4.Infanticídio
A confusão exegética recebe nota máxima no exame do dispositivo seguinte, o art. 123, referente ao infanticídio, in verbis: "Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após: Pena - detenção, de 2 (dois) a 6 (seis) anos".
4.1. Divergências de praxe.
O que fazer com a mãe que, agindo sob a influência do estado puerperal, mata culposamente o filho que acabou de nascer? No campo jurídico-penal, nada. Só existe infanticídio na forma dolosa (CP, art. 18, parágrafo único). Logo, não cabe resposta punitiva. (Damásio de Jesus, ob. cit., 1991, p. 95; Frederico Marques, ob. cit., p. 144; Paulo José da Costa Júnior, Curso de direito penal, 1991, p. 19).
O crime é de homicídio culposo, contesta Fabbrini Mirabete: "A influência do estado puerperal não equivale à incapacidade psíquica e a puérpera responde pelo ato culposo, qualquer que seja ele" (ob. cit., p. 92). Fernando de Almeida Pedroso também fala em "homicídio culposo, ex vi da subsidiariedade deste em relação ao infanticídio" (Homicídio, participação em suicídio, infanticídio e aborto, 1995, p. 252).
Esta última observação não resolve o problema. Damásio de Jesus, Frederico Marques e Paulo da Costa Júnior, sem embargo do que afirmaram, também conheciam o princípio da subsidiariedade.
Qual, então, a explicação cabível? É de ordem crítico-metodológica: os princípios hermenêuticos sobre conflito de normas (subsidiariedade, especialidade, consunção, progressão criminosa etc.) carecem de autonomia e objetividade. Ainda que reflitam o esforço dos especialistas em sua tentativa de sistematização da matéria, não passam de simples instrumentos de justificação racional, nos casos concretos ou hipotéticos.
Nem sempre o concurso de normas é aparente. Não raro, o conflito é real, efetivo. O art. 18, parágrafo único, do Código Penal em vigor, que resolve a contento uma série infindável de questões, desta vez não funciona. Em combinação com o art. 121, § 3º, permite que se fale em homicídio culposo (abstraído o art. 123); em combinação com o art. 123 aponta no sentido de ausência de crime (abstraído o art. 121, § 3º ).
O próprio sistema, em sua origem, por defeito de fábrica, se encontra em pane, paralisado. É fácil concluir que, nesses casos, apesar das aparências em contrário, vontade e liberdade do intérprete ilustram com melhor desenvoltura o direito que lhe cabe efetivamente construir.
Outras vezes, notadamente quando o texto é um só, quando já foi isolado e contextualizado por todos os penalistas para ser melhor entendido, inexistindo qualquer outro dispositivo a disputar-lhe a primazia, a saída pode ser encontrada fora do sistema. Perquire-se, por exemplo, da justiça da norma, de sua oportunidade prática, de sua pertinência com uma efetiva e boa "política criminal". Veladamente, pela busca de seu "espírito", ou escancaradamente, pela explicitação dos princípios que a derrubam (analogia, "bis in idem", direito natural, lógica do razoável etc.) constrói-se um direito à la carte, em função dos gostos e preferências do momento. Quer dizer, a favor ou contra o réu, a lei é sempre uma hipótese, um eventual bilhete de loteria, uma sugestão dentre outras sugestões, porque nem sempre se faz acompanhar, por seu conteúdo, de autêntico potencial de efetividade.
É fato que, não raro, a lei se apresenta sem charme, sem beleza, descuidada em suas pretensões (vagueza e ambigüidade). Mas é fato igualmente que em outras oportunidades há bastante clareza e objetividade no conteúdo de sua mensagem. Triste ilusão imaginar que, só por isso, a lei se transforme em realidade normativa. Inexiste direito sem a cumplicidade do intérprete, disposto a carregá-la nas costas.
