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Tratados Internacionais de Direitos Humanos.

Um novo "locus" hermenêutico?

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Após identificar as principais correntes doutrinárias sobre a matéria, questiona-se a possibilidade de incluir no modelo de análise constitucional contemporâneo outro "locus" hermenêutico, pelo qual as normas jurídicas retirem também seu fundamento de validade.

Sumário: 1 Introdução. 2 Abertura do catálogo de direitos fundamentais. 3 Incorporação do tratado ao direito interno. 3.1 Tratado internacional com "status" de lei ordinária. 3.2 Caráter constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos. 3.3 O "status" intra-sistemático dos tratados internacionais 3.4 Caráter supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos. 3.5 Hermenêutica constitucional e o lugar dos tratados internacionais de direitos humanos 4 Conclusão. Referências bibliográficas.


Resumo

O objetivo do presente estudo é abordar os posicionamentos da doutrina e jurisprudência sobre a natureza dos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro. Após identificar as principais correntes doutrinárias sobre a matéria, questiona-se a possibilidade de incluir no modelo de análise constitucional contemporâneo outro "locus" hermenêutico, pelo qual as normas jurídicas retirem também seu fundamento de validade.

Palavras-chave: Tratados internacionais de direitos humanos. Neoconstitucionalismo. Nova Hermenêutica. "Locus" hermenêutico.


1.Introdução

Após a segunda guerra mundial, iniciou-se o processo de internacionalização dos direitos humanos. Surgiram dois tipos de sistemas protetivos: o sistema global (fomentado pela ONU) e os sistemas regionais (sistemas europeu e interamericano). Isto fez eclodir uma nova forma de pensar o direito, pela qual a dignidade da pessoa humana torna-se o objetivo de todo Estado Democrático de Direito, sendo indispensável que a Constituição de um Estado positive os direitos humanos e forneça formas de concretização e instrumentos de garantia.

Existe uma discussão na doutrina e jurisprudência quanto à natureza dos tratados de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro, a saber, se configurariam ou ostentariam: a) status de lei ordinária; b) natureza constitucional; c) natureza supralegal; d) natureza de emenda constitucional. O objetivo do presente estudo é analisar esses posicionamentos, considerando a incorporação recente dos tratados de direitos humanos em posição de igualdade com os princípios fundamentais constitucionais.


2.Abertura do catálogo de direitos fundamentais

Os direitos fundamentais, entendidos como concretização da dignidade do ser humano, configuram, juntamente com o princípio de separação dos poderes, o núcleo "substancial" da Constituição. O Estado de Direito não pode mais se preocupar com a mera positivação formal desses direitos, pois as ações estatais são legitimadas na medida em que cumprem uma função ativa na afirmação e efetivação dos direitos e garantias fundamentais.

Expressamente reconhecidos logo no início da Constituição Federal, os direitos fundamentais positivados no Título II da Constituição Federal de 1988 não formam um sistema fechado e autônomo. [01] Ao contrário, a Constituição possui abertura tanto para conteúdos "metanormativos" (valores, princípios, justiça material), quanto para outros estatutos jurídicos (ordem jurídica internacional). [02] O § 2° do seu art. 5° confirma a existência de um sistema de direitos e princípios fundamentais aberto e flexível (TRINDADE, 2003, p.512), verbis [03]:

Art. 5º, § 2º: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

O rol contido no Título II, portanto, é meramente exemplificativo. O dispositivo supracitado expõe um sistema constitucional aberto de direitos fundamentais que se correlaciona com outros dispositivos do próprio texto constitucional (direitos e garantias expressos), com princípios constitucionais implícitos (decorrentes do regime adotado pela Constituição e dos princípios constitucionais) e com tratados internacionais de direitos humanos. Esse sistema de direitos fundamentais apresenta uma importante "nota de fundamentalidade" (SARLET, 2007, p.88 e ss.), caracterizado por um duplo aspecto: um, sob o prisma formal, o outro, sob o prisma material.

