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Crimes contra a vida.

A mágica do intérprete

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16/05/2008 às 00:00
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Seleciono alguns tópicos de divergências doutrinárias no âmbito dos crimes contra a vida com a finalidade específica de sublinhar a importância do intérprete no processo histórico de construção e sedimentação do direito penal.

Sumário: 1. Introdução. 2. Homicídio culposo qualificado (regra técnica) 2.1. Notícia de uma divergência 2.2. Pequena observação crítica 3. Participação em suicídio: por omissão? 3.1. Sim e não, evidentemente 3.2. Explicações cabíveis 4. Infanticídio 4.1. Divergências de praxe 4.2. Realidade histórica 5. Delito de aborto 5.1. Lei, intérprete, valorações sociais 5.2. Dogmática jurídico-penal 6. Denominador comum: a mágica do intérprete


1. Introdução

Seleciono alguns tópicos de divergências doutrinárias no âmbito dos crimes contra a vida com a finalidade específica de sublinhar a importância do intérprete no processo histórico de construção e sedimentação do direito penal. Já tratei do assunto, de modo semelhante, em recente artigo com o título "Homicídio doloso: o jogo das premissas". O tema é igualmente abordado em Curso crítico de direito penal, 2ª edição, Florianópolis: Conceito Editorial, 2008.

Volto agora minha atenção para uma hipótese específica de homicídio culposo qualificado (inobservância de regra técnica) e para conhecidas controvérsias em torno dos crimes de participação em suicídio, infanticídio e aborto.

Inevitável, nas entrelinhas, a presença de uma vontade interpretativa pouco explorada nos livros didáticos. Força, poder, vontade e liberdade são as categorias básicas do direito e, pois, do direito penal. O operador jurídico, seja nas lides forenses ou administrativas, seja como jurisconsulto ou professor, tem muito a dizer, com sua mágica, acerca da matéria. E o que ele diz carece igualmente de interpretação, à luz de uma visão crítico-metodológica do direito penal.


2. Homicídio culposo qualificado (regra técnica)

No homicídio culposo – dentre outros motivos ou circunstâncias – "a pena é aumentada de um terço, se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício" (CP, art. 121, § 4º ). Razão principal do dispositivo: o legislador de 1940 já se preocupava com o aumento da criminalidade no trânsito. A Exposição de Motivos chegou inclusive a lembrar a questão da velocidade como um exemplo de "generalizado descaso pelas cautelas técnicas" (n° 39).

2.1. Notícia de uma divergência

De início, nenhum problema de vulto na doutrina. A clareza do texto dispensava malabarismos exegéticos. A regra valia para todos. Não se fazia distinção entre profissionais e amadores; entre motoristas de táxi, de ônibus, empregados de empresas privadas ou de repartições públicas, por exemplo, e os demais motoristas, que formam no trânsito de veículos a imensa e colossal maioria. De todos se exigia, no entanto, a consciência de infringir por menoscabo ou displicência a regra técnica, não bastando por isso a simples imperícia.

De repente, a grande novidade: motorista amador não pode responder pelo acréscimo de pena. É verdade que o Brasil já fabricava seus automóveis e as mortes e mutilações aumentavam em proporções geométricas. Paralelamente, porém, entrava em descrédito absoluto a pena privativa de liberdade. Alguma coisa haveria que mudar. Mudou então – em parte – o direito penal, sem embargo da permanência do mesmo texto de lei.

Qual a técnica utilizada? Várias. Primeiro, a técnica do descuido, do esquecimento. A palavra arte, expressamente utilizada pelo legislador, desapareceu sob a sombra do ofício, ou da profissão. Dirigir veículos até que pode significar o desempenho de uma certa arte, mas o que importa mesmo é a ratio legis, a razão da lei, preocupada com a maior censurabilidade da conduta. Essa maior censurabilidade só poderia subsistir em se tratando de motorista profissional. De um amador sempre se perdoa alguma coisa. Não tendo ele a mesma responsabilidade de um profissional, incide na figura básica do homicídio culposo simples, uma vez que o núcleo da culpa corresponde exatamente à inobservância de regra técnica. Quem dirige com excesso de velocidade está deixando de observar regra técnica de trânsito. O acréscimo de pena constitui, portanto, um absurdo normativo, um bis in idem incompatível com o Estado Democrático de Direito.

