o processo em si, quanto ao investigado, o qual foi acusado de um fato que nem constitui crime, afetando, dentre outras garantias fundamentais, a dignidade da pessoa humana. Desse modo, entende Henrique Hoffmann:
“Também parece indiscutível que a tão só instauração de procedimento policial já configura um atentado ao chamado status dignitatis do investigado. O inquérito policial representa um constrangimento (strepitus) ao investigado, embaraço esse que só será legal se houver justa causa a motivar a instauração do procedimento. É dizer, a deflagração de inquérito policial depende da possibilidade de se reunir um conjunto de elementos mínimos capazes de estabelecer um liame entre autoria e materialidade de uma infração penal.” (HOFFMANN, 2017, p.48).
Conforme citado acima, consequentemente, a não aplicação do princípio da insignificância pela autoridade policial gera consequências nefastas à sociedade, o que demonstra uma tentativa de limitar a função do Delegado em, simplesmente, verificar se houve a subsunção do fato à norma, realizar a oitiva dos envolvidos e enviar o relatório do ocorrido à Justiça (CONCEIÇÃO,2010).
Ademais, além do aumento com o gasto público, a prisão por fatos insignificantes sob a ótica do Direito Penal contribuiria também para a superlotação do sistema carcerário brasileiro, principalmente no tocante às prisões provisórias, as quais, segundo dados do 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2019), já correspondem ao número de 234.241 (duzentos e trinta e quatro mil duzentos e quarenta e um) presos, valor condizente à quase a metade do número total de presos (condenados e provisórios).
Desta feita, pode-se dizer que reconhecer a aplicação do princípio da insignificância pelo Delegado de Polícia não o faz descumprir suas funções, exercer atribuição que compete a outro órgão ou autoridade, ou o deixa colaborar com o sentimento de impunidade enraizado na sociedade. Ao contrário disso, o legitima como autoridade que exerce função jurídica, com poder de decisão livre de qualquer vício ou de pressões externas, atuando como um verdadeiro instrumento de efetivação dos direitos e garantias individuais, pois seu objetivo principal é fazer a lei penal ser cumprida, seja através do poder punitivo do Estado ou da abstenção desse mesmo poder.
Assim, para completar tal raciocínio, por exemplo, faz-se necessário ressaltar a Súmula n. 6. do I Seminário Integrado da Polícia Judiciária da União e do Estado de São Paulo:
"É lícito ao Delegado de Polícia reconhecer, no instante do indiciamento ou da deliberação quanto à subsistência da prisão-captura em flagrante delito, a incidência de eventual princípio constitucional penal acarretador da atipicidade material, da exclusão de antijuridicidade ou da inexigibilidade de conduta diversa.". (Súmula n.6, 2013).
Em vista disso, vale lembrar que a aplicação da insignificância pelo Delegado em nada prejudica o controle externo da atividade policial desempenhado pelo Ministério Público (Art.129,VII,CF), o qual, como já exposto, pode seguir por caminho diverso e entender pela presença da tipicidade material da conduta (HOFFMANN, 2017, p.52).
Ademais, tal conduta também não implica em danos ao Poder Judiciário, o qual, por exemplo, continua formando sua convicção pela livre apreciação das provas produzidas em contraditório judicial sob a ótica do art.155 do CPP (NUCCI, 2014).
Nesse mesmo sentido se manifesta a doutrina:
"Não só os Delegados podem como devem analisar os casos de acordo com o princípio da insignificância. Merecem aplauso e incentivo os Delegados que agem dessa forma, pois estão cientes do papel que lhes cabe na investigação preliminar, atuando como filtros de contenção da irracionalidade potencial do sistema penal [...] Não interessa reafirmar qualquer lugar de autoridade: interessa é obstaculizar a irracionalidade e para isso, os delegados devem ser a primeira barreira". (KHALED JR; MORAIS DA ROSA, 2014).