Sob o aspecto formal, possuem caráter supralegal (estão no ápice do ordenamento jurídico), submetem-se a limites da reforma constitucional (art. 60, § 4°, IV, CF, caracterizando-se como "cláusulas pétreas") e são normas diretamente aplicáveis, vinculando entidades públicas e privadas (art. 5°, § 1°). Sob o aspecto material, implicam no fato de que a Constituição permite uma abertura do que se entende por direitos fundamentais através do art. 5°, § 2° – em outras palavras, há outros direitos decorrentes, outros implícitos e aqueles que são originários de tratados internacionais que, embora não façam parte do catálogo, são materialmente constitucionais.

Restringe-se o objeto do presente estudo à aferição dos direitos fundamentais que se encontram fora do catálogo do Título II, mas que são materialmente constitucionais: os tratados internacionais de direitos humanos.


3.Incorporação do tratado ao direito interno

O costume no âmbito internacional, fonte mais tradicional do Direito Internacional, tem cedido lugar a uma codificação dos tratados internacionais por duas razões: a evolução dos sistemas regionais internacionais de direitos humanos e a globalização, que remove as fronteiras em favor das relações comerciais entre os países em todo o mundo.

A doutrina costuma apontar outros instrumentos que se tornaram sinônimos como, v.g., convenção, declaração, protocolo, carta, pacto, acordo, convênio, variando, no mais das vezes, a complexidade do tema e o número de partes. Adotamos aqui o vocábulo tratado internacional "lato sensu", o que engloba todos esses instrumentos internacionais, posto que possuem a mesma natureza. Assim, tomamos a conceituação de MAZZUOLLI (2004, p.48), para defini-lo como "um acordo formal de vontades concluído entre os sujeitos de direito internacional público, regido pelo direito das gentes e destinado a produzir, imprescindivelmente, efeitos jurídicos para as partes que aderiram".

No direito pátrio, o consentimento em obrigar-se por um tratado é um ato complexo. Pertence ao Chefe do Executivo a competência privativa para celebrar atos internacionais (assinatura do compromisso), mas depende de abono do Legislativo para que posteriormente proceda com a ratificação. O Presidente da República precisa remeter o texto do tratado através de mensagem ao Congresso Nacional. A matéria será discutida primeiro na Câmara e depois no Senado, que a poderá rejeitar ou aprovar. Aprovado o decreto legislativo pelo Congresso Nacional [04], será publicado pelo Presidente do Senado, o que autorizará o Presidente da República a ratificar o tratado. Ratificado, surtirá efeitos na ordem internacional. Após a ratificação, para que tenham validade interna [05], o tratado deve ser promulgado por decreto do Presidente da República.

A ratificação de um tratado internacional implica o reconhecimento de uma ordem jurídica internacional pelo direito interno. Surgem, então, problemas doutrinários "que consistem em sabermos qual o tipo de relações que [o direito internacional e o direito interno] mantêm entre si" (MELLO, 2004, p.109). A doutrina se divide quanto ao dualismo e ao monismo.

Para os adeptos do dualismo, direito interno e direito internacional são dois sistemas independentes. [06] Os autores monistas apontam para uma convergência harmônica entre os sistemas internacional e interno [07]. No entanto, quando surgem conflitos entre os dois sistemas, deve-se optar pela primazia da ordem interna ou da ordem internacional. Para a solução desse problema, surgiram duas correntes dentro do monismo: para uns, há prevalência da ordem jurídica internacional (monismo internacionalista); para outros, a interna (monismo nacionalista).

Para os adeptos ao monismo internacionalista - cujo maior expoente foi KELSEN - o direito internacional é hierarquicamente superior, estando o direito interno a ele subordinado. De outro lado, o monismo nacionalista se firma na soberania absoluta do Estado ao pregar o primado do direito interno, o que se "justifica pela ausência de autoridade supra-estatal internacional, o que implica a liberdade de cada Estado apreciar suas obrigações internacionais e escolher os meios de execução" (MACHADO, 1999, p.44-45). A adoção do direito internacional seria mera discricionariedade, prendendo-se a um verdadeiro "culto" à Constituição (REZEK, 2006, p.05).