2.2. Pequena observação crítica

Das duas, uma: ou o legislador sabe legislar e, portanto, o "espírito" da lei subitamente descoberto já torna justificada a nova interpretação; ou o legislador, às vezes, comete impropriedades, fere a razão, o bom senso, os princípios gerais de direito, oportunidade em que deve eclipsar-se (quer dizer, o texto). Em qualquer caso, prevalência de uma espécie de direito natural, ora coincidente com as instruções legislativas, ora superior às próprias constituições históricas.

Pois bem. Se o núcleo da culpa reside na própria inobservância de regra técnica então não faz sentido reservar a forma qualificada para o motorista profissional. Também ele é filho de Deus, também ele merece a proteção inerente ao princípio ne bis in idem. Se a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir.

Júlio Fabbrini Mirabete, aliás, não concorda com a novidade: "Por outro lado, a afirmação de que a qualificadora ''somente se aplica aos motoristas profissionais'' não deve ser acatada, uma vez que o artigo se refere não só à profissão, mas também à arte, abrangendo, pois, o motorista amador"(Manual de direito penal, v. 2, 1995, p. 79).

A lei vale para todos, principalmente quando seu espírito se revela através da clareza do texto, da pesquisa histórica (Exposição de Motivos) e da razoabilidade dos motivos que a inspiraram, ou seja, a defesa da vítima, defesa que se mostra inversamente proporcional à maior impetuosidade dos infratores. Inexiste injustiça no aumento de pena. Ao menos em tese, há que se manter um equilíbrio entre o mal do crime e a resposta punitiva.

Para os objetivos deste artigo, que não reexamina o assunto à luz do CTB, é suficiente que se perceba a inevitável interferência do intérprete no processo histórico de construção ou "descoberta" do direito. Núcleo da culpa, bis in idem, responsabilidade profissional e outros itens semelhantes nada mais constituem do que artefatos retóricos inteligentemente confeccionados por aqueles que, na dogmática jurídica, ou na vida forense, preferem permanecer no anonimato.

Não é difícil notar, entretanto, desde a raiz, o engajamento ideológico dos intérpretes na solução que apresentam. Eles são fonte e, não, descobridores do direito. De um direito, por isso mesmo, essencialmente contraditório. Contradição, de um lado, formal (lei é lei, intérprete é intérprete) e contradição, de outro lado, material, de conteúdo, por força das diferenças de personalidade e divergências no seio do grupo. A contradição formal é inevitável, mas a última (contradição material) pode não ocorrer: nada impede que lei e intérprete se harmonizem na indicação de um só caminho normativo, o que ocorre com mais facilidade na hipótese de flagrante ou suposta receptividade social.

O curioso é que a contradição material se passa, às vezes, com o mesmo dogmata ou jurisconsulto. Ele sabe disso, tanto que se esforça em demonstrar a melhor qualidade da nova tese esposada. Coincidentemente, uma tese mágica, transformadora, quando colocada nas mãos de qualquer operador jurídico.

"Mudaria o Natal ou mudei eu?", já indagava, em conhecido soneto, o nosso Machado de Assis. Mudariam as duas coisas, muito provavelmente. Pelo menos no campo do direito. Um direito que assimila, inclusive, a surpreendente notícia de que "violação de regra técnica é a não aplicação de normas reveladoras de habilidade manual, pelo que não se confunde com regra de trânsito, que é norma de conduta." (TACRIM -SP - AC - Rel. Chiaradia Netto - JUTACRIM XIV/228, In: Código penal e sua interpretação jurisprudencial, de Alberto Silva Franco e outros, 5ª ed., São Paulo, RT, 1995, p. 1614).

Quer dizer, a Exposição de Motivos do Código Penal, que exemplifica exatamente com o excesso de velocidade na condução de automóveis, teria perdido a sua confiabilidade como fonte de pesquisa da verdadeira intenção do legislador, pois confunde "regra de trânsito, que é norma de conduta" com "normas reveladoras de habilidade manual". Mágica interpretativa: quem, habilidosamente, se mantém firme na direção do veículo, sem perder-se na pista, pode acelerar à vontade. Se matar uma criança, na saída de uma escola, pratica homicídio culposo simples. O homicídio culposo qualificado se reservaria, de preferência, para os imperitos, para aqueles que, num momento de rara infelicidade, por nervosismo, pista molhada, imprudência ou descuido da própria vítima, ofuscação solar etc. não conseguem segurar o volante com a maestria de um desbravador de estradas.