Por todas essas razões, conclui-se que em uma situação na qual a insignificância da conduta é perceptível de plano, possui ao Delegado, enquanto primeira autoridade com formação jurídica a ter contato com os fatos, o dever de realizar um juízo prévio e decidir pela não lavratura de auto de prisão em flagrante, assim como, optar pela não instauração de inquéritos policiais infundados, os quais não possuem como objetivo a proteção de bem jurídico algum, mas sim, de monopolizar a função decisória nos demais órgãos participantes da persecução penal, de forma a mecanizar a atuação do Delegado e ir em sentido contrário ao que prega o art.144 da Constituição Federal em conjunto com o art.2º;§6º da lei 12.830/2013, ou seja, independência funcional e poder de decisão assim como qualquer outra autoridade que exerce atividade jurídica.
4.1. ARQUIVAMENTO DE NOTITIA CRIMINIS X ARQUIVAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL
Nesse momento, já resta evidente o que efetivamente é o princípio da insignificância e qual o papel do Delegado de Polícia ao aplicá-lo. Todavia, também surge outra questão a ser debatida: ao fazer incidir o princípio ora estudado no caso concreto, não estaria a autoridade policial desrespeitando a interpretação que é dada ao art.17 do Código de Processo Penal?
Nos moldes deste artigo (CPP, art.17), depreende-se que o Delegado não pode mandar arquivar autos de inquérito, visto que o arquivamento é um ato complexo, ou seja, se concebe mediante o requerimento do Ministério Público e a decisão favorável do juiz, devendo o procedimento investigatório prosseguir até todas as diligências necessárias terem sido efetuadas (MACHADO, 2010, p.31), vejamos:
Art. 17. A autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito.
Inicialmente, faz-se imperioso destacar a diferença entre arquivar uma notícia crime e arquivar os autos de um inquérito policial. De acordo com a redação do art.28 do CPP, o arquivamento deriva da decisão final do Ministério Público, desse modo:
Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.
Assim, sob a ótica de Fontes (2019, p.331), ao tomar conhecimento da notícia de um provável fato criminoso, a autoridade policial tem por dever analisar de forma técnico-jurídica todos os elementos da narrativa descrita, dando ênfase aos elementos que compõem o fato típico, quais sejam, conduta, resultado, nexo de causalidade e tipicidade, tanto formal quanto material. Dessa forma, uma vez verificada a ausência de justa causa, tem por dever de ofício deixar de instaurar o respectivo inquérito policial ou termo circunstanciado de ocorrência. Todavia, uma vez instaurado o procedimento investigatório, por força do art.28 do CPP, o seu arquivamento somente se procede mediante decisão judicial derivada de pronunciamento do Ministério Público, em razão do princípio da obrigatoriedade da ação penal.
Desse modo, conforme explicado acima, no momento em que a autoridade policial decide por não instaurar nenhum procedimento investigatório, esta não está ordenando que se arquivem os autos do inquérito, visto que este, por não ter sido verificada a necessidade de sua instauração, sequer existirá no mundo jurídico.
Nesse contexto, entende-se que a "notitia criminis" é apenas a comunicação de um suposto fato criminoso que chega ao conhecimento da autoridade policial, a qual pode ser arquivada, mediante despacho fundamentado do Delegado, em razão de uma causa supralegal de exclusão da tipicidade material que retira a justa causa para a instauração do inquérito policial, cabendo, inclusive, recurso diante de tal decisão, conforme exposto no art.5, §2º, CPP (JÚNIOR, 2016).
Assim, de acordo com o entendimento de Capez (2010, p.315), deve o Delegado atuar como um primeiro filtro da persecução penal, de forma a evitar a lavratura de autos de prisão em flagrante ou a abertura de procedimentos investigatórios que possuem como objetos fatos atípicos do ponto de vista material, em que a conduta praticada não lesionou ou expôs nenhum bem jurídico a perigo, vejamos:
“O auto somente não será lavrado se o fato for manifestamente atípico, insignificante ou se estiver presente, com clarividência, uma das hipóteses de causa de exclusão da antijuridicidade, devendo-se atentar que, nessa fase, vigora o princípio do in dubio pro societate, não podendo o delegado de polícia embrenhar-se em questões doutrinárias de alta indagação, sob pena de antecipar indevidamente a fase judicial de apreciação de provas; permanecendo a dúvida ou diante de fatos aparentemente criminosos, deverá ser formalizada a prisão em flagrante” (CAPEZ, 2010, p.314-315).