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Como se verá adiante, a opção pelo dualismo ou monismo refletirá na corrente a qual o intérprete se filiará quando se deparar com um tratado relativo a direitos humanos: a) tratado internacional com status de lei ordinária (antiga posição do STF); b) sua natureza constitucional (PIOVESAN, TRINDADE, MAZZUOLI); c) sua natureza supralegal (novo posicionamento do STF); d) natureza de emenda constitucional (art. 5°, § 3° da CF/88).

3.1.Tratado internacional com "status" de lei ordinária

A doutrina majoritária interpreta o § 2° do art. 5° da Constituição de forma restritiva, aduzindo que as normas previstas em atos internacionais, ainda que pertinentes a direitos humanos, ingressam no ordenamento jurídico como atos infraconstitucionais, estando, portanto, no mesmo nível hierárquico das leis ordinárias (CHIMENTI, 2006; MORAES, 2006; SLAIBI FILHO, 2006). Exemplo disto é o posicionamento de FERREIRA FILHO. Em sua visão, somente os tratados de direitos humanos aprovados pelas duas Casas do Congresso Nacional em dois turnos e pela maioria de três quintos de seus membros seriam normas constitucionais. Enfatiza, logo adiante, que os instrumentos internacionais aprovados "sem essa maioria qualificada valerão como lei infraconstitucional" (2007, p.297).

Esta também tem sido a posição majoritária no Supremo Tribunal Federal, que passou a sinalizar para esse caminho em 1977 no julgamento do RE 80.004-SE e, sob a vigência da nova Constituição, nos julgamentos do HC 72.131-1-RJ (1995) e da ADIN-MC 1.480-3-DF (1997). No primeiro caso, iniciou-se a discussão em torno da prevalência ou não da ordem jurídica interna sobre a internacional. O relator, Min. Xavier de Albuquerque votou pela prevalência do instrumento internacional em face de uma lei ordinária posterior, somente admitida a revogação do compromisso internacional através de ato próprio, qual seja, a denúncia do tratado. Vejamos um trecho do voto:

A partir do julgamento, em Plenário do RE 71.154, de que foi Relator o eminente Ministro Oswaldo Trigueiro (RTJ 58/70), o Supremo Tribunal vem decidindo reiteradamente que as Leis Uniformes adotadas pelas Convenções de Genebra incorporaram-se ao nosso direito interno e entraram em vigor, no Brasil, a contar dos decretos que as promulgaram. Tais decisões reforçaram e atualizaram, em nossos dias, antiga orientação de nossa jurisprudência no sentido do primado do direito internacional sobre o direito interno, como depõe o Professor Haroldo Valladão [...]. (Supremo Tribunal Federal: RE 80.004-SE, plenário: 01/06/1977. DJ de 29/12/1977).

Foi ele vencido pelo seguinte entendimento: ao adentrar no ordenamento jurídico interno, o tratado assume o caráter de lei ordinária. A superveniência de lei com ele conflitante poderia revogá-lo, não se aceitando o primado do direito internacional. Em razão da solução lex posterior derrogat priori, utilizada diante dos conflitos entre normas de mesma hierarquia, o tratado pode ser revogado pelo Legislativo, dispensando a denúncia.

Firma então o Supremo Tribunal Federal no HC 72.131-1 (plenário de 22/11/1995. DJ de 01/08/2003) o entendimento sobre o status de lei ordinária mesmo dos tratados internacionais de direitos humanos, servindo a discussão pelo Plenário do Supremo de referência para os casos vindouros (HC 81.139-GO, HC 77.053-SP, HC 79.870-SP, RHC 80.035-SC, HC 72.131-1-RJ.), principalmente no que tange à constitucionalidade do DL 911/69 na parte que trata da prisão civil do devedor, considerado depositário do bem alienado. O objeto do habeas consistiu, portanto, no pedido de concessão de ordem para pôr o paciente em liberdade, afastando a constitucionalidade da prisão civil do fiduciante, considerado pelo Decreto-lei 911/69 como depositário fiel do bem alienado. O julgamento foi marcado por divergências. O Plenário, por maioria, decidiu pelo indeferimento da ação.