3. Participação em suicídio: por omissão?

No foro criminal isso não acontece, ou pode acontecer mui raramente, alguém ser chamado às barras da Justiça por ter concorrido, por omissão, para o suicídio de outrem. Nos livros de doutrina, todavia, não dá para escapar da pergunta: existe, na lei, a figura delituosa da participação omissiva em suicídio?

3.1. Sim e não, evidentemente.

Até hoje os penalistas não se entendem. Segundo Aníbal Bruno, que escreve sob a vigência da antiga Parte Geral do Código, a resposta é positiva, em termos de auxílio, desde que preexista "relação de direito que crie a obrigação de custódia e assistência em face do suicida"(Direito penal, v. 4, 1966, p. 137). Dentre vários exemplos, destaco o seguinte: "Se o jovem, com intenção suicida, entra no quarto e abre a torneira de gás, o pai que chega em seguida tem o dever jurídico de impedir a morte e responde, em caso de omissão, por participação em suicídio" (p.138). Era essa também a opinião de Nélson Hungria (Comentários ao código penal, v. 5, 1958, p. 232/233), Magalhães Noronha (Direito penal, v. 2, 1986, p. 33/34) e Olavo Oliveira (O delito de matar, 1959, p. 241).

Em todos esses casos tem que existir dolo, não bastando a simples culpa, ainda que de natureza grave.

A tese da corrente oposta pode resumir-se no seguinte: o texto do art.122 exige condutas (que não se confundem com o resultado) tipicamente comissivas. É impossível, por simples inércia, induzir, instigar ou prestar auxílio à prática do suicídio. O apelo à "posição de garante" (carcereiro em relação ao preso, enfermeiro em face do doente etc.) se encontra então deslocado. O que importa, na expressão de Euclides Custódio da Silveira, é "indagar se esse comportamento omissivo ou negativo pode ser compreendido dentro dos termos expressos da descrição legal" (Crimes contra a pessoa, 1973, nota n. 160, p. 82/83). A resposta é negativa, o que significa dizer que o sistema do Código repele o auxílio sob a forma de omissão.

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No mesmo sentido, pelo menos quanto à conclusão de impedimento: Bento de Faria, Código penal brasileiro, v. 4, 1961, p. 35; Heleno Cláudio Fragoso, Lições de direito penal: parte especial, v. 1, 1983, p. 101/102; José Frederico Marques, Tratado de direito penal, v. 4, 1961, p. 130; João Mestieri, Curso de direito penal: parte especial, 1970, p. 145. Esclarece, porém, este último: "A lei brasileira fala em prestar auxílio, exigindo inquestionavelmente uma conduta positiva. Poder-se-á, talvez, reconhecer funcionalidade ao atuar omissivo na hipótese de induzimento, a nosso ver o único meio executivo a comportar a modalidade omissiva, em determinados casos" (ibidem).

A vigência de uma nova Parte Geral (Lei n. 7.209, de 11 de julho de 1984) não arrefeceu as divergências. Álvaro Mayrink da Costa (Direito penal, v.2, 1986, p. 92); Paulo José da Costa Júnior (Comentários ao código penal, v.2, 1988, p.23); Júlio Fabbrini Mirabete (Manual de direito penal, v.2, 1995, p. 84/85); James Tubenchlak (Tribunal do júri: contradições e soluções, 1990, p. 26); Cezar Roberto Bitencourt (Manual de direito penal: parte especial, v. 2, 2001, p. 123); Ney Moura Teles (Direito penal: parte especial, v. 2, 2004, p. 160); Adalberto Camargo Aranha Filho (Direito penal. Crimes contra a pessoa, 2005, p. 42) e Rogério Sanches Cunha (Direito penal. Parte especial. Dos crimes contra a pessoa, 2006, p. 40) aceitam a modalidade omissiva (ora se fala em auxílio, ora se fala em instigação ou induzimento).

