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Súmula vinculante, princípio da separação dos poderes e metódica de aplicação do direito sumular.

Repercussões recíprocas

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8. Súmula vinculante ou enunciado vinculante? Uma distinção necessária.

Adveio, com a reforma constitucional promovida pela Emenda n. 45/04, o instituto nomeado súmula vinculante, donde decorre a imperativa compreensão do termo súmula para a compreensão do próprio instituto.

Pois bem. Não obstante seja de uso corrente a referência à Súmula n. X ou Súmula n. Y, do Supremo Tribunal Federal, ou de outro tribunal qualquer, seguida do texto do enunciado da Súmula, este uso é impreciso e, tecnicamente, incorreto.

Na verdade o único meio judicial em que a terminologia é acertadamente utilizada, na contemporaneidade brasileira, é o da Justiça do Trabalho, onde o que é habitualmente denominado Súmula X ou Súmula Y na Justiça Comum vem corretamente denominado Enunciado da Súmula X ou Enunciado da Súmula Y.

Isso porque enunciado e súmula são coisas ontologicamente diversas, e de sua diferença essencial resultam efeitos de primeira grandeza, tais quais vinculatividade e não vinculatividade, conforme se exporá.

Precisemos a terminologia, portanto. Súmula, conforme esclarece De Plácido e Silva

"... No âmbito da uniformização da jurisprudência, indica a condensação de série de acórdãos, do mesmo tribunal, que adotem idêntica interpretação de preceito jurídico em tese, sem caráter obrigatório, mas, persuasivo, e que devidamente numerados, se estampem em repertórios." [26]

Súmula constitui, portanto a expressão para índice, relação (no sentido de relatório), repertório.

Súmula da jurisprudência dominante é, portanto, um índice ou repertório de precedentes – decisões anteriores, arestos, i.e., acórdãos transitados em julgado – consentâneos que representam a posição definida – majoritária, dominante ou predominante – de um Tribunal sobre uma questão jurídica.

Donde o nome completo, a saber, súmula da jurisprudência dominante, isto é, compilação dos precedentes que refletem o entendimento vencedor em um tribunal sobre determinada questão.

Assim, tecnicamente a Súmula é o conjunto dos precedentes que a integram, não assim o enunciado, que é coisa ontologicamente, ou seja essencialmente, materialmente diversa.

Enunciado (da Súmula) é um texto composto de locuções que buscam explicitar o conteúdo da Súmula (qual seu objeto, quais as circunstâncias relevantes aventadas nos precedentes que integram a Súmula, e assim por diante).

O caráter do enunciado não é normativo, mas explicativo, esclarecedor, informativo. Através dele tenta-se sintetizar, em poucas palavras, a posição vencedora no tribunal sobre determinada matéria. Nada mais.

Para exemplificar a distinção, pode-se fazer uma analogia com o acórdão e com a ementa. Ora, é sabido que o acórdão, em sua ratio decidendi e no dispositivo, é vinculante para as partes do processo em que é proferido, sendo a ementa meramente explicativa, elucidativa da matéria tratada no caso submetido a julgamento e dos pontos fundamentais para a decisão, bem como do posicionamento do Órgão julgador sobre o tema.

Assim, fazendo-se a analogia, a ementa está para o acórdão assim como o enunciado está para a Súmula. Ambos os primeiros (ementa e enunciado) são meramente informativos e, portanto, não vinculantes – nem sequer para as partes do processo –, ao passo que o acórdão (sua ratio decidendi ou fundamentação e dispositivo) e a Súmula (entendida como conjunto de precedentes uniformes sobre data matéria e declarada dominante pelo Tribunal) é que são vinculantes.

Em suma, os precedentes que compõem a súmula são vinculantes, não assim seu enunciado, redigido por razões práticas de facilidade de compreensão e de pesquisa.

A medida da vinculação do acórdão e da Súmula variam, bem como a vinculatividade entre Súmulas da jurisprudência dominante em geral e a espécie nova comumente denominada Súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal.