É justo, por exemplo, que uma simples mudança dos ponteiros do relógio determine uma brusca alteração de critérios normativos? Sim, é justo – eis a possível resposta de Nélson Hungria – a mãe que mata o filho "alguns dias após o parto", mesmo agindo sob a influência do estado puerperal, conta com "a válvula do art. 22 (e seu parág. único)". E continua: sem razão, assim, a crítica de Madureira do Pinho, pois "o mais elementar critério de boa política criminal aconselha a restrição do conceito do infanticídio, no tocante ao limite de tempo"(ob. cit., p. 257).
O arrependimento do saudoso penalista, em termos de opção dogmática (lei? eqüidade?) não tardou a se revelar. Na página 264, usando de uma linguagem considerada hoje politicamente incorreta, esclarece que à expressão "logo após o parto" não pode ser dada "uma interpretação judaica, mas suficientemente ampla, de modo a abranger o variável período do choque puerperal".
Como que esquecido do "mais elementar critério de política criminal", Nélson Hungria pura e simplesmente cortou do art. 123 a expressão "logo após". Existiria infanticídio enquanto existisse o "variável período do choque puerperal". E ganhou muitos adeptos, na doutrina e na jurisprudência.
Solução mais justa? Aparentemente, sim. Jurídica? Sem dúvida, quando concretizada historicamente por decisão de intérprete autorizado. Legal? Sim e não. À luz do Código, ilegal (art. 123); legal, no entanto, à luz de outras leis, que acenam para outros dogmas (por exemplo, "consciência e ditames da justiça" – art. 464 do Código de Processo Penal).
Em verdade, no entanto, se o "espírito" da lei combina com o texto, se é visível a preocupação do legislador de assumir por si mesmo os limites de sua previsão normativa ("durante o parto ou logo após"), não cabem extrapolações interpretativas, é inconcebível que se fale em infanticídio antes do parto ou muito tempo depois do parto. A interpretação da lei, de um lado, não dispensa a subjetividade do intérprete; reclama de outro lado a própria lei, como objeto. Em outras palavras, o direito penal em torno do infanticídio continua a existir como tal, como direito, mas não como conseqüência lógica de uma correta exegese da lei. Ao reverso, exatamente porque se interpretou a lei, e nela se notaram deficiências, é que outros dogmas foram invocados. Se esses dogmas compõem ou devem compor o caleidoscópio do direito eis uma questão que de perto interessa tanto à ciência como à filosofia.
A lei penal é fonte do direito? Depende. O intérprete é fonte do direito? Depende. A sociedade, o povo, de onde emanam os poderes constitucionais, é fonte do direito? Depende. Enquanto não se perceber o direito em sua dimensão histórica, em sua visceral mobilidade assistemática, e se preferir, ao contrário, a continuidade de uma ilusão, o apego a fórmulas ultrapassadas, facilmente desnudáveis por uma criança ("O rei está nu!"), sempre se dará crédito à maior ou menor sabedoria jurídica de povos e nações com elas identificados.
Não, primeiro a consciência da realidade possível. Por detrás da complexidade do direito se nota igualmente bastante simplicidade. Veja-se Heleno Fragoso. Destoando da maioria, no que tange ao infanticídio, teve olhos de criança para perceber que "a ação deve ser praticada durante ou logo após o parto. Esta expressão significa logo em seguida, imediatamente após, prontamente, sem intervalo" (ob. cit., p. 76).
Agora os olhos de adulto: "É esta, nos dias que correm, uma figura de delito que dificilmente encontra justificação, sendo notável a discrepância de critérios que as legislações adotam. O motivo de honra, que historicamente confere privilégio ao homicídio, evidentemente não mais se justifica em face da revolução de costumes de nosso tempo em matéria sexual e da emancipação da mulher. Por outro lado, a influência do estado puerperal só excepcionalmente poderia atenuar a reprovabilidade da ação praticada pela mãe" (p. 74).
Note-se a coincidência. Porque Heleno Fragoso não simpatiza com a norma, injusta para com a indefesa criança, não aumenta o campo de sua incidência. Aceita-a nos seus precisos limites. E quando ele examina a questão do concurso de agentes, aparentemente resolvida pelo próprio Código Penal (hoje, arts. 29 e 30), não se deixa contudo impressionar, há outros dogmas em seu repertório argumentativo.