Fica evidente, diante desse quadro, que ao aplicar o princípio da insignificância ao caso concreto a autoridade policial não está infringindo o art.17, CPP, pois, o que ocorre, na verdade, é o arquivamento das peças informativas dos fatos que chegam ao conhecimento do Delegado. Portanto, na posição de primeiro sujeito receptor do caso concreto, o Delegado detém poder decisório e discricionário de apenas instaurar o inquérito policial quando da narrativa dos fatos o conduzirem ao cometimento de um fato dotado de tipicidade formal e material, atitude esta que nada intervém na atribuição do titular da ação penal de optar por caminho diverso e instaurar a respectiva ação penal.
4.1.1. O ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL À LUZ DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
De forma a reforçar o que foi afirmado no subcapítulo anterior, é importante destacar uma das principais alterações ocorridas no Código de Processo Penal (CPP) feita pelo "pacote anticrime" (lei nº 13.964/2019), qual seja, a alteração do texto do art.28 do CPP, que excluiu a participação do Juiz na decisão de arquivamento do inquérito policial, sendo esta sua atual redação que entrará em vigor a partir do dia 23 de janeiro de 2020:
Art. 28. Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial e encaminhará os autos para a instância de revisão ministerial para fins de homologação, na forma da lei.
Percebe-se, à vista disso, que o arquivamento ainda se constitui como um ato complexo, pois deriva da decisão final do Ministério Público e da decisão favorável não mais do Juiz, mas sim, da instância de revisão ministerial, a qual pode ser a Procuradoria-Geral de Justiça nos crimes de competência estadual, ou umas das Câmaras de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal que possuem competência criminal (ARAS, 2020).
Diante disso, após decidir pelo arquivamento do inquérito policial, deve o Ministério Público comunicar à vítima, à autoridade policial e ao investigado, encaminhando os autos para a instância revisora respectiva, não havendo, portanto, participação alguma do Poder Judiciário. Ou seja, houve, de fato, uma reafirmação do sistema acusatório, visto que torna explícita a separação das funções de acusar e julgar, tornando o arquivamento um procedimento decidido exclusivamente no âmbito do Ministério Público (BARROS & ARAS, 2020).
Nesse contexto, a partir de um pensamento analógico, pode-se concluir que se o arquivamento do respectivo inquérito policial se deu em razão da ausência de tipicidade material da conduta praticada, a insignificância não passará pela ingerência judicial, o que legitima ainda mais a análise prévia da aplicação de tal princípio pelo Delegado de Polícia quando em contato com a notícia crime.
Ademais, de forma a legalizar o que já estava previsto na resolução nº 181 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP, 2017), a Lei 13.964/2019 também trouxe como inovação legislativa o "acordo de não persecução penal" previsto no art.28-A do CPP. Dessa forma, segundo a redação deste artigo, nos casos em que o Ministério Público optar pelo não arquivamento do feito, sob a condição do investigado ter confessado formal e circunstancialmente o cometimento de crime desprovido de violência ou grave ameaça cuja pena mínima seja inferior a 4 anos, o titular da ação penal pode optar por não ajuizar a ação penal, desde que as duas funções basilares do Direito Penal sejam cumpridas, isto é, promover a prevenção e a repressão de delitos através de medidas alternativas previstas na lei.
Nesse sentido:
“Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:
I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;
II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;
III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46. do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);
IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45. do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou
V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada. (CPP, Art.28-A).