Outros, no entanto, assumem a tese de sua impossibilidade jurídica. Alguns nomes: Damásio Evangelista de Jesus (Direito penal, v.2, São Paulo, 1991, p. 84/85; Código penal anotado, 2006, p. 425), Celso Delmanto (Código penal comentado, 1988, p. 237) e Antônio José Feu Rosa (Direito penal: parte especial, 1995). Este último chega a citar expressamente "o caso, por exemplo, do carcereiro ou delegado que deixa o preso morrer de fome e não adota providências para socorrê-lo – ou permite que o mesmo se suicide" (p. 117). Não haveria participação em suicídio, e sim, omissão de socorro qualificada pela morte da vítima.

No extremo oposto, mas também discordando da outra corrente doutrinária, se situa Fernando Capez, que acena para o crime de homicídio se o omitente, na forma do art. 13, § 2º, do CP, "tiver o dever jurídico de agir" (Curso de direito penal, v. 2, 2007, p. 90).

Como entender as divergências?

3.2. Explicações cabíveis

A eterna tentação – se possível, com telescópios "made in Germany" – de procurar nas estrelas os postulados normativos que, em verdade, se encontram na face da Terra, desviou e vem desviando a atenção de eminentes penalistas brasileiros em torno de elementares princípios de hermenêutica legislativa. No contexto histórico do Código Penal de 1940 seria este que deveria fornecer as respostas, mas em vão. As respostas da dogmática jurídica sempre comportaram e comportam digressões de ordem pessoal, ideológica.

O revogado art.11 do Estatuto Repressivo e o atual art. 13, referentes à causalidade física ou material de todo e qualquer delito, omissivo ou comissivo, jamais foram encarados como fonte exclusiva do direito penal. Tiveram e têm que passar, como sempre, pelo crivo do intérprete, que pode retocá-los ou eventualmente não lhes dar a atenção merecida.

Não se trata de uma desatenção inocente, pura, imaculada. Em regra, existe contaminação prévia. Todo intérprete já constitui por si mesmo um sistema "programado". É com suas idéias, com seus valores, com sua inteligência que se apresenta para dizer o que outrem (o legislador) teria dito. Liberdade de ação e sentimento de um dever a cumprir aumentam sua chance de substituir-se ao próprio poder legislativo, ou melhor, a suas instruções, objeto de paciente exegese.

No direito que se elabora historicamente, o "dono" do sistema é o legislador formal ou quem, de fato, por ele se faz passar, no quadro e na seqüência de uma constituição política igualmente histórica, de cunho autoritário ou democrático. Todo o Código Penal de 1940 se encontrava, em tese, em vigor, desde o art. 1º até o art. 361. E o cerne do art. 11 estava ali, claro, límpido, cristalino.

Eis a chave do segredo: "ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido" (art. 11, caput, da velha Parte Geral; atual art. 13, caput – com o detalhe do § 2º). Não se cuidava tão somente da causalidade omissiva. A equivalência era matemática, ação e omissão estavam equiparadas no plano normativo. Plano normativo de quem? Do legislador, que ainda esclarecia, com humildade pedagógica: "Considera-se causa".

A causalidade é normativa, explica-se hoje nos compêndios. O que interessa, portanto, é verificar se o legislador tocou no assunto. E ele o fez, no Brasil, no que concerne à omissão, no art. 13, § 2º. Lê-se na Exposição de Motivos da nova Parte Geral: "No art. 13, § 2º, cuida o Projeto dos destinatários, em concreto, das normas preceptivas, subordinados à prévia existência de um dever de agir. Ao introduzir o conceito de omissão relevante, e ao extremar, no texto da lei, as hipóteses em que estará presente o dever de agir, estabelece-se a clara identificação dos sujeitos a que se destinam as normas preceptivas"(item 13).

Mas nem todos acatam, por exemplo, a figura do homicídio por omissão se esta não traz a marca, junto ao sujeito, de um específico dever jurídico de agir. Um dever jurídico relacionado exclusivamente com normas extra-penais, inconfundível portanto com a norma genérica de ação a que se refere o art. 135 do Código Penal em vigor (delito de omissão de socorro).