O infanticídio, figura jurídica desatualizada, amplamente benéfica para a infanticida, não poderia estender-se ao partícipe, já que "o privilégio se funda numa diminuição da imputabilidade" (ob. cit., 1983, p. 78). Desaparece o apego à lei, antes anunciado, para que subsista a coerência ideológica do intérprete, que diz concordar com Nélson Hungria. Este, de seu turno, em face do antigo art.26 do CP, para justificar o homicídio do partícipe falava em "condições personalíssimas" da puérpera (como se essas condições não fossem, em conseqüência, nitidamente pessoais – zona de clareza do sistema). Curiosamente, reviu seu ponto de vista na última edição de seus Comentários (5ª ed., 1979, p. 266), fato que teria também ocorrido – apenas por um momento – com o próprio Heleno Fragoso, em 1976 (Lições de direito penal, parte especial, v. 1, 3ª ed., p.88).
A nova posição de Hungria foi comentada, em 2001, por Damásio E. de Jesus. Poucos notaram a mudança, afirma a certa altura, tanto que "até hoje, mais de 20 anos depois, ele continua erroneamente sendo citado por quase todos os autores, inclusive por nós, como partidário da tese da incomunicabilidade" ("Nélson Hungria e o concurso de pessoas no crime de infanticídio", Boletim IBCCrim n.° 99, fev. 2001, p. 5; igualmente em Temas de direito penal, 2ª série., 2001, p. 129).
Voltando a Machado de Assis: "Mudaria o Natal ou mudei eu?" Como não sentir, mais uma vez, a mágica do exegeta no processo histórico de construção ou reconstrução do direito? A mesma lei, os mesmos artigos, e o direito mudando em função do intérprete. Um intérprete que, às vezes, ostenta o mesmo número na cédula de identidade, a mesma impressão digital.
Alguma novidade na matéria (concurso de agentes), haja vista uma nova Parte Geral? Não, nenhuma. Se Damásio e Mirabete aludem à prática de infanticídio, por força dos arts. 29 e 30, Mayrink da Costa ainda seleciona – e aplaude – "a melhor doutrina, sendo incontestável que um tipo privilegiado não pode ser adequado por sujeito que não apresenta requisito normativo personalíssimo. O extraneus que participa de infanticídio comete crime de homicídio" (ob. cit., p. 100).
Aí está: "requisito normativo personalíssimo", regra de ouro de um direito natural que regula e calibra o direito positivo, de nível inferior, dos pobres mortais. Resta fazer algumas perguntas: a quem compete – e com que autoridade? – o acesso e divulgação dessas verdades eternas? Como explicar a rebeldia de Damásio de Jesus e Fabbrini Mirabete? Como entender a queda e abjuração de Nélson Hungria?
4.2. Realidade histórica
Retornemos à realidade histórica. Imagine-se um enorme painel eletrônico a reproduzir com fidelidade os dispositivos legais e constitucionais. Quem é que aciona os botões? O operador jurídico, eis a resposta condizente com uma terminologia da atualidade. Entretanto, não é difícil notar que a excelência das academias de direito ou do currículo dos profissionais habilitados não conduz a uma padronização de condutas. Há, no fundo, com absoluta prioridade, uma condição prévia que dinamita qualquer pretensão de uniformidade interpretativa: a condição humana dos profissionais do direito.
A natureza prega uma peça vinte e quatro horas por dia, no mundo inteiro, em todos os cultores e aprendizes da sabedoria jurídica. Só os que têm fé, muita fé, crêem que no Brasil é tudo uma questão de tempo, basta aguardar e assimilar o "avanço" das últimas lições dogmáticas. E como a fé remove montanhas, é preciso também acreditar que, nos crimes dolosos contra a vida, sujeitos em tese ao tribunal do júri, os membros do conselho de sentença haveriam de apreender, na ponta da língua, a situação topográfica do dolo e da culpa; a diferença ontológica entre erro de tipo e de proibição; o conteúdo ético das descriminantes (legítima defesa, estado de necessidade, etc.); e uma série de outras questões técnico-jurídicas ainda não resolvidas satisfatoriamente.