O Relator, Min. Marco Aurélio, considerou ilegítima a equiparação do contrato de alienação fiduciária regulamentado pelo Decreto-lei 911/69 com o contrato de depósito. Conforme seu entendimento, a alienação fiduciária não é depósito, mas contrato de compra e venda com uma indevida cláusula coercitiva de prisão. O fiduciante, consequentemente, não tem o dever de guarda. Por outro lado, a ratificação do Pacto de San José da Costa Rica em 1992 implicou a derrogação do DL 911/69, dado o seu caráter de lei ordinária posterior. No entanto, prevaleceu o entendimento firmado pelo Min. CELSO DE MELLO, conforme se depreende do seu voto abaixo:

Na realidade, inexiste, na perspectiva do modelo constitucional vigente no Brasil, qualquer precedência ou primazia hierárquico-normativa dos tratados ou convenções internacionais sobre o direito positivo interno, sobretudo em face das cláusulas inscritas no texto da Constituição da República, eis que a ordem normativa interna não se superpõe, em hipótese alguma, ao que prescreve a Lei Fundamental da República.

No terceiro julgado, ADIN-MC 1.480-3-DF (plenário de 04/09/1997, DJ 18/05/2001), restou consolidada a tese de que os tratados internacionais, qualquer que seja sua natureza, ingressam no direito interno no mesmo degrau das leis ordinárias, a elas se equiparando:

No sistema jurídico brasileiro, os tratados ou convenções internacionais estão hierarquicamente subordinados à autoridade normativa da Constituição da República. [...] uma vez incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias, havendo, em conseqüência, entre estas e os atos de direito internacional público, mera relação de paridade normativa. Precedentes.

A principal razão da tese da paridade entre tratado internacional de direitos humanos e a lei ordinária está em reconhecer a ordem jurídica internacional separada do direito interno. Como conseqüência, o primado do ordenamento jurídico interno encontra fundamento na soberania do Estado. Não que os tratados, uma vez ratificados, sejam despidos de normatividade; situam-se, como mencionado na imagem da pirâmide kelseniana, no mesmo degrau ocupado pelas leis ordinárias. No entanto, há a ressalva de que, se conflitarem com a Constituição ao prever um direito fundamental mais abrangente e intenso, a primazia continuará sendo do direito interno.

3.2.Caráter constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos

Minoritária na doutrina, faz-se presente na jurisprudência do STF a tese da paridade do tratado com a lei ordinária. [08] Esta orientação, seguida por TRINDADE, PIOVESAN e GOMES, entende que o §2° do art. 5° da CF/88 confere um caráter constitucional não a qualquer tratado internacional, mas àqueles que se referem a direitos humanos. Embora não sejam formalmente constitucionais, a referida cláusula de abertura seria por demais cristalina ao considerar esses instrumentos internacionais como substancialmente constitucionais.

A tese da materialidade constitucional desses instrumentos revela assim uma posição monista internacionalista: o que está em jogo é a prevalência da norma "humanitarista". Por esse prisma, a soberania não é absoluta. A ordem jurídica interna há de se compatibilizar com os sistemas internacionais de proteção de direitos humanos, em especial o interamericano. Esta a interpretação que se faz quando a Constituição de 1988 coloca como fundamento da República a dignidade da pessoa (art. 1°, III) e seu principal objetivo a construção de uma sociedade justa (art. 3°, I). Esses princípios tanto valem para a ordem jurídica interna quanto para a externa, uma vez que o Estado regerá suas relações internacionais tendo como guias a cooperação com outros sujeitos internacionais (art. 4°, IX) e a prevalência dos direitos humanos (art. 4°, II). [09]

O objetivo do §2° do art. 5° da CF/88, na colocação de SARLET (2007, p.141), é consagrar o princípio da não-tipicidade dos direitos fundamentais, cujo escopo não é a restrição, e sim

[...] ampliar e completar o catálogo dos direitos fundamentais, integrando, além disso, a ordem constitucional interna com a comunidade internacional cada vez mais marcada pela interdependência entre os Estados e pela superação da tradicional concepção da soberania estatal.