O acórdão vincula, em regra, apenas as partes integrantes da lide, salvo casos excepcionais, como o da jurisdição constitucional em via principal (controle concentrado de constitucionalidade), cuja força vinculante impõe-se erga omnes.

A Súmula, ainda que não seja vinculante para os termos da Emenda Constitucional n. 45/04, vincula, também, os órgãos da justiça, como os órgãos fracionários dos Tribunais em que é adotada (suas Câmaras, Turmas e Seções), por exemplo, por força dos incidentes de uniformização da jurisprudência.

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A vinculação produzida pela Súmula não-vinculante (!) é de importância significativa e não negligenciável, por exemplo, em matéria recursal, ensejando recursos e incidentes específicos, ou revelando-se impediente de recepção e processamento de recursos (a dita súmula impeditiva de recurso). [27]

A vinculação da Súmula vinculante do STF, nos termos da EC n. 45/04, é extensiva, como já visto, a todos os órgãos do Poder Judiciário – sejam estes de primeiro ou de segundo grau, ou mesmo Tribunais Superiores, sejam da Justiça Comum ou das Especiais, e da Justiça Estadual ou Federal, etc.), bem como para a administração pública em geral (em todos os níveis, municipal, estadual e federal, compreendida como administração pública não apenas os órgãos do Poder Executivo, mas também e inclusive órgãos do Poder Legislativo e do Poder Judiciário quanto atuem na condição de administradores (funções acessórias de expediente, e não as típicas funções legislativas e jurisdicionais), direta e indireta.

Trata-se de vinculação relevantíssima, por seu alcance, como se pode facilmente perceber.

Mas, retomando a dicotomia Súmula (da jurisprudência dominante) e seu enunciado, é a primeira que revela-se vinculante, jamais o segundo, cuja redação é elaborada com intuito meramente informativo.

Feita, sublinhada e bem compreendida esta primeira distinção e precisação, antes de se avançar para a enorme relevância prática da mesma para a metódica de aplicação do direito sumular, insta incursionar no âmbito do Direito Comparado, compreendendo aspectos relevantes da dicotomia existente entre os sistemas de direito legislado (ditos civil law no âmbito anglo-americano) e de direito judicial (dito case law ou judge made law, cujo exemplar essencial é a Common Law anglo-americana).

É tal estudo que explicitará como é aplicado cada um destes diferentes tipos de direito, servindo de indicativo acerca da postura do jurista teórico e prático em face do novel direito sumular que passa a surgir e viger doravante, paralelamente ao direito legislado – embora nele fincado, como se verá.

Adiante-se que, diante da complexização inédita do sistema jurídico pátrio com tal acontecimento, far-se-á necessária aos juristas brasileiros grande versatilidade para se movimentar em seus arrazoados e argumentações ora com a racionalidade do civil law, preponderante, ora com a racionalidade do case law, subsidiária.


9. A contribuição do direito comparado: civil law vs. case law.

Dois são os grandes sistemas jurídicos ocidentais contemporâneos: o direito de tipo europeu-continental, a cepa romano germânica, de origem acentuadamente legislativa, e, de outro lado, o direito de tipo anglo-(norte)americano, a cepa do Common law, de origem prevalentemente judicial. [28]

Os dois sistemas baseiam-se em premissas diversas, trabalham com métodos diferentes e regem-se por regras diversas, de modo que a identificação do direito aplicável, o tipo de argumentação desenvolvido para sua aplicação e para o arrazoamento jurídico em geral é radicalmente distinto.

O direito europeu-continental rege-se, em nível de racionalidade, por um princípio dedutivo, movendo-se do geral ao particular, através da subsunção dos fatos da vida às categorias e conceitos legais.

Já o sistema anglo-americano rege-se por um método de proceder indutivo, extraindo-se as regras do agir dos casos anteriormente julgados. Ou seja, a regra é obtida por indução, buscando o jurista, a partir dos casos idênticos ou semelhantes anteriormente julgados, obter uma regra geral de conduta.

