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Sentença: a fundamentação como garantia contra decisões arbitrárias

Agenda 27/05/2008 às 00:00

1 Sentença, decisão e fundamentação

A sentença, segundo a nova redação do §1º do artigo 162 do diploma processual civil brasileiro, é o ato jurisdicional que implica em alguma das situações previstas nos artigos 267 e 269 do CPC, ou seja, extingue o processo com ou sem resolução de mérito. Na finalização da atividade jurisdicional temos como produto uma decisão, construída pelo magistrado (aquele que detém o poder discricionário) e uma fundamentação, que consistiria na argumentação lógica que explicita a decisão; dois elementos constituintes do ato de decidir. Quando falamos em poder discricionário, estamos falando de um elemento da decisão; isto é, a lei dá ao magistrado mais de uma opção de como decidir a lide, cabendo ao juiz interpretá-la com base no caso concreto e escolher uma entre as hipóteses contidas na lei para solucionar o problema jurídico. Para não se incorrer em arbitrariedade, o operador do direito deve fundamentar devidamente suas opções e rejeições. Aqui devemos fazer a diferenciação entre decisão e fundamentação, tendo em mente que ambas fazem (devem fazer) parte de um ato jurisdicional que deve ser discricionário e não arbitrário. [01]

A decisão é construída ao longo do processo, sendo o ato que resolve a lide. É obtida através de um procedimento de descobrimento e de formulação do juízo, elaborada através de critérios lógicos, jurídicos, cognoscitivo e valorativo, que visam analisar as circunstâncias do caso concreto com base em toda a prova produzida pelas partes no desenrolar da ação. [02]

A fundamentação, por sua vez, está vinculada a decisão [03], mas não corresponde à explicitação desta. Trata-se da justificação da decisão através de argumentações lógicas idôneas, [04] explicando claramente porque o magistrado optou por aquela decisão em detrimento à outra (que, face o princípio do contraditório, também deve ter a sua rejeição fundamentada). [05]

O ato jurisdicional arbitrário é o oposto da decisão. O Poder Judiciário é concebido para ser um poder discricionário, sendo a arbitrariedade um ato jurisdicional anômalo, irregular, insustentável [06]. O julgamento será arbitrário quando for carente de fundamentação para justificar-se, ou seja, quando as decisões forem "desprovistas de todo apoyo legal y fundadas tan sólo em la voluntad de los jueces que la suscriben". [07]

A decisão é parte integrante da sentença, sendo fruto do exame das circunstâncias daquele problema jurídico. O procedimento lógico que leva o operador do direito a chegar a uma decisão não é idêntico ao caminho que leva o juiz à fundamentação de sua decisão. Uma coisa é a conclusão (decisão) e outra é a argumentação que a justifica (fundamentação). Nas palavras de TARUFFO:

"Ante todo, se necessario tener en cuenta la fundamental distinción entre <<contexto de descubrimiento>> (o <<de decisión>>), y <<contexto de justificación>> (o <<de control>>). Ésta ha sido elaborada a nivel de espistemología general y, en particular, al razionamento judicial es, desde hace buen tiempo, un lugar común. Ella supone una radical diversidad desde el punto de vista de los instrumentos lógicos, entre el procedimiento con el cual, tomada una decisión, ésta viene racionalmente justificada. El primer procedimiento es eurístico (= decisorio), mientras el segundo es argumentativo y <<presupone>> la decisión. El primer procedimiento implica la formulación de elecciones (cognoscitivas, interpretativas, valorativas); el segundo busca demonstrar que las elecciones realizadas son racionamente aceptables." [08]

Para que a decisão não se configure em uma arbitrariedade, na sentença proferida devem constar os fundamentos que levaram o juiz a escolher aquela opção (dentre as opções contidas na lei), bem como os fundamentos que levaram o juiz a rejeitar outro tipo de alternativa. [09] A fundamentação se configura como meio de controle da atuação do juiz em seu poder discricionário. O juiz não pode ser considerado apenas aquele que revela o sentido da norma (em um posicionamento que entende que a lei manifesta a "vontade do legislador", tendo a norma sentido unívoco), mas deve sim, utilizando-se da hermenêutica, interpretar a lei tendo em vista o caso concreto. Não basta, para fundamentar a decisão, o simples apoio de leis e teorias doutrinárias, uma vez que o problema jurídico sempre será novo – poder-se-á ter saberes jurídicos prévios que orientem e até apontem para decisões anteriores que sejam semelhantes (em casos similares), contudo, sempre deve ser verificado o caso concreto. [10]