Portanto, percebe-se que no acordo de não persecução penal o fato objeto de sua incidência possui tipicidade tanto formal quanto material, não se tratando assim de delitos insignificantes, até porque a pena mínima destes tem que ser inferior a 4 (quatro) anos, o que demonstra, por si só, a potencialidade ofensiva da conduta. Ou seja, o Ministério Público, apesar de entender pela existência de adequação normativo-típica entre a conduta e a norma proibitiva prevista em lei, assim como, pela ocorrência de lesão ao bem jurídico protegido pela norma, não está mais obrigado a ajuizar a ação penal nas condições do art.28-A do CPP.
Assim, se o Ministério Público possui a faculdade de não ajuizar a ação penal mesmo ao se deparar com um fato típico e que, em tese, deveria ser punido pelo Direito Penal (ARAS, 2020), não há motivos para defender a não aplicação do princípio da insignificância pelo Delegado. Como já visto, o princípio da bagatela se constitui como uma causa supralegal de exclusão da tipicidade material, quer dizer, somente é aplicado quando a conduta não fere ou não causa perigo de lesão ao bem jurídico protegido.
Ora, se diante de uma ocorrência dotada de conduta, nexo de causalidade, resultado e tipicidade formal e material a ação penal pode ser arquivada, quanto mais diante de um fato que nem pode ser considerado criminoso diante da ausência de materialidade. Logo, seguindo o mesmo raciocínio do "acordo de não persecução penal", pode a autoridade policial arquivar a notitia criminis e não instaurar o inquérito policial nos casos em que a insignificância da conduta é flagrantemente perceptível.
4.2. POSICIONAMENTO DO STF E DO STJ À APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PELO DELEGADO.
Como já visto em capítulos anteriores, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se posicionaram acerca de diversas questões atinentes à insignificância, como seu conceito, natureza jurídica e vetores objetivos e subjetivos de sua aplicação. No entanto, no que diz respeito aos sujeitos de sua aplicabilidade, apesar do STF ter sido silente neste sentido, o STJ proferiu decisão nos autos do Habeas Corpus nº. 154.949. de Minas Gerais, julgado pelo Ministro Felix Fischer, em 03 de agosto de 2010, a qual merece ser interpretada e analisada de maneira a responder a seguinte pergunta: para o STJ, pode o Delegado de Polícia aplicar o princípio da insignificância no momento da tipificação da conduta?
O julgado em discussão trata acerca do furto de dois sacos de cimento de 50kg, avaliados em R$ 45,00 (quarenta e cinco reais). Em virtude disso, foi feita a prisão em flagrante pelos policiais militares, a qual, posteriormente, resultou na lavratura de auto de prisão em flagrante pelo Delegado.
Nesse contexto, em sede de habeas corpus, foi aplicado o princípio da insignificância pelo Poder Judiciário no tocante ao crime de furto (Art.155, CP) sendo o sujeito apenas condenado pelo crime de resistência (Art.329, CP) tendo em vista que o apenado reagiu de forma violenta ao flagrante, conseguindo por duas vezes fugir do domínio dos policiais.
Desta feita, a defesa alegou que a declaração de atipicidade do fato seria capaz de descaracterizar a prisão em flagrante, tornando-a ilegal. Contudo, em seu voto, o Ministro Felix Fischer entendeu pela legalidade da prisão em flagrante, uma vez que, o contexto fático apresentado aos policiais e, posteriormente, ao Delegado a uma primeira análise, era de tipicidade da conduta, devendo ser de responsabilidade do Poder Judiciário, de forma posterior, aplicar o princípio da insignificância. Nesse sentido, foi o entendimento do Ministro:
“Cumpre asseverar que a observância do princípio da insignificância no caso concreto é realizada a posteriori, pelo Poder Judiciário, analisando as circunstâncias peculiares de cada caso”
(STJ – HC: 154949 MG 2009/0231526-6, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 03/08/2010, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação:DJe 20/08/2010).
Desse modo, conforme explicado acima, o que foi dito pelo STJ se coaduna com toda a tese defendida neste singelo trabalho, qual seja, que o juízo final acerca da insignificância ou não da conduta é feito pelo Juiz, o que não impede, que este mesmo ato valorativo seja feito de maneira prévia pela autoridade policial.