Busca-se, conforme destaca SAGÜÉS (2006, p.211-213), não uma destruição, mas uma conciliação das esferas internacional e interna, mediante o uso de uma interpretação sistemática. Mas, se um tratado concede a um particular um direito fundamental mais intenso do que o contemplado na Constituição ou uma norma infraconstitucional, prevalece o direito do tratado.No mesmo sentido, MAZZUOLI (2004, p.224), quando defende o primado dos tratados internacionais de direitos humanos:

O Brasil, no que diz respeito aos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos, como se depreende do § 2°, do art. 5°, da sua Carta Magna, adotou o monismo internacionalista apregoado por Hans Kelsen, posto que a Constituição brasileira contém um preceito por força do qual o direito internacional dos direitos humanos deve valer como parte integrante da ordem jurídica interna, com o status de norma constitucional.

Por incorporar uma disposição de direitos humanos, o direito internacional passa a integrar o direito interno na mesma hierarquia das demais normas constitucionais de direitos fundamentais. O §2° do art. 5° representa uma cláusula de abertura, o que significa dizer que a própria Constituição permite que todo tratado humanitarista ratificado pelo Legislativo ingresse no ordenamento jurídico interno pelo andar mais alto do sistema jurídico brasileiro.

A ordem jurídica internacional é caracterizada pela coordenação entre os sujeitos internacionais, tornando o dogma da soberania "inteiramente inadequado ao plano das relações internacionais" (TRINDADE, 2002, p. 1046). Não se pode, portanto, afastar o sistema jurídico internacional de proteção dos direitos humanos sob o argumento de que a soberania do Estado brasileiro sobrepõe a Constituição a qualquer outro diploma normativo. A soberania dos Estados não é absoluta, sendo relativizada pelos direitos humanos, isto porque quando um Estado opta por ingressar em um sistema internacional de proteção dos direitos humanos, ele flexibiliza a sua soberania, passando esta a harmonizar-se com a ordem jurídica externa. É o que acontece com o Brasil: encontra-se vinculado ao sistema interamericano de direitos humanos (Comissão Interamericana de Direitos Humanos e Corte Interamericana de Direitos Humanos) na qualidade de Estado-Membro da Organização dos Estados Americanos, ao sistema global (ONU) e, não poderíamos deixar de mencionar, ao Tribunal Penal Internacional.

A defesa do caráter absoluto da soberania impede a eficácia plena das normas humanitaristas na ordem interna. Sob esse prisma, a ordem jurídica interna sempre estará sobreposta ao direito internacional público e o Estado pode recusar a validade dessas normas sob o argumento de que desnaturam o princípio da Supremacia da Constituição. Esta foi a interpretação formalista consolidada no julgamento do HC 72.131 pelo STF cuja tese prevalecente, conforme visto anteriormente, foi a da soberania estatal e, consequentemente, da supremacia constitucional. Não foi levado em conta que os direitos fundamentais são o fim do Estado e, por esse motivo, devem sempre ser interpretados "pro homini", portanto, acima da legislação infraconstitucional.

Outro ponto a ser observado é quanto à vigência automática da incorporação das normas humanitaristas desde a ratificação do tratado, independente de edição ulterior de decreto pelo Presidente da República – concepção monista internacionalista.(MAZZUOLI, 2004, p.375; TRINDADE, 2003, p. 412; PIOVESAN, 1997, p. 104). Já no caso de conflito entre as normas do tratado e o direito interno, a doutrina que defende o status constitucional dessas normas dá prevalência àquela mais favorável à dignidade da pessoa humana (TRINDADE, 2000, p.143; TRINDADE, 2002, p.653). É o que se depreende do conflito entre o art. 7°, item 7 do Pacto de San José e o art. 5°, LXVII da CF/88 – proibição de prisão do depositário infiel/ possibilidade de lei regulamentar a prisão do depositário infiel. Não convence o argumento da Supremacia da Constituição sobre a ordem internacional, fundada na soberania estatal, uma vez que os direitos fundamentais, por serem a finalidade essencial do Estado, se sobrepõem ao primado do direito interno.

3.3.O "status" "intra-sistemático" dos tratados internacionais de direitos humanos

Em meio ao debate quanto ao status dos tratados internacionais de direitos humanos incorporados ao direito interno, se de caráter infraconstitucional ou constitucional, restou aprovada a Emenda Constitucional n° 45 em dezembro de 2004. Seu objetivo foi pôr um fim à discussão, pois essas normas passariam a contar com um aspecto formal e materialmente constitucional quando aprovadas por meio de procedimento mais dificultoso (aprovação em dois turnos pelas Casas Legislativas do Congresso Nacional e por três quinto dos votos de seus membros), uma vez que assumiriam caráter de emenda constitucional.