Além de racionalidades e metódica radicalmente diversa, ambos os sistemas ou famílias distinguem-se entre si pelas diferentes divisões, categorias e por uma diversa concepção da regra jurídica. [29]

No sistema europeu-continental, i.e., romano-germânico, a ênfase das fontes recai sobre a legislação, sendo daí, primordialmente, retiradas as regras de conduta, como já visto.

É com base na legislação que os operadores do direito vão procurar identificar o direito aplicável a um caso concreto, através da fixação do sentido e do alcance das normas jurídicas contidas nos dispositivos legais, mais ou menos genéricos, através da atividade interpretativa. Para nós o tema não é novo, haja vista a filiação do direito brasileiro a tal família.

Já no sistema do Common law, típico do Reino Unido e dos Estados Unidos – com as especificidades significativas de cada um desses ramos de tal família de direito – o direito origina-se essencialmente da atividade judicante, sendo nela procuradas as regras. [30]

Ou seja, o direito encontra-se encerrado, essencialmente, no conjunto das decisões precedentes dos tribunais sobre determinado tema. Um imperativo de isonomia é visto como estruturante da ordem jurídica, a exigir que as decisões proferendam, sejam, via de regra, do mesmo teor das decisões anteriormente proferidas, sobre a mesma matéria.

Por tal característica, este sistema é conhecido, ainda, como judge made law ou case law, vale dizer, direito de origem judicial ou direito dos casos. E é por tal razão que vêem-se referências, primordialmente, a casos julgados na argumentação jurídica dos países do Common law, e não a dispositivos legais (p. ex., Madison vs. Marbury, etc.), em regra.

A própria pesquisa do direito aplicável a um caso concreto não se dá em códigos – inexistentes nos países do Common law – ou coletâneas de legislação, mas com base em repositórios de decisões judiciais passadas. É dali que se extrairão as regras a serem aplicados aos casos presentes, são as decisões passadas que orientarão as decisões proferendas. [31]


10. Aplicação do direito jurisprudencial.

Pelas características até aqui vistas do case law já se pode antever o modo de aplicação do direito neste sistema, muito distinto daquele da família do direito europeu-continental.

Para a aplicação do direito neste sistema, é essencial a compreensão de sua principal regra estruturante, a do stare decisis.

10.1. Regra do stare decisis.

Stare decisis é expressão latina (portanto a pronúncia anglicizada é incorreta), consistente na primeira parte do brocardo stare decisis et non quieta movere, cujo significado é, em suma, que não se deve alterar aquilo que já foi decidido.

Esta regra estruturante do Common law inspira-se em razões de isonomia: com efeito, segundo o pensamento subjacente a ela, casos iguais devem ser decididos da mesma maneira.

Ao pensamento jurídico típico do case law é inconcebível que casos iguais recebam soluções jurídicas diversas, excetuadas circunstâncias bastante específicas, que veremos.

Assim, pela regra do stare decisis, deve-se buscar nos precedentes a solução dada aos litígios iguais ou assemelhados aos presentes para, daqueles extraindo a regra de direito, aplicá-la a estes. [32]

É, em suma, a regra do precedente vinculante (binding precedent).

A stare decisis pode ser distinguida entre horizontal stare decisis e vertical stare decisis. [33] A primeira significa que o juiz ou tribunal encontra-se vinculado às suas próprias decisões anteriormente proferidas sobre dada matéria, dela não podendo afastar-se senão em casos excepcionais.

A segunda implica em vinculação do julgador aos precedentes oriundos de jurisdições superiores. Assim os órgãos inferiores da justiça encontram-se jungidos às decisões proferidas pelos órgãos superiores na mesma matéria. [34]

Vê-se, portanto, a nítida analogia que se estabelece entre a vertical stare decisis e a súmula vinculante, ora em estudo.

10.1.1. Ratio decidendi ou holding

Ratio decidendi ou holding e obiter dictum fazem parte das reasons, isto é, das manifestações dos órgãos judicantes no julgamento.