Ou seja, no caso do julgado ora discutido, o Delegado lavrou o auto de prisão em flagrante em virtude da aparente tipicidade que rodeava os fatos, mas, para isso, teve que ser feita a análise de todo o conceito analítico de crime e não apenas verificar que ocorreu a subtração de coisa alheia móvel (sacos de cimento) e que tal conduta é prevista no art.155 do Código Penal como crime. Bem como, caso verificasse que o fato era atípico, por não ter ferido ou posto em risco o bem jurídico patrimônio da vítima, poderia não lavrar o auto de prisão, sendo vedado ao Delegado, apenas, a palavra final sobre a aplicação do princípio.
Em resumo, esta foi a conclusão inserida no Informativo nº. 441. do Superior Tribunal de Justiça:
“A Turma concedeu parcialmente a ordem de habeas corpus a paciente condenado pelos delitos de furto e resistência, reconhecendo a aplicabilidade do princípio da insignificância somente em relação à conduta enquadrada no art. 155, caput, do CP (subtração de dois sacos de cimento de 50 kg, avaliados em R$ 45). Asseverou-se, no entanto, ser impossível acolher o argumento de que a referida declaração de atipicidade teria o condão de descaracterizar a legalidade da ordem de prisão em flagrante, ato a cuja execução o apenado se opôs de forma violenta. Segundo o Min. Relator, no momento em que toma conhecimento de um delito, surge para a autoridade policial o dever legal de agir e efetuar o ato prisional. O juízo acerca da incidência do princípio da insignificância é realizado apenas em momento posterior pelo Poder Judiciário, de acordo com as circunstâncias atinentes ao caso concreto. Logo, configurada a conduta típica descrita no art. 329. do CP, não há de se falar em consequente absolvição nesse ponto, mormente pelo fato de que ambos os delitos imputados ao paciente são autônomos e tutelam bens jurídicos diversos”
(STJ, Info. nº441. HC 154.949/MG. Rel. Min. Felix Fischer. DJ 03/08/2010).
Por todas essas razões, depreende-se que apesar do julgado ter deixado claro que a análise da insignificância da conduta deve ser analisada posteriormente, em momento algum houve a proibição da feitura deste juízo técnico-jurídico pela autoridade policial, contanto que não seja definitivo. Tal fato reafirma, portanto, o potencial que possui o princípio da insignificância, ao ser aplicado pelo Delegado, de se tornar um grande aliado da máquina pública e contribuir para retirar a sobrecarga dos mais variados órgãos dentre eles, principalmente, o Poder Judiciário e o Ministério Público, de forma a evitar prisões provisórias infundadas e inquéritos indevidamente instaurados.
4.3. A FUNÇÃO E O DEVER DO DELEGADO DE POLÍCIA DIANTE DO FATO PENALMENTE INSIGNIFICANTE À LUZ DA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE
Segundo o art. 1º da Lei de abuso de autoridade (Lei Federal n°13.869, de 5 de setembro de 2019), pratica o crime de abuso de autoridade qualquer agente público, servidor ou não, que, no exercício das suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.
Nesse contexto, vale lembrar que a expressão "agente público" é bastante abrangente, sendo incluídos nesse conceito todos aqueles que desempenham funções públicas, mandato, cargo ou emprego, de forma definitiva ou transitória, remunerada ou gratuita (XAVIER, 2018, p.125), estando, portanto, o Delegado de Polícia abarcado neste conceito.
Desse modo, dispõe o parágrafo único do art.2º da lei 13.869/2019:
Art.2º, Parágrafo único. Reputa-se agente público, para os efeitos desta Lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função em órgão ou entidade abrangidos pelo caput deste artigo.
Conforme verificado por Lessa (2019), para que esta lei incida ao caso concreto é necessário a presença do dolo específico, seja de prejudicar ou de beneficiar terceiros ou a si próprio. Trata-se, inegavelmente, da aplicação do princípio da impessoalidade, visto que, no momento de praticar qualquer ato administrativo o agente público tem por dever respeitar o interesse da administração, e não agir baseado em interesse próprio. Sob essa ótica, ganha particular relevância a presença do desvio de finalidade, ou seja, da prática de fim diverso do estabelecido em lei.