Não estou a desmerecer a enorme importância das fontes doutrinárias e normativas dos grandes centros de irradiação da cultura, da ciência e da filosofia, desde a Grécia pré-Socrática. Estou apenas lembrando que "a moderna dogmática penal, ora centrada em falsas premissas ontológicas, ora apegada ao ilusório positivismo da lei, já se esgotou há muito como instrumental teórico-metodológico de retransmissão acadêmica. Quer dizer, já prestou serviço, já cumpriu seu papel histórico, já mostrou circunstancialmente sua utilidade prática. Mas está morta, em substância, pouco importando que suas crenças, autofágicas e contraditórias, continuem a ilustrar as melhores obras de nossos melhores penalistas" ("Revisão crítica do direito penal", Seqüência –Estudos Jurídicos e Políticos, nº 23, Florianópolis, 1991, p. 61).
Onde foi publicado o texto acima referido? Na Universidade Federal de Santa Catarina, que não necessita de um certo adjetivo – Universidade Federal "Livre" de Santa Catarina – para permitir efetivamente a livre manifestação do pensamento. A morte das mulheres, por "bruxaria", teve a precedência histórica do culto continente europeu. E foi lá, na Europa civilizada, que teve origem a mais "científica" das teorias antropológicas: a superioridade da raça ariana.
O que se lê, por sinal, na mesma Revista Seqüência? De Aurélio Wander Bastos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que "este é o novo sentido da pesquisa jurídica: a gênese da verdade jurídica é a sistematização da realidade e, muitas vezes, ela independe da expectativa de verdade do próprio pesquisador" ("Pesquisa Jurídica no Brasil: Diagnóstico e Perspectivas", Revista cit., p. 21).
Simplicidade, muita simplicidade. Tudo o mais virá por acréscimo. Direito é fato humano, é fato histórico-sociológico, é algo que se faz, que se constrói, a partir e no contexto de várias fontes e circunstâncias. Os discursos dogmáticos, por mais profundos e onipotentes, encobrem ou podem encobrir mera vontade ideológica, o exercício camuflado de um poder que se almeja de caráter objetivo, derivado da "natureza das coisas".
Há, sim, "natureza das coisas", mas ela se localiza em matrizes diversificadas: na objetividade de uma lei escrita, na personalidade do intérprete, no conteúdo das idéias e valores assimilados e difundidos pelo grupo social. Trata-se de uma visão esquemática. É preciso a consciência de sua dinamicidade, de sua interação dialética, a determinar um desfecho previamente comandado por quem, nas circunstâncias, dispõe de maior liberdade de ação (força) para impor a sua vontade (poder).
Força, poder, vontade e liberdade são as categorias básicas do direito. Mesmo assim, raramente aparecem nos compêndios e manuais de direito penal. No Brasil se dá preferência ao estudo da estrutura ontológica do crime (que revela, pelo contraste, a fase rudimentar ou pré-científica de um Aníbal Bruno, Basileu Garcia, Nélson Hungria e Magalhães Noronha, entre outros); ao exame do concurso aparente de normas, como se o conflito não existisse concretamente, por falha do sistema; à importação, com outros nomes, de "novidades" conhecidas e praticadas em Roma, na Idade Média, na Idade Moderna, na Idade Contemporânea, desde que houvesse disposição para tanto (princípio da insignificância, princípio da adequação social, ficções interpretativas, natureza das coisas, razão universal, direito natural etc.); em suma, ao estudo da "essência" do crime e da pena, automaticamente reconhecida e autenticada como boa, firme e valiosa na medida e proporção das dificuldades intrínsecas de apreensão de seu misterioso conteúdo.
Resta saber como essa "essência" se manifesta nas várias espécies do crime de aborto.