3 Da análise da possibilidade da aplicação do CDC ao SUS
O Código de Defesa do Consumidor é responsável por estabelecer os direitos básicos do consumidor no que se trata sobre segurança e qualidade dos serviços oferecidos e prestados por fornecedores.
Conforme previsto pela Lei nº 8.078/1990, o Direito do Consumidor pode ser aplicado em algumas relações de consumo que envolvam serviços concedido pela administração pública, considerando que, para existir tal relação, são necessárias trocas econômicas entre duas partes: consumidor e fornecedor.
A administração pública, conforme demonstrado anteriormente, é responsável por fornecer diversos serviços à população, sendo grande parcela regida pelas regras do Código de Defesa do Consumidor, considerando que são serviços cobrados, principalmente, por tarifas. A título de exemplo é possível mencionar serviços como o de energia elétrica e rede de água e saneamento, regulados pelo ente público, mas cobrados de cada cidadão mensalmente.
Considerando a troca econômica direta entre as partes, em que uma fornece e cobra, e outra recebe e paga, é perfeitamente possível que os usuários de tais serviços utilizem o CDC para garantirem o regular exercício de seus direitos, com proteção contra abusos e serviços mal ofertados.
Entretanto, ao se tratar sobre serviços fornecidos de forma gratuita, a análise sob o ponto de vista consumerista é drasticamente alterada. Isto é, nos casos de gratuidade dos serviços oferecidos pela administração pública não é possível identificar uma relação típica de consumo, uma vez que são prestados sem qualquer custo.
Diante de um cenário atípico, é importante considerar todas as formas nas quais o serviço gratuito de saúde é ofertado à população brasileira. Conforme anteriormente exposto, a iniciativa privada pode servir como mecanismo para a difusão do sistema único de saúde por meio de parcerias e convênios, ofertando atendimento e procedimento de forma gratuita.
Nesse caso, ao analisar uma relação de consumo entre o usuário e um hospital particular, evidente seria a incidência das regras do Código de Defesa do Consumidor, uma vez que uma troca econômica entre fornecedor e consumidor caracteriza, em um nível básico, toda relação de consumo.
Porém, nos casos mencionados de parceria entre o ente público e a iniciativa privada, em que os hospitais particulares fornecem serviços gratuitos ao cidadão em nome do Sistema Único de Saúde, o usuário é tido como um consumidor indireto. Isto é, o indivíduo é tratado como usuário do serviço público, não sendo reconhecida qualquer relação direta de consumo entre o paciente e o hospital conveniado no contexto de uma prestação gratuita de serviços pelo SUS. Dessa forma, o CDC não se aplica diretamente à relação entre o paciente e o hospital particular conveniado para efeitos comerciais, pois não há pagamento direto pelo serviço.
Assim, torna-se inegável considerar que a forma pela qual o serviço de saúde é efetivamente pago influencia diretamente na incidência ou não do Direito do Consumidor. Ao considerar que o indivíduo se torna consumidor no momento em que, ao participar de uma relação de consumo, paga, de fato, por um serviço ou por um bem, e a saúde ofertada pelo Sistema Público é unicamente paga pelo Governo, que recolhe impostos específicos para o financiamento do setor da saúde brasileira, entende-se a impossibilidade da aplicação direta do Código de Defesa do Consumidor no que tange o SUS.
Nesse sentido, Bruno Miragem:
Dentre as diferentes espécies de serviços públicos, o CDC aplicar-se- á àqueles em que haja a presença do consumidor como agente de uma relação de aquisição remunerada do respectivo serviço, individualmente e de modo mensurável (serviços uti singuli). Não se cogita assim, a aplicação do CDC à prestação de serviços públicos custeados pelo esforço geral, através da tributação, como é o caso dos que são oferecidos e percebidos coletivamente, sem possibilidade de mensuração ou determinação de graus de utilização do mesmo (serviços uti universi) (2013, p. 172 - 173).
Ainda no mesmo entendimento, tal cenário foi analisado jurisprudencialmente pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), restando confirmada a inaplicabilidade do CDC nos serviços prestados pelo SUS:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXCEÇÃO DE COMPETÊNCIA. AÇÃO INDENIZATÓRIA. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO. AUSÊNCIA DE REMUNERAÇÃO. RELAÇÃO DE CONSUMO NÃO CONFIGURADA. DESPROVIMENTO DO
RECURSO ESPECIAL. 1. Hipótese de discussão do foro competente para processar e julgar ação indenizatória proposta contra o Estado, em face de morte causada por prestação de serviços médicos em hospital público, sob a alegação de existência de relação de consumo.
2. O conceito de “serviço” previsto na legislação consumerista exige para a sua configuração, necessariamente, que a atividade seja prestada mediante remuneração (art. 3º, § 2º, do CDC). 3. Portanto, no caso dos autos, não se pode falar em prestação de serviço subordinada às regras previstas no Código de Defesa do Consumidor, pois inexistente qualquer forma de remuneração direta referente ao serviço de saúde prestado pelo hospital público, o qual pode ser classificado como uma atividade geral exercida pelo Estado à coletividade em cumprimento de garantia fundamental (art. 196 da CF). 4. Referido serviço, em face das próprias características, normalmente é prestado pelo Estado de maneira universal, o que impede a sua individualização, bem como a mensuração de remuneração específica, afastando a possibilidade da incidência das regras de competência contidas na legislação específica. 5. Recurso especial desprovido (REsp 493.181/SP, Rel. Ministra Denise Arruda, 1ª T., DJ 1º-2-2006).