A análise do caso sub judice¸ em suas particularidades, explica-se uma vez que o caso jurídico concreto é um concreto problema jurídico, sendo que problema jurídico é uma pergunta que se relaciona com o direito, nos passos dos ensinamentos de CASTANHEIRA NEVES. Divide-se em questão de fato, que consiste em comprovar a juridicidade daquele questionamento e questão de direito, que pode ser abstrata ou concreta, sendo que a questão de direito abstrata é a orientação que irá concorrer para a fundamentação do caso firmado (não podendo ser totalmente alheia ao sentido de solução que o caso solicita) e a questão de direito concreta o juízo concreto que irá decidir o caso em questão. [11] Chega-se, então, a conclusão que todas as decisões na atividade jurisdicional do Poder Judiciário devem ser obtidas através da análise das circunstâncias que integram o caso jurídico, que irá informar os elementos para a decisão e para a fundamentação da lide em exame.

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2 A fundamentação das decisões como garantia

A necessidade de fundamentação das decisões decorre da possibilidade do juiz, ante a discricionariedade peculiar a sua função, incorrer em arbitrariedades. A fundamentação acaba por ser o meio que permite à sociedade fiscalizar a atuação do magistrado, uma vez que tem a sua disposição os fundamentos lógicos que explicam a escolha tomada no ato de decidir. Por isso, a presença da fundamentação no ato jurisdicional que encerra o processo é essencial. [12]

A necessidade de fundamentação é exigida pela Constituição Federal em seu artigo 93, IX, que traz:

"Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

(...)

IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;"

Já a Lei n.º 5.869/73, o Código de Processo Civil, em seu artigo 131, regula que:

"Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento."

O artigo constitucional traz que a fundamentação é requisito essencial da atuação dos órgãos que integram o Poder Judiciário, sob pena de nulidade. Por sua vez, o Código de Processo Civil determina os motivos do convencimento do juiz, no caso concreto, deverão estar explicitados na sentença.

A discricionariedade que caracteriza o Poder Judiciário implica na escolha de um dos sentidos encontrados na lei – que traz em sua redação mais de uma norma jurídica possível de aplicação no caso concreto – pelo magistrado. Este, deparando-se com o problema jurídico, deve socorrer-se das provas produzidas pelas partes litigantes para formar seu convencimento, prolatando a decisão que porá fim ao processo.

Para caracterizar o que vem a ser a discricionariedade falamos em opções contidas no texto legal. Neste ponto, estamos levando em conta um conceito de lei que se afasta do ideário iluminista. No conceito iluminista de lei, esta contém a "vontade do legislador", portanto, a norma comporta apenas um único sentido; assim, acaba por entender a jurisdição como uma atividade mecânica de mera subsunção. Dessa forma, não é necessária, por parte do operador do direito, a realização de um juízo de valor sobre a norma ou sobre o caso concreto, tendo a motivação da decisão caráter técnico-jurídico (legalista, oficial e impessoal). OVÍDIO BAPTISTA citando SALAVERRÍA, assim se pronuncia sobre o tema:

"Na verdade, nossos magistrados, segundo o sistema, não "decidem", apenas "julgam", porquanto toda decisão pressupõe "discrição", escolha entre duas ou mais alternativas aceitas pela norma. O magistrado concebido pelo sistema apenas "declara", esclarece a "vontade da lei". Como ele próprio é pensado como não tendo "vontade", fica eliminado o poder decisório: "Manifiesta así una imagen de la jurisdición como actividad sustancialmente mecánica y aséptica de la que el modelo silogista es una evidente epifanía. Se da por sentado que existe una única decisión veradera y justa, de manera que automáticamente quedan desacreditadas las demás. Este plantamiento prevalente lleva anejo un tipo de motivación que se parapeta en una lógica fuerte (la que acentúa los elementos conceptualistas y técnico-jurídico y disimula los elementos que comprometen juicios de valor). Pero además aséptica, la motivación resultante es legalista; encima oficial y impersonal y - para colmo - burocrática (Taruffo). Es ''legalista'' a doble título: por un lado, debido al empleo redundante del lenguage técnico-jurídico y la abundancia de jerga jurídica; por otro, porque prevalece el tratamiento de las cuestiones de derecho, como campo abonado para elegancias conceptuales a menudo superfluas, en detrimento de las cuestiones de hecho (y en éstas se resaltan más los aspectos atinentes a la disciplina legal de la prueba que los referentes a la empiria). La motivación es, a mayor abundancia, ''oficial'' e ''impersonal'' porque se presenta como un discurso no atribuible a un autor especifico sino a un órgano (sobre todo se es colegiado) (...) La impronta ''burocratica'' de la motivación proviene de que el juez no representa a la sociedad y el criterio por el que ha sido selecionado estriba en su capacidad técnica para desempeñar ciertos cometidos limitados y determinados; por eso el juez-funcionario no elige ni crea; pone en acto reglas y directivas de un modo impersonal y uniforme, según procedimientos repetitivos y estandarizados)" [13]