Por um lado, conforme o entendimento de SARLET (2007, p.154), a introdução do § 3° ao artigo 5° da Constituição assegura uma hierarquia constitucional aos tratados que tratem de direitos humanos, pois a incorporação como emenda constitucional impede a "supressão e esvaziamento" desses direitos por nova reforma. De forma semelhante, REZEK (2006, p.152-153) também considera resolvida a questão em torno da natureza desses tratados: caberá ao Congresso identificar se eventual tratado contempla prescrições humanitaristas para, então, aprová-lo segundo o rito das emendas constitucionais.

Por outro lado, entendemos que a posição doutrinária sobre a materialidade desses atos internacionais já dispensa qualquer alteração formal na Constituição. Trata-se de um problema hermenêutico resolvível pela adoção do princípio "pro homini", pela rejeição do caráter absoluto da soberania e na adoção da teoria monista internacionalista. Além disso, um outro importante fator deve ser levado em conta: ainda não sabemos como o Congresso Nacional irá aplicar o § 3° do artigo 5°. Se ele efetivamente vier a aprovar todos os tratados de direitos humanos sob o rito das emendas constitucionais, o problema se resolve em parte. Será uma resolução parcial porque os tratados anteriormente incorporados continuariam com o status infraconstitucional para os adeptos da corrente formalista. De outro lado, se, por outras razões, o Congresso não aplicar o novo rito, então a problemática ressurge novamente. Em ambos as situações, voltaremos à antiga discussão sobre a interpretação do § 2°.

Como se observa, o acréscimo do § 3° ao artigo 5° está longe de resolver a discussão como pretende REZEK. Embora importantes as considerações de SARLET, entendemos, ao contrário de sua tese, que o novo dispositivo supracitado é inconstitucional porque dificulta a incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos. Assim, por piorar a aplicabilidade de normas humanitaristas, considerando o status constitucional na conformidade do art. 5°, § 2°, a Emenda Constitucional n° 45/2004 viola o Princípio da Proibição do Retrocesso. Comentando o princípio, SAGÜÉS (2006, p.213) salienta que o Princípio de Não Regressão [10] impede que o Estado edite "normas futuras que apaguem ou reduzam essencialmente um direito humano já reconhecido previamente por ele". Por essa razão, a incorporação desses tratados dispensaria uma aprovação legislativa mais rigorosa. E, sendo assim, nítida a inconstitucionalidade material do § 3° do art. 5°.

3.4.Caráter supralegal dos tratados de direitos humanos

Se a discussão doutrinária e jurisprudencial há muito tempo girava em torno do caráter legal ou constitucional dos tratados de direitos humanos, a inovação da EC 45 tenta pôr fim a essa questão. Se o Congresso Nacional vai adotar o novo rito nos tratados vindouros, ainda não sabemos. A par dessa divergência, surge no âmbito jurisprudencial, mais especificamente dentro do Supremo Tribunal Federal, um novo conceito sobre a natureza jurídica das normas humanitaristas.

Proposto pelo Ministro Gilmar Mendes nos autos do Recurso Extraordinário n° 466.343, o caráter supralegal dos tratados de direitos humanos se referem à situação prevista no § 2° do art. 5° da Constituição – apreciados pelo Congresso Nacional sem o rito das emendas constitucionais. Esses tratados "seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atributo de supralegalidade". Decorre dessa característica especial não a revogação da legislação infraconstitucional conflitante com o tratado, mas a paralisação de sua eficácia.

O caso concreto diz respeito à discussão em torno da prisão civil do depositário infiel nos termos do DL 911/69. Segundo a nova orientação do Supremo, a ratificação do Pacto de San José pelo Brasil em 1992 suspendeu a eficácia do referido Decreto-lei por ser com ele conflitante, prevalecendo a regra protetiva de direitos humanos do seu art. 7°, item 7 do Pacto. O Min. GILMAR MENDES conclui, em seu voto, que

A prisão civil do depositário infiel não mais se compatibiliza com os valores supremos assegurados pelo Estado Constitucional, que não está mais voltado para si mesmo, mas compartilha com as demais entidades soberanas, em contextos internacionais e supranacionais, o dever de efetiva proteção dos direitos humanos.