No entanto, mister destacar que o CDC pode ser usado indiretamente para garantir a qualidade e segurança do atendimento. A instituição privada, ao firmar convênio com o SUS, assume a responsabilidade de prestar serviços de saúde adequados, eficientes e seguros, e pode ser responsabilizada por eventuais falhas.
Embora o CDC regule relações de consumo, seus princípios sobre a responsabilidade do fornecedor podem ser invocados em caso de falhas nos serviços prestados. No contexto do SUS, isso significa que, se um hospital particular conveniado prestar um atendimento inadequado, o paciente pode buscar reparação pelos danos sofridos com base nos princípios de responsabilidade civil, garantidos tanto pelo CDC quanto pela legislação civil e constitucional.
Assim, tem-se que o CDC não se aplica exclusivamente a serviços privados, mas sim a qualquer situação em que haja uma relação de consumo, independentemente de o fornecedor ser privado ou público. Contudo, para serviços públicos gratuitos, como o SUS, a aplicação do CDC é mais restrita, e as garantias do consumidor se fundamentam em outras legislações, como as constitucionais e específicas para cada área.
CONCLUSÃO
Diante do exposto, compreende-se que o Código de Defesa do Consumidor (CDC), criado pela Lei nº 8.078/1990, surgiu em atenção aos avanços trazidos pela Constituição Cidadã de 1988, representou um grande avanço para o direito dos consumidores no Brasil, com estruturação de regras e princípios que regeriam todas as relações daquele momento em diante.
O CDC tornou-se responsável por assegurar aos consumidores acesso à informações corretas e claras sobre produtos e serviços ofertados, promovendo a transparência nas transações comerciais, fundamentado em diversos princípios importantes.
Tais princípios garantem direitos fundamentais, como qualidade e segurança nos produtos e serviços, e a possibilidade de reparação por danos. Com isso, o CDC não apenas protege os consumidores, mas também promove um mercado mais justo e equilibrado, estimulando práticas de consumo consciente e ético. Essa legislação é essencial para assegurar um ambiente econômico saudável e sustentável.
Nesse sentido, uma vez que o Brasil passou por drásticas mudanças legislativas e jurídicas com o fito de expandir direitos dos cidadãos, também foi criado o Sistema Único de Saúde, por meio da Lei nº 8.142/1990, tornando-se um dos maiores sistemas públicos de saúde em atividade pelo mundo, sendo responsável por garantir acesso igualitário e integral à saúde para todos os brasileiros.
Ademais, ao considerar os princípios trazidos pela Constituição Federal, assim como na criação do CDC, a Lei que formaliza a criação do SUS estabelece a importância de diversos princípios que permitam a difusão e a expansão do acesso universal à saúde em todo o território nacional.
Ao considerar, em especial, os princípios da descentralização e da integralidade, tem-se que a organização jurídica e administrativa do Sistema Único de Saúde permite maior participação de diferentes entes na consolidação do sistema público em questão. Isto é, não apenas é possível identificar uma hierarquização entre os entes públicos, com divisões de funções entre a União, os estados e os municípios, mas também é possível perceber a possibilidade de participação e suporte por parte de entes particulares, que permitem, em algumas regiões, um alcance ainda maior do acesso à saúde.
Em vista dos serviços prestados pelos entes públicos e particulares no que tange à saúde, restou questionado pela doutrina e pela jurisprudência a possibilidade de aplicação do Código de Defesa do Consumidor nas questões que envolvam prestações advindas do Sistema Único de Saúde, considerando a possibilidade de uma relação de consumo entre o cidadão e o serviço prestado.
Uma análise nos fundamentos que estruturam o SUS, bem como o CDC, permitem uma conclusão negativa no que tange a possível relação entre ambos. Ao considerar que o Direito do Consumidor trata, principalmente, sobre trocas econômicas entre duas partes, torna-se evidente que o Sistema Único de Saúde não pode ser regido, no âmbito jurídico, pelo Código de Defesa do Consumidor, uma vez que os serviços prestados pelo sistema público são exclusivamente gratuitos, financiado pelo Governo e em atenção aos impostos recolhidos regularmente.
Ainda que exista prestação de serviços, e considerando a possibilidade de responsabilização entre servidores da saúde e usuários do sistema público, a relação entre o SUS e o CDC é restrita, de modo que alguns princípios essenciais do segundo esteja em convergência com os cuidados do serviço gratuito, mas de forma alguma regulamente sua operação, considerando a gratuidade e inexistência de relação comercial entre usuários do sistema público de saúde (cidadãos) e fornecedores dos serviços médicos (hospitais, clínicas, postos de saúde e outros).
REFERÊNCIAS
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