Adotar-se-á o conceito adotado por OVÍDIO BAPTISTA, que entende ser a lei contemporânea uma expressão para os conflitos humanos, sendo um ponto de partida de dúvidas e incertezas, ante as características que nossa sociedade complexa e conflituosa demonstra – explicada, em parte, pelo ideal de tolerância que está presente do sentido de democracia [14]. Assim, a lei criada pelo Legislativo tem proposital caráter ambíguo, para dar margem à interpretação por parte do Judiciário e concretizar a função criadora da aplicação da lei. [15]

Esta mudança na idéia dos sentidos contidos na lei, parte da idéia que lei e norma são coisas distintas e o direito não pode ser visto como uma ciência exata, com definições precisas e imutáveis. Tampouco o ato de decidir. O direito em sua amplitude, tanto material como formal, é um produto cultural comprometido com os valores políticos e sociais; que busca a convivência harmônica e solidária entre os homens, inspirando-se na justiça. [16]

Deve-se abandonar o dogmatismo, com seus conceitos fixos, e retornar à hermenêutica, de interpretação e compreensão do texto; e é aí que o papel da fundamentação se revela uma necessidade. Sabendo que o texto legal pode comportar mais de um sentido, a mera afirmação, por parte do magistrado, que a ação é decidida pela aplicação de determinado artigo legal segundo a "vontade da lei" não apresenta os fundamentos da decisão. Neste caso o juiz estará livremente escolhendo o sentido que lhe pareceu adequado para aquele caso. [17] A fundamentação é a exteriorização dos argumentos lógicos que explicam a opção por um dos sentidos da norma [18] e também a rejeição por outros. Afinal, a lide se caracteriza pela contingência e o magistrado ao decidir escolhe um dos sentidos do texto legal. Dessa forma, teremos uma parte "vencedora" e outra sucumbente. Em observância ao princípio do contraditório a fundamentação deve conter tanto os argumentos que levaram o juiz a escolher um dos sentidos da norma, quanto as motivações que afastaram a aplicação do sentido sucumbente. [19]

A fundamentação serve, portanto, como controle de arbitrariedade nas sentenças uma vez que apresenta o caminho lógico que levou o magistrado a decidir. [20] Este controle é permitido, desta forma, às partes do processo judicial, que acompanham atentamente o iter processual.


Notas

01"As ‘certezas’, que não existem nem mesmo nas ciências naturais, não são – nunca foram – critérios ou objetivos próprios do Direito. A justiça, para desgosto de nossos teóricos não poderá ser normatizada. Haverá de ser descoberta laboriosamente em cada caso concreto, observados, porém, determinados critérios capazes de impedir que a natural discricionariedade do ato jurisdicional se transforme em arbitrariedade" DA SILVA, Ovídio A. Baptista. Fundamentação das sentenças como garantia constitucional. Disponível em: http://www.baptistadasilva.com.br/artigos010.htm. Acessado em: 16 de agosto de 2007, 14:21:31. No prelo para publicação. p. 3.

02 TARUFFO, Michele. El vértice ambíguo – Ensayos sobre la casación civil. Lima: Palestra, 2005. p. 196.

03 NEVES, A. Castanheira. Metodologia jurídica – problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra, 1993. p. 165.

04 TARUFFO, Michele. El vértice ambíguo – Ensayos sobre la casación civil. p.197.

05 DA SILVA, Ovídio A. Baptista. Fundamentação das sentenças como garantia constitucional. p. 14.

06 Não se pode confundir discricionariedade dos atos decisórios judiciais com arbitrariedade. Trata-se de duas faces de uma mesma moeda, uma o opondo-se à outra.