E a coerência? Quando se poderia imaginar que a lição estava aprendida, que ela iria valer para o delito seguinte, o de participação dolosa em suicídio (art. 122), surge uma novidade: impossível! O delito em pauta, verifica-se pelo seu texto, não combina com qualquer espécie de conduta omissiva.

Assim, todo o inflamado discurso ao mesmo tempo explicativo e justificativo do sistema (art. 13, § 2º) cede espaço a uma nova distinção acadêmica, em benefício dos possíveis acusados. O máximo que se aceita é que os pais em relação aos filhos adolescentes e os carcereiros em face dos presos, dentre outras hipóteses, cometam o suave delito de omissão de socorro, cujo dispositivo (art. 135) acabou se transformando no maior escoadouro de sobras e rebotalhos hermenêuticos do final do século 20 e início do século 21. O mais modesto e despretensioso delito do Capítulo III dos Crimes contra a Pessoa – no Projeto Sá Pereira (art. 418) constava inclusive como contravenção – constitui agora o "coringa" do sistema, ou pelo menos o mais dócil de todos. Nas mãos dos intérpretes ganha formas inimagináveis, para espanto daqueles que, mui ingenuamente, desavisados desses detritos, o tinham como um crime de perigo, nada mais do que de perigo.

Não custa perguntar: se existe o prévio – e específico – dever jurídico de socorrer o filho de 14 anos de idade que tenta o suicídio; se nada se faz porque se quer, dolosamente, o evento morte (por piedade ou por motivos menos nobres), não se está cometendo o crime de homicídio por omissão? Não, evidentemente, diriam os doutos (nem todos), porquanto a hipótese, em tese, é de participação em suicídio. Mas logo acrescentam que também não se pode enquadrá-la no artigo 122 porque este exige uma conduta positiva, militante. E sentenciam, com impressionante serenidade dogmática: que se procure o refúgio do art. 135, em sua forma qualificada.

É verdade que os livros se referem comumente ao caráter preterdoloso da morte preconizada no citado art. 135, parágrafo único (dolo de perigo e culpa quanto à morte). Ora, para que servem os regimes de engorda? Basta decretar, na novel "interpretação", que somente agora se percebeu o que estava "oculto" no texto, finalmente revigorado!

Além disso, não consta que matar (arts. 121 e 123) e provocar aborto (arts. 125 e 126) admitam, em sua intrínseca natureza, uma causalidade física tipicamente omissiva. Na lição de João Alfredo Medeiros Vieira, "a verdade ontológica exprime o ser das coisas, enquanto ele responde exatamente ao nome que se lhe dá, enquanto é conforme à idéia de que precede. As coisas, de fato, são verdadeiras enquanto são conformes às idéias segundo as quais foram feitas. É tarefa da nossa inteligência conhecer esta verdade, ou seja, conhecer as coisas tais quais são" (Filosofia: a verdade como busca da natureza humana, 1992, p. 41/42).

Ontologicamente falando, não se mata alguém nem se provoca aborto em outrem a não ser por uma conduta militante, por um proceder ativo, por um fazer alguma coisa (ação). Ainda assim, nem sempre quem nega a participação em suicídio por omissão mantém a coerência discursiva quando examina aquelas outras figuras delituosas (homicídio e aborto). Desta feita, acata-se amplamente a forma omissiva. E como? Voltando-se à evidência do caráter histórico-normativo de uma causalidade meramente legal, discricionária. Causalidade que se descarta, no entanto, em relação ao art. 122!

Quem quiser que entenda: a "Babel hermenêutica" não decorre necessariamente da linguagem natural de nossos textos normativos. Ela tem suas raízes na impetuosidade do próprio penalista, cuja vontade vale mais do que a vontade da lei, mormente quando esta, nas circunstâncias, já se encontra cercada, sitiada, e não tem condições de resistir. Rei morto, rei posto. Parodiando e adaptando von Kirchmann, em nome da clareza: três palavras retificadoras do intérprete mandam para o lixo trezentos artigos de lei.

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Sobre o autor
João José Caldeira Bastos

professor de Direito Penal da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, professor de Direito Penal (aposentado) da Universidade Federal de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BASTOS, João José Caldeira. Crimes contra a vida.: A mágica do intérprete. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1780, 16 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11274. Acesso em: 2 nov. 2024.

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