Uma vez entendido isso, é interessante perceber que o art.9º da lei 13.869/2019 considera crime "decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais". Como é sabido, à luz do artigo 301 do CPP, o ato de prender em flagrante pode ser feito por qualquer do povo, sendo um dever de ofício, apenas, para as autoridades policiais e seus agentes. No entanto, ao tomar conhecimento de todo o contexto fático-probatório que envolve a prisão, deve o Delegado analisar a legalidade da captura feita. Ou seja, deve considerar todo o conceito analítico de crime antes de lavrar o respectivo auto de prisão em flagrante.
Visto que, caso o Delegado se limitasse apenas à análise formal do delito não estaria somente ignorando sua função de guardião dos direitos fundamentais e aplicador da lei que lhe é concedida pela Lei nº 12.830/2013 e pela Constituição Federal, mas também poderia recair na prática de um ilícito penal. Conforme explicado acima, tratando-se de fato materialmente atípico, decidir pelo enclausuramento de um sujeito que não feriu ou lesionou o bem jurídico tutelado pela lei penal, pode ser tipificado no art. 9º da Lei de Abuso de Autoridade, pois ele estaria se manifestando "em desconformidade com as hipóteses legais".
Assim, pelos ensinamentos de Capez (2010), percebe-se que as infrações a tais "hipóteses legais" se referem aos casos em que o auto de prisão em flagrante foi lavrado pelo Delegado quando, na verdade, não poderia ter sido. Portanto, quando se lavra o flagrante de alguém que não se encaixa nas hipóteses de flagrante delito previstas no art.302 do CPP, bem como, quando se coloca alguém no cárcere que não violou materialmente a lei penal, está a autoridade policial sujeita a ser responsabilizada por abuso de autoridade.
Partindo desse raciocínio, é a crítica de Gomes (2002) em relação ao flagrante lavrado contra uma mulher que furtou uma cebola:
“A prisão em flagrante de Izabel é fruto de um equívoco. Demonstra de outro lado que o ensino jurídico no nosso país (e particularmente o ensino do Direito Penal) precisa avançar. O homem já chegou à lua, o mundo se globalizou, o planeta se integrou inteiramente pela Internet e nosso Direito Penal continua o mesmo da Segunda Guerra Mundial. O delegado agiu da forma como agiu porque aprendeu na faculdade ser um legalista positivista e napoleônico convicto. Esse modelo de ensino jurídico (e de Direito Penal) já morreu. Mas se já morreu, porque o delegado continua lavrando flagrante no caso do furto de uma cebola? A resposta é simples: morreu, mas ainda não foi sepultado! O modelo clássico e provecto de Direito Penal é como elefante: dar tiros nele é fácil, difícil será sepultar o cadáver. O delegado, o juiz e o promotor que seguem o velho e ultrapassado modelo de Direito Penal (formalista, legalista), no máximo aprenderam o Direito Penal do finalismo (que começou a ficar decadente na Europa na década de 60 exatamente por ser puramente formalista). Apesar disso, ainda é o modelo contemplado (em geral) nos manuais brasileiros e é o ensinado nas faculdades de direito." (GOMES,2002).
Por todas essas razões, conclui-se que a aplicação do princípio da insignificância quando a atipicidade material do fato é perceptível de plano, é um dever do Delegado que deriva tanto da sua função como autoridade responsável por não só punir o infrator, mas também, de resguardar preceitos constitucionais que necessitam ser defendidos, quanto um dever que deriva de lei, qual seja, a lei de abuso de autoridade. Logo, por suas atividades serem de natureza jurídica, a autoridade policial não pode pactuar com condutas arbitrárias que não violam nenhum bem jurídico, pois, desta forma, estaria indo de encontro à missão de ser o primeiro garantidor dos direitos fundamentais e aplicador do direito ao caso concreto.