07 CARRIÓ, Genaro R. e CARRIÓ, Alejandro D. El recurso extraordinário por sentencia arbitraria. 3ª Ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1999. p. 25.

08 TARUFFO, Michele. El vértice ambíguo – Ensayos sobre la casación civil. p. 193.

09 DA SILVA, Ovídio A. Baptista. Fundamentação das sentenças como garantia constitucional. p. 11.

10 NEVES, A. Castanheira. Metodologia jurídica – problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra, 1993. p. 162

11 NEVES, A. Castanheira. Metodologia jurídica – problemas fundamentais. p. 165

12 OVÍDIO BAPTISTA defende que a ausência da fundamentação de uma decisão é caso de cabimento de recurso extraordinário, como ocorre na Argentina. Ver mais em DA SILVA, Ovídio A. Baptista. "’Questão de fato’ em recurso extraordinário". Disponível em: http://www.baptistadasilva.com.br/artigos010.htm. Acessado em: 16 de agosto de 2007, 14:21:31.

13 DA SILVA, Ovídio A. Baptista. Fundamentação das sentenças como garantia constitucional. p. 9. Cita SALAVERRÍA, Juan Igartua. La motivación de las sentencia, imperativo constitucional. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2003. p. 101-102.

14 DA SILVA, Ovídio A. Baptista. Fundamentação das sentenças como garantia constitucional. p. 5

15 "Se o texto deve ser "compreendido" pelo intérprete, sabendo-se que ele pode conter, na imensa maioria dos casos concretos, duas ou mais soluções possíveis e legítimas, a conseqüência será o reconhecimento de que a jurisdição jamais será apenas declaratória da única "vontade do legislador"; ou da "única" vontade contida na lei. A abertura do texto, permitindo que, hermeneuticamente, o interpretemos e os magistrados verdadeiramente "decidam" – por isso que detentores de poder discricionário –, decidindo-se entre as alternativas autorizadas pelo norma –, será transformá-los em juízes responsáveis." SILVA, Ovídio A. Baptista. Fundamentação das sentenças como garantia constitucional. p. 8.

16 DA SILVA, Ovídio A. Baptista. Fundamentação das sentenças como garantia constitucional. p. 1-3.

17 DA SILVA, Ovídio A. Baptista. Fundamentação das sentenças como garantia constitucional. p. 12.

18"(...)La segunda fase es aquella em la cual, tomada la decisión, se trata de justificarla, desarollando argumentaciones idóneas para contruir lá motivación. También aqui el juez emplea criterios de distinta naturaleza, pero no com el propósito de encontrar la decisión, sino com el de mostrar que aquella se funda em <<buenas razones>>. Aquí la decisión no es el propósito a conseguir, es uma hipótesis que necesita hacerse racional y jurídicamente aceptable." TARUFFO, Michele. El vértice ambíguo – Ensayos sobre la casación civil. p. 196

19 "Mais, tendo em vista a natureza dialógica do processo, é necessário que o julgador assegure o contraditório efetivo a ambas as partes, compreendido nesse princípio o direito, reconhecido a ambos os litigantes, não apenas de alegar e provar suas alegações, mas, fundamentalmente, o direito, reconhecido tanto ao vencedor quanto ao vencido, de obter "respostas" para suas alegações e provas." DA SILVA, Ovídio A. Baptista. Fundamentação das sentenças como garantia constitucional. p. 15.

20 Na Itália e na Argentina defende-se, inclusive, um recurso às Cortes Superiores para controle da fundamentação nas decisões judiciais. No Brasil, OVÍDIO BAPTISTA defende que a falta de fundamentação é motivo de cabimento de Recurso Extraordinário ao STF. Quanto à doutrina italiana, ver mais em TARUFFO, Michele. El vértice ambíguo – Ensayos sobre la casación civil. Quanto à doutrina argentina, ver em CARRIÓ, Genaro R. e CARRIÓ, Alejandro D. El recurso extraordinário por sentencia arbitraria. OVÍDIO BAPTISTA trata do assunto no artigo DA SILVA, Ovídio A. Baptista. "‘Questão de fato’ em recurso extraordinário".

Sobre o autor
João Gabriel Figueiró Salzano

Advogado, formado pelo Centro Universitário Metodista do Sul

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SALZANO, João Gabriel Figueiró. Sentença: a fundamentação como garantia contra decisões arbitrárias. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1791, 27 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11312. Acesso em: 21 nov. 2024.

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