Ratio decidendi ou holding é o próprio fundamento da decisão judicial, compreendido como os argumentos de direito expendidos pelo julgador como necessários para a tomada da decisão quanto ao caso concreto. [35]

Dois são os elementos identificadores, portanto: (1) são razões de direito e (2) apenas aquelas necessárias à decisão do caso particular. [36]

É a ratio decidendi que vincula o julgador pela vertical e horizontal stare decisis. O essencial da ratio decidendi ou holding são os princípios de direito positivo aplicáveis ao caso sub judice. Somente pronunciamento de direito necessário à decisão de um caso particular constituem a ratio decidendi. [37]

A rigor não são exatamente as decisões que são vinculantes, mas o princípio ou os princípios ou regras de direito nela desenvolvidos. [38] Isto será essencial na correta compreensão da súmula vinculante em nosso ordenamento.

Essencial à compreensão do conceito de ratio decidendi ou holding é a categoria contraposta dos obiter dictum.

10.1.2. Obiter dictum.

No gênero das reasons encontra-se, para além da ratio decidendi/holding, os obter dictum.

Por oposição, sendo a ratio decidendi ou holding dos princípios de direito indispensáveis para a decisão do caso concreto, o obiter dictum consiste de declarações prescindíveis, de fato ou de direito, expendidas pelo julgador a título explicativo, exemplificativo ou explanatório. [39]

Obiter dictum significa dito incidentalmente. O critério distintivo entre a matéria de direito que constitui a ratio decidendi ou holding, vinculante, radica nos fatos sobre os quais se assenta a sentença. O que tiver direta relação com estes é ratio decidendi ou holding, possuindo efeito vinculante ("binding element"), caso contrário, é obiter dictum, sem efeito vinculante. [40]

10.2. Técnica das distinções.

A técnica das distinções, segundo René David, é a técnica de aplicação do direito do Common law por excelência: é através dela que, distinguindo-se, de um lado, os precedentes, uns dos outros e, de outro, a ratio decidendi ou holding do obiter dictum, aplica-se o direito. [41]

A técnica ou teoria das distinções permite, especialmente, que se distinga o caso presente de outros precedentemente julgados, de modo a afastar o caso sub judice da força vinculante dos precedentes. [42]

A confrontação do suporte fático do caso que originou o ou os precedentes pretensamente aplicáveis ao caso atual em julgamento com o suporte fático deste último permite, pela técnica das distinções, a constatação da congruência ou incongruência do caso decidendo para com os precedentes vinculantes que se pretende aplicar em um primeiro momento.

Isso se deve ao fato de que, como visto, a ratio decidendi ou holding, da qual se extraem as regras de direito aplicáveis ao caso sub judice prende-se umbilicalmente aos fatos materiais que subjazem ao precedente, pelo que, segundo Andréia Costa Vieira, com base no magistério de Gary Slapper e David Kelly, "[u]ma Corte pode, então, considerar os fatos de um determinado caso materialmente diferentes dos fatos de um precedente citado", donde "ela não estará vinculada às razões daquele precedente". [43]

E somente é possível constatar a identidade ou diferença dos casos anteriormente julgados (i.e., de seus fatos materiais subjacentes) para com o caso decidendo indo aos repositórios dos julgados e estudando, minudentemente, todas as circunstâncias fáticas e jurídicas que os aproximem ou afastem, que os identifiquem/assemelhem ou os façam distinguir-se.

Sobre os autores
Geziela Jensen

Mestre em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Membro da Société de Législation Comparée (SLC), em Paris (França) e da Associazione Italiana di Diritto Comparato (AIDC), em Florença (Itália), seção italiana da Association Internationale des Sciences Juridiques (AISJ), em Paris (França). Especialista em Direito Constitucional. Professora de Graduação e Pós-graduação em Direito.

Luis Fernando Sgarbossa

Doutor e Mestre em Direito pela UFPR. Professor do Mestrado em Direito da UFMS. Professor da Graduação em Direito da UFMS/CPTL.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JENSEN, Geziela; SGARBOSSA, Luis Fernando. Súmula vinculante, princípio da separação dos poderes e metódica de aplicação do direito sumular.: Repercussões recíprocas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1798, 3 jun. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11327. Acesso em: 8 mai. 2024.

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