O julgamento do mencionado Recurso Extraordinário embora se encontre suspenso, já conta com sete votos favoráveis à tese da supralegalidade. Com base nesse entendimento, o STF recentemente deferiu, por unanimidade, o pedido de "habeas corpus" envolvendo o mesmo objeto (prisão civil do depositário infiel de que trata o DL 911/69) nos autos do HC 90.172-SP (Segunda Turma: 05/06/2007, DJ de 17/08/2007).

Desta decisão conclui-se que as normas infraconstitucionais devem guardar uma compatibilidade vertical tanto com os tratados de direitos humanos, quanto com a Constituição. Se incompatíveis com a norma humanitarista internacional, suspende-se sua eficácia, tendo em vista a especialidade desse tipo de norma jurídica. Apesar de não admitir o caráter constitucional, percebe-se o progresso ao colocar os tratados internacionais de direitos humanos num degrau acima da legislação infraconstitucional.

3.5.Hermenêutica constitucional e tratados de direitos humanos

O Estado contemporâneo evoluiu do Estado de Direito ao Estado Constitucional Democrático e Humanitário. A Constituição se revela, pois, como a Lei Fundamental de um Estado que estabelece poderes, mas que os limita, visando ao fim maior que é a manutenção de uma sociedade justa, solidária e digna – idéia umbilicalmente integrada ao dever de efetivação dos direitos fundamentais. No entanto, sem um mecanismo de proteção contra os abusos, a Constituição tende a tornar-se mero documento descritivo. Através dos princípios da supremacia constitucional e da separação dos poderes as suas normas podem ser garantidas e respeitadas. Toda a legislação infraconstitucional retira da Constituição, portanto, o seu fundamento de validade.

No pensamento positivista dogmático, vigência se confunde com validade. Na perspectiva neoconstitucionalista, porém, nem toda norma vigente é válida. Neste sentido FERRAJOLI (2002, p.684 e ss) observa que a vigência pressupõe mera publicação e "vacatio" da norma: uma norma infraconstitucional somente será válida se formal e materialmente constitucional. Não basta obedecer ao procedimento e ao critério de competência, toda a legislação infraconstitucional deve possuir um conteúdo adequado ao texto constitucional, em especial aos direitos fundamentais. Também Lenio Streck (COUTINHO, 2006, p.270) assevera que o neoconstitucionalimo põe fim à "crença na plenipotenciariedade do âmbito da vigência da norma de uma lei (regra), abrindo-se espaço para o âmbito que lhe é superior: o da validade, que não é apenas formal, mas material-substancial".

Por meio dessa forma reflexiva de considerar o direito e a Constituição, refaz-se o "’locus’ hermenêutico a partir do qual conformam-se possibilidades de sentido de todas as normas "inferiores", não se tendo como, pois, compreender, interpretar e aplicar o Direito independente do padrão constitucional" (PEREIRA, 2007, p.120). Implica dizer que ela não apenas se encontra no vértice da pirâmide normativa kelseniana: para além desta constatação de cunho pedagógico, a Constituição se traduz como "critério hermenêutico fundamental de todo o ordenamento jurídico" (Ramón Peralta apud PEREIRA, Op. cit.),traçando várias planos convergentes de sua interpretação.

Sobre os autores
Paulo Antonio de Menezes Albuquerque

Magister Legum e Doutor em Direito pela Westfälische Wilhelms-Universität Münster (Alemanha). Professor Titular do Curso de Mestrado em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Professor da Universidade Federal do Ceará (UFC). Procurador Federal.

Rodrigo Ferraz de Castro Remígio

Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Bolsista CAPES/PROSUP. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALBUQUERQUE, Paulo Antonio Menezes; REMÍGIO, Rodrigo Ferraz Castro. Tratados Internacionais de Direitos Humanos.: Um novo "locus" hermenêutico?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1817, 22 jun. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11401. Acesso em: 24 nov. 